As piores formas de trabalho infantil

Lista com as atividades profissionais mais degradantes para crianças e adolescentes ainda é ignorada em diversas regiões

Por Sabrina Duran, da Repórter Brasil

Em 2008, um decreto assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva permitiu que o combate ao trabalho infantil no país se tornasse mais abrangente, ampliando as possibilidades de punição contra indivíduos e empresas que o utilizam e, principalmente, protegendo muito mais crianças e adolescentes que todos os dias são submetidos a atividades degradantes no campo e na cidade.

O decreto de número 6.481, assinado em 12 de junho daquele ano, aprovou, em nível federal, a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), que teve suas bases lançadas em 1999 pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Constam da relação 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham. Há ainda outros quatro itens convencionados anteriormente pela OIT e que se referem à exploração sexual, trabalho escravo, trabalhos moralmente degradantes e uso da mão de obra infantil em atividades ilícitas, como o tráfico de entorpecentes. A Lista TIP foi elaborada durante quase três anos por membros da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Fotos: Divulgação/SRTE-MT

Fotos: Divulgação/SRTE-RN

“Antes do decreto, essa lista era aprovada em forma de portaria pelo MTE. Mas nós queríamos que tivesse uma abrangência maior, porque talvez uma atividade de subsistência e o ato de pedir esmola na rua ou fazer malabares não fossem considerados empregos e, por isso, não seria competência do MTE [fiscalizar]. Como foi um documento preparado por vários ministérios juntamente com a Conaeti, centrais sindicais e confederações patronais, optou-se por fazer um decreto, um documento mais forte que o governo inteiro tem de aceitar”, explica o chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do MTE, Luiz Henrique Lopes.

Para ele, além de dar mais peso e abrangência ao combate do trabalho infantil, a Lista TIP desmistifica sensos comuns que, de alguma forma, perpetuam a cultura da exploração de crianças e adolescentes. “Buscamos estudos que comprovassem a periculosidade das atividades, justamente para desmistificar pensamentos como ‘trabalha na carvoaria, então é perigoso; trabalha no âmbito urbano, então não é perigoso’. Não há ‘achismo’ na lista. Colocamos estudos científicos que embasam nossas escolhas.”

Entre 8 e 10 de outubro o Brasil sediará, em Brasília (DF), a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Embora seja um evento mundial, o país tem participação especial porque, segundo Lopes, é referência no combate a esse tipo de exploração. “Não fazemos distinção entre trabalho rural ou urbano, nem de idade ou de gênero. Temos o compromisso de até 2016 acabar com as piores formas de trabalho infantil”, afirma.

Desafios no campo
Embora a criação da Lista TIP e o trabalho de fiscalização tenham ajudado a reduzir o uso de mão de obra infantil, ainda há sérias dificuldades que impedem a erradicação das piores formas de trabalho. E é no âmbito rural que essas dificuldades são mais evidentes. Faltam fiscais e suporte das autoridades locais; sobram ameaças de empregadores e até de figuras políticas a auditores do MTE. No campo, as distâncias a serem percorridas são longas, de difícil acesso e, muitas vezes, o medo da população de oferecer informações dificulta as ações de inteligência do MTE na busca de focos de exploração.

Outro grande entrave é de ordem cultural. Não apenas empregadores, mas os próprios familiares de crianças e adolescentes acreditam estar fazendo um bem ao colocá-las para trabalhar. “O que mais ouvimos é que se a criança não trabalhar vai cair nas drogas. Ou seja: as únicas opções para as crianças são o trabalho ou as drogas. Para mim, essa é uma crença perversa”, diz Roberto Padilha, coordenador do Projeto de Fiscalização do Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Sul (SRTE/RS).

Quando a família é o empregador
Segundo Padilha, um dos principais focos de combate ao trabalho infantil no estado, hoje, está no cultivo de fumo, que consta da Lista TIP. Esforço físico e posturas viciosas; exposição a poeiras orgânicas e seus contaminantes, como fungos e agrotóxicos; acidentes com animais peçonhentos; e exposição, sem proteção adequada, à radiação solar, calor, umidade, chuva, frio e acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes aparecem na lista como prováveis riscos ocupacionais à criança ou adolescente que trabalha na lavoura de fumo. Bursites, tendinites, urticárias, doenças respiratórias, mutilação e câncer são apenas algumas das consequências para a saúde. Um agravante contra o bem-estar das crianças nesse ambiente é a liberação de substâncias tóxicas pela própria planta do fumo.

menina

O cultivo costuma ser feito em pequenas propriedades familiares onde trabalham pais e filhos. “Ainda existe muita resistência a entender as consequências do trabalho infantil”, descreve Roberto Padilha. Na fiscalização dessas lavouras, o trabalho dos auditores do MTE é distinto do realizado em propriedades de empresas. Não há autuação dos empregadores ou afastamento das crianças do trabalho, mas sim orientação e um esforço, por meio da informação e do diálogo, de substituir o trabalho pela educação. “A instrução normativa 77, que regulamenta nossa atuação nas lavouras de economia familiar, diz que nosso trabalho é de orientação às famílias e de articulação com outros órgãos parceiros, como assistência social, Conselho Tutelar, Ministério Público do Trabalho e órgãos de educação”, explica Padilha.

O objetivo dessa parceria é promover atividades de capacitação profissional das famílias e atividades alternativas ao trabalho das crianças no campo, alertar nas escolas sobre o risco do trabalho infantil e estimular a cadeia produtiva a adquirir apenas produtos que não utilizem mão de obra de crianças. “O trabalho infantil não é elemento de desenvolvimento econômico ou social. Ele abala o desenvolvimento físico e provoca evasão escolar. O Brasil carece de mão de obra qualificada para ocupar cargos mais bem remunerados. Nesse sentido, o trabalho infantil é também um elemento de degradação econômica”, completa o coordenador do Projeto de Fiscalização do Trabalho Infantil da SRTE/RS.

“Constituição é bobagem”
Jovens de 13, 14 anos, sentados no chão úmido e sujo, respirando o ar poeirento, manuseando facões e outros instrumentos cortantes. Durante uma manhã inteira eles não se levantam, não bebem água e não vão ao banheiro, para não perderem tempo. Ao fim da jornada, cada um tem como saldo da lida meia tonelada de mandioca descascada sobre as pernas e os problemas crônicos na coluna e nos rins que o trabalho na casa de farinha lhes dá como “paga”, além dos R$ 20 semanais, em média.

Marinalva Cardoso Dantas, auditora fiscal do trabalho e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil do Rio Grande do Norte, é quem descreve a situação de trabalho dos adolescentes nas casas de farinha – atividade que consta na Lista TIP – espalhadas pelas áreas rurais do estado.

Assim como no caso das lavouras de fumo familiares no Rio Grande do Sul, a questão cultural é um dos grandes entraves para a fiscalização do MTE no Nordeste brasileiro. “A cultura local diz que criança deve sempre trabalhar para não virar marginal. A população pensa assim, os vereadores pensam assim, pessoas da prefeitura, comerciantes, até o padre acha normal criança trabalhar”, diz Marinalva.

Na defesa das próprias convicções culturais – e dos benefícios financeiros do uso da mão de obra infantil, que não custa quase nada a quem a explora –, os empregadores e os que concordam com suas ideias chegam a protagonizar situações absurdas, como o episódio vivido há três anos por Marinalva e outras três auditoras em Boa Saúde, cidade com menos de 10 mil habitantes no agreste potiguar.

Após tomarem conhecimento da morte, por choque elétrico, de uma criança numa casa de farinha, elas iniciaram um trabalho de conscientização na cidade e convocaram uma audiência pública na Câmara Municipal local. “Só saímos de lá depois de meia-noite porque fomos obrigadas a ficar ouvindo todos os desaforos dos vereadores, que diziam que a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente são besteira, que não queriam ninguém de fora dizendo como eles deveriam cuidar dos meninos da cidade. A plateia aplaudia tudo o que diziam. Para eles, é normal uma criança morrer de choque elétrico numa casa de farinha. E aquele não tinha sido o primeiro caso.”

Naquela ocasião, as auditoras afastaram onze crianças do trabalho. Mas poderiam ter afastado mais. “Como as casas de farinha são próximas, quando a gente chega na primeira, as pessoas já vão de moto e bicicleta avisar nas outras, e depois não encontramos mais ninguém”, conta a auditora. Depois daquele incidente na Câmara Municipal de Boa Saúde, Marinalva nunca mais voltou à cidade. “Só volto com acompanhamento da polícia e alguém do Ministério Público”, diz.

Matadouros no RN
Com tradição no comércio de carne de sol, o Rio Grande do Norte é pródigo em abatedouros. O trabalho nesse ramo está diretamente relacionado à pecuária, pode ser encontrado no campo ou na cidade e, no que diz respeito ao uso de mão de obra infantil, consta da lista das piores formas de trabalho.

No estado, a erradicação do trabalho de crianças e adolescentes no abate do gado é um grande desafio para o MTE também por causa do traço cultural e familiar da atividade. “Em geral, são filhos de vaqueiros e peões levados pelos próprios pais a trabalhar ali. O trabalho vai passando de pai para filho.” Em seu relato cru, Marinalva diz que já encontrou adolescentes matando boi a marretadas, tirando a pele, fazendo sangria, limpando as vísceras e as fezes. “Já entrevistei um menino que disse que bebia com cachaça o sangue do boi que jorrava do pescoço. Outro disse que treinou matar boi matando gato na rua a pauladas, como vê o pai fazer com o boi. Esses meninos veem gente matando gado, gado matando gente, gente matando gente. A violência, a morte e a vida para eles são algo muito banal”, afirma.

Segundo a auditora, entre os mais de 160 municípios do Rio Grande do Norte, pelo menos cem abrigam locais de abate, muitos pertencentes às prefeituras. Nas cidades de João Câmara, Nova Cruz, Caicó, Acari e Bom Jesus, por exemplo, a fiscalização flagrou trabalho infantil em matadouros públicos. “Há matadouros onde o gado do próprio prefeito é abatido por crianças”, revela Marinalva.

Outro problema para o combate a esse tipo de atividade é o fato de as crianças serem recrutadas por via indireta e, formalmente, não serem empregadas da prefeitura, o que impede os fiscais de autuarem a administração municipal. Uma solução legal, porém, foi encontrada recentemente. “Descobrimos que podíamos fazer um auto de infração onde não é mencionada a palavra ‘empregado’, e sim ‘manter em serviço pessoas com menos de 16 anos’. Com isso, começamos a autuar prefeituras no caso das feiras livres. Isso foi considerado um avanço. Agora, vamos usar esse instrumento nos matadouros porque a situação é a mesma”, explica a auditora.

Ela adianta que o estado prepara uma fiscalização para flagrar trabalho infantil em matadouros clandestinos, cujas condições de insalubridade e exploração são iguais ou piores do que nos matadouros legalizados. Currais Novos, polo de carne de sol do Rio Grande do Norte, será um dos alvos da fiscalização. “Sabemos que estão abatendo animais em sítios. A matança é tão grande que os bois da região não dão conta, e eles trazem gado do Tocantins”. A ação dos auditores nos matadouros clandestinos terá apoio da Polícia Rodoviária Federal e contará com a presença de juízes que solicitaram acompanhar algumas fiscalizações como observadores. “Eles querem sentir a realidade da exploração das crianças. Quando o caso chegar à sala deles, saberão julgar com mais precisão”, informa Marinalva.

Na segunda parte desta reportagem você conhecerá detalhes sobre o combate às piores formas de trabalho infantil no âmbito urbano.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

Atrás do trio elétrico... o trabalho infantil

Famoso por ser uma das maiores celebrações populares do Brasil, carnaval de Salvador mascara exploração de crianças

Por Ana Maria Amorim e Lucas Ribeiro Prado
Foto de abertura: Adenilson Nunes/AGECOM

O carnaval de Salvador mobiliza anualmente 2 milhões de pessoas, sendo 600 mil turistas, segundo dados da Secretaria de Turismo da Bahia (Setur). A demanda por mão de obra é expressiva e as atividades vão de ocupações gerenciais ao trabalho informal. Cerca de 93 mil pessoas trabalham durante os festejos, conforme levantamento realizado em 2010 pela Secretaria de Cultura. Destes, 17% trabalham com comércio ambulante. Há jornalistas, cordeiros, profissionais de saúde e seguranças; e há crianças e adolescentes sendo explorados também.

O trabalho é irregular para cerca de 60% dos trabalhadores dessa época. Uma parcela considerável da mão de obra do carnaval é jovem, sendo 19,4% entre a faixa etária de 10 a 24 anos. A pesquisa mostra ainda que o perfil majoritário é masculino, de cor negra, acima de 25 anos e não migrante.

A preocupação com o trabalho infantil durante a maior festa popular do país motiva ações de diversas entidades desde pelo menos 1995. Uma dessas ações é o projeto Blitz Social, da Secretaria Municipal do Trabalho, Assistência Social e Direitos do Cidadão (Setad) de Salvador. Em 2011, a Blitz cadastrou 312 crianças e adolescentes que estavam trabalhando nos circuitos de carnaval na cidade.

Já em 2012, o número subiu para 521. Isso, entretanto, não significa necessariamente um aumento da incidência de trabalho infantil durante essa época do ano. Como não há uma clara sistematização e acompanhamento desses dados, eles podem ser interpretados como resultado de uma ampliação dos programas, que estariam alcançando mais crianças e adolescentes.

Combate
“O carnaval é um momento de trabalho”, afirmou a ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR) Maria do Rosário, que participou da cerimônia de lançamento da campanha “Solte a Voz no Carnaval”, em Salvador (BA). Com foco no combate à violência sexual e ao trabalho infantil, a iniciativa é desenvolvida em conjunto com entidades estaduais e municipais da Bahia.

Secretária Mara Moraes de Carvalho ressalta a importância de iniciativas para prevenir o trabalho infantil. Foto: Ascom/Sedes

Uma das intenções da mobilização é unir as ações realizadas por diversas organizações e criar um observatório que acompanhe os dados de trabalho infantil e exploração sexual durante a festa. Para a secretária de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza do Estado da Bahia, Mara Moraes de Carvalho, a iniciativa deve integrar autoridades, sociedade e famílias. “A campanha tem dois eixos: o preventivo e protetivo, integrando ações de conscientização e acolhimento para aqueles que precisam trabalhar no carnaval, como os ambulantes, e as crianças encontradas em estado de violação de direitos”, explica.

No caso da Bahia, a campanha enfrenta um desafio maior. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), em 2011 o estado registrou, na semana do levantamento, 363 mil pessoas na faixa etária dos 5 aos 17 anos exercendo algum tipo de trabalho (clique aqui para ver infográfico sobre a incidência de trabalho infantil nas diferentes regiões do Brasil). “A Bahia ainda é, da região Nordeste, o estado que tem os piores índices de trabalho infantil e registro de crianças em situação de risco. Muitas vezes a criança deixa de estudar para trabalhar e compor a renda familiar. Essa cultura ainda é muito forte aqui no Nordeste”, diz a promotora do Ministério Público do Estado da Bahia, Eliana Bloisi.

A criança como sujeito da festa
Na avenida, dentre os tantos blocos que fazem o carnaval de Salvador, está o tradicional bloco afro Ilê Aiyê, que atua na valorização da cultura afro na cidade e promove atividades de inclusão social. Participam crianças que saíram da situação de trabalho infantil para desenvolver atividades socioculturais no próprio carnaval. “Já trabalhei de vendedor de cerveja e de várias outras coisas com minha mãe, meu pai e minha irmã. Depois que entrei para o Ilê, eu nunca mais trabalhei no carnaval. O trabalho da criança tinha de acabar, elas tinham de ter uma oportunidade valiosa”, diz um dos integrantes, de 11 anos. “Eu achava o trabalho valioso, porque, se não trabalhar, não come”.

Integrantes do grupo Ilê Aiyê, que promove atividades de inclusão social. Foto: André Santana SeCul/BA

A atuação do Ilê com jovens e adolescentes envolve 120 crianças. “Um dos pré-requisitos é estar estudando, dedicando um turno à escola e outro às atividades do bloco. O turno integral ajuda a ocupar as crianças com outras atividades que não o trabalho degradante”, explica a coordenadora da Banda Mirim do Ilê Aiyê Jaciara Ferreira.

As lembranças de quando trabalhavam no carnaval expõem a desigualdade no acesso à festa. Outra criança, uma menina de 12 anos, associava a brincadeira na avenida como um benefício do trabalho que fazia antes de entrar para o bloco. “Minhas amigas acham muito divertido trabalhar no carnaval, porque, quando acaba a festa, elas podem subir no palco”, diz.

O relato evidencia que o trabalho infantil compõe a questão central da desigualdade econômica do país, que se reflete em todas as esferas, inclusive no reinado de Momo. O acesso ao lazer chega, antemão, como um anúncio do uso de sua mão de obra, e não como um direito fundamental. Ainda assim, ações como a do bloco Ilê, também realizada por outras entidades carnavalescas, tentam socializar o carnaval com essas crianças, que reconhecem a entrada no bloco como um momento crucial.

Erradicação do trabalho infantil
Segundo especialistas em trabalho infantil, a busca pela erradicação deve envolver diversas esferas da sociedade, pois o problema é decorrente das variadas situações de restrição nas quais as crianças são colocadas: falta de acesso à educação, saúde, lazer etc. O pano de fundo do trabalho infantil, portanto, é a sociedade em que a criança se encontra. “É preciso combater a miséria para se combater o trabalho infantil, pois o trabalho infantil está no centro da miséria. Criança não é mercadoria para ser vendida”, detalha a ministra Maria do Rosário.

Lançamento da campanha “Solte a Voz no Carnaval”. Foto: Ascom/Sedes

Um dos objetivos da iniciativa é justamente desmistificar os argumentos que o senso comum usa para justificar o trabalho infantil, que impõe o conceito “trabalho versus marginalidade” para a trajetória da infância. “É preciso quebrar o mito de que criança tem de trabalhar para não ser ladrão e mostrar que o fato de trabalhar na infância não garante a construção do sujeito no positivo social. A criança deve começar a trabalhar na idade adequada”, defende Maria Moraes.

Educadas sob essa visão, as próprias crianças justificariam o trabalho como algo produtivo, em um contexto em que foram cerceadas do direito à educação, moradia digna e/ou lazer, garantias prescritas no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Fazer valer esses direitos é um dos horizontes da nova campanha do estado da Bahia, que pretende trabalhar as ações em conjunto com algumas secretarias, órgãos públicos e organizações não governamentais. Outra medida destacada é o Disque 100, que recebe denúncias de trabalho infantil e exploração sexual durante todo o ano – somente em 2012, registrou 16 mil queixas. A intenção da iniciativa é ampliar a divulgação desse método.

A dificuldade encontrada por quem combate o trabalho infantil é sua invisibilidade. No carnaval, por exemplo, é possível contabilizar as crianças que estão nos circuitos – como vendedoras ambulantes e catadoras de material reciclável –, mas a organização da festa envolve diversas etapas não visíveis ao público, como a confecção de abadás e montagens de barracas, atividades não incluídas nos atuais estudos e levantamentos.

Problema não se limita a Salvador. Na foto, crianças seguram o cordão de bloco em Taguatinga, no Distrito Federal. Foto: José Cruz/ABr

“O trabalho infantil está cada vez mais difícil de ser erradicado. Sua redução está cada vez mais lenta, porque está cada vez mais velado. É preciso criar novas formas de enfrentar o problema”, destaca Paula Fonseca, responsável pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da Organização do Internacional do Trabalho (Peti-OIT).

Para a menina ouvida pela reportagem, o problema não parece tão difícil de ser resolvido: “primeiro os grandes têm de trabalhar para depois a gente trabalhar quando crescer”.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

Seminário debate educação no combate ao trabalho escravo e infantil

A relação entre exploração de escravos contemporâneos e a de criação e adolescentes é debatida em São Félix do Araguaia

Por Daniel Santini, da Repórter Brasil

São Félix do Araguaia (MT) – A importância da educação e da difusão de direitos como ferramenta no combate ao trabalho escravo contemporâneo e à exploração de trabalho infantil foi debatida na manhã deste sábado, 2 de fevereiro, durante o seminário “1970-2012: a Luta pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil”, em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. A relação direta entre a superexploração de trabalhadores e a de crianças e adolescentes foi destacada. Citando dados do estudo “Perfil dos atores Envolvidos no Trabalho Escravo”, organizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a procuradora Marcela Monteiro Dória lembrou que 92,6% dos trabalhadores resgatados da escravidão iniciaram a vida profissional antes dos 16 anos e que eles tinham, em média, 11,4 anos quando começaram a trabalhar.

Procuradora Marcela Monteiro Dória, representante regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes do MPT. Fotos: Gustavo Ohara

“É preciso combater a ideia de que o trabalho infantil é bom para as crianças, que afasta das drogas, que ajuda a desenvolver o jovem. Isso não é verdade. São mitos que precisam acabar. Nossas crianças ou vão trabalhar ou vão usar drogas? São só essas duas alternativas? Não podemos lutar para que essas crianças vivam seus direitos?”, questiona a procuradora Marcela. “Temos que ser radicais contra o trabalho infantil assim como contra o trabalho escravo”, completa a procuradora que é representante regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do MPT.

Entre as maneiras de se lidar com o problema, a procuradora aponta a necessidade de políticas públicas específicas, vagas em redes de ensino, programas específicos de combate, fortalecimento dos conselhos tutelares e da rede de assistência social e trabalho com as famílias. Ela lembra que a meta é a erradicação do trabalho infantil até 2016 e defende que o problema deve ser priorizado. “Por que as crianças continuam trabalhando? Primeiro devido à pobreza e miséria. Depois, porque para o empregador é muito mais barato do que contratar um adulto e fazer tudo conforme a lei. O trabalho infantil muitas vezes tira o lugar de um adulto”, aponta, destacando que a aceitação social prejudica o combate.

Carolina Motoki, do programa de educação Escravo, Nem Pensar!, da Repórter Brasil

Naturalização da violência
Para Carolina Motoki, educadora do “Escravo, Nem Pensar!”, programa de educação da Repórter Brasil, a desnaturalização de discursos sobre trabalho escravo ou infantil é a principal chave para o combate a tais violações. “O trabalho escravo é tido como normal em muitos locais. Tem muito trabalhador que fala eu não estudei, o que sobra para mim é o trabalho escravo, como se isso fosse algo natural. Não é”, afirma. Ela ressalta a importância da educação e como discutir o tema na sala de aula pode ajudar.

“A partir do momento em que a gente começa a debater e a escola entra no processo, a sociedade começa a questionar. Será que é tão natural assim? E reconhecer o problema como violação é o primeiro passo para não naturalizar o processo de exploração. A sociedade passa a denunciar e se posicionar para combater o problema”, ressalta Carolina.

Maria José Souza Moraes, advogada da Prelazia de São Félix do Araguaia, que trabalha em defesa de direitos humanos na região, também reforçou a necessidade de combater a aceitação de violações. “A cultura muda pelo olhar que passamos a ter sobre determinados fatos. A sociedade repudia o trabalho escravo, e, repudiando, a cultura muda”, afirma. “Direitos precisam ser respeitados, concretizados. O trabalho do professor é fundamental neste processo. Sem a participação de educadores a gente não consegue ir muito longe”.

Também durante o seminário, Xavier Plassat, coordenador da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, ressaltou que crianças e adolescentes têm sido sistematicamente exploradas em condições degradantes. Ao falar sobre escravidão contemporânea e citar ameaças e violências, destacou que entre as vítimas “há muitos jovens, gente de 13 anos, 14 anos”.

Representantes de diferentes municípios da região do Araguaia, no Mato Grosso, e autoridades acompanharam o debate


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente