Adolescentes paraguaios escravizados são forçados a deixar o país

Um adolescente de 15 anos e seis de 17 anos estavam entre 34 resgatados no Mato Grosso do Sul. Após libertação, todos foram notificados pela Polícia Federal a sair do Brasil

Por Daniel Santini, da Repórter Brasil*

A Polícia Federal (PF) obrigou 34 trabalhadores paraguaios resgatados de condições análogas à escravidão na fazenda Dois Meninos, em Itaquiraí, no Mato Grosso do Sul, a deixar o país. Entre os que foram libertados no flagrante realizado em 1º de março, em operação conjunta da qual fizeram parte também o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), estavam sete adolescentes, sendo um de 15 anos e seis de 17 anos. A legislação brasileira prevê que, quando permitido, o trabalho de adolescentes entre 14 anos e 18 anos “não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola” (Lei nº 10.097  2000). Para adolescentes com idades entre 14 anos e 16 anos, somente é permitido trabalho na condição de aprendiz.

Local em que os trabalhadores dormiam. Fotos: Divulgação

Local em que os trabalhadores dormiam. Fotos: Divulgação

Assim como os demais, os jovens estavam submetidos a condições degradantes análogas às de escravos trabalhando no cultivo de mandioca. Após o resgate, em vez de amparar e garantir a segurança do grupo, a PF notificou todos a deixarem o país e os multou em R$ 168 cada por estarem em situação irregular. A medida contraria a Resolução Normativa número 93 do Conselho Nacional de Imigração, que prevê a concessão de vistos para “estrangeiros que estejam em situação de vulnerabilidade”. É o segundo caso recente em que vítimas de trabalho escravo são forçadas pela PF a deixar o país. Em fevereiro, 13 trabalhadores também paraguaios, escravizados quebrando pedras em Mercedes, no Paraná, foram notificados a sair em três dias sob ameaça de deportação.

A resolução em questão foi estabelecida com o objetivo de fortalecer denúncias de exploração, já que muitos dos estrangeiros que são submetidos à escravidão evitam procurar as autoridades brasileiras devido ao temor de ter que deixar o Brasil. Foi exatamente o que aconteceu no caso em questão, segundo o procurador Jeferson Pereira, da Procuradoria do Trabalho de Dourados (MS), que acompanhou o resgate. Após serem libertados, os trabalhadores foram ameaçados pelo aliciador e fugiram temendo punições.

“Quando fui procurar o grupo para garantir o pagamento das indenizações devidas, não encontrei ninguém. O ‘gato’ [responsável por aliciar os trabalhadores no Paraguai e levá-los até a fazenda em questão] havia entrado no hotel e assustado todos eles falando que seriam presos pela Polícia Federal”, conta o representante do MPT. Os proprietários da fazenda assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta se comprometendo a não empregar mais mão de obra escrava, pagar as verbas rescisórias devidas e danos morais por conta da contratação de adolescentes. O procurador teve que determinar o retorno do grupo até a fronteira de Salto Guarirá, no Paraguai, com Mundo Novo, no Mato Grosso do Sul, para assegurar que eles recebam o valor devido. Dos 34 trabalhadores,  26 conseguiram retornar, recebendo R$ 55.255 em verbas indenizatórias.

Trabalhadores foram resgatados trabalhando em lavouras de mandioca

Trabalhadores foram resgatados trabalhando em lavouras de mandioca

Condições degradantes
Segundo o MPT, os trabalhadores estavam submetidos a condições degradantes, jornada exaustiva e servidão por dívida pelos fazendeiros Cleiton Geremias e Cleber Geremias. Eles haviam sido aliciados por Miguel Slometzki. A Polícia Federal confirma a participação dos três e informa que eles foram indiciados. A Repórter Brasil tentou contato, mas eles não foram localizados para comentar o caso.

foto SRTE-MS (5)

Alojamento improvisado em que os trabalhadores dormiam

De acordo com Ubaldo Fortunato, auditor fiscal do MTE que participou da fiscalização, os paraguaios estavam submetidos a condições degradantes. Todos, incluindo os adolescentes, viviam em alojamento improvisado, sem colchões. Alguns dormiam diretamente no chão, outros no estrado de beliches. “Não havia local para refeição e as condições de higiene e limpeza eram bem ruins”, explica o auditor, que confirma que a PF fez a notificação e ameaçou o grupo de deportação. “Eles tiveram de ir embora. São pessoas que têm interesse em permanecer no Brasil, que queriam se regularizar para continuar trabalhando, mas não conseguiram.”

O auditor também diz ter ouvido relatos sobre a ameaça do ‘gato’. “Após o resgate, eles estavam em um hotel esperando as verbas rescisórias, mas foram embora. Falaram que o gato que agenciava o grupo mandou eles fugirem”, diz o auditor. “É uma prova de que eles ficaram com medo.” Procurado, o delegado-chefe da Polícia Federal em Naviraí, Leandro Chagas, afirmou que pretende investigar as ameaças citadas. Ele confirma que os paraguaios estavam escravizados e diz que a instituição têm tido especial atenção ao lidar com denúncias desse tipo. O delegado ficou de verificar com o setor de imigração o que aconteceu.

Fiscais apontaram falta de condições mínimas de higiene e limpeza no alojamento

Fiscais apontaram falta de condições mínimas de higiene e limpeza no alojamento

O delegado da PF responsável pelo flagrante, Guilherme Guimarães, que participou da ação, confirma a notificação e diz que foi a base que determinou que eles deixassem o país. “Não sei como é o procedimento padrão nesses casos, não atuo na área de imigração”, diz. O delegado, que pertence à unidade de Ponta Porã (MS), participou da ação porque estava de plantão em Naviraí (MS). Justamente por estar no apoio da fiscalização, ele afirma ter repassado o prosseguimento do trato aos estrangeiros ao departamento de imigração dessa delegacia.

O procedimento contraria a própria orientação da frente de Repressão ao Trabalho Forçado da Coordenação-Geral de Defesa Institucional da Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado do Departamento de Polícia Federal, que determina que agentes e delegados amparem estrangeiros em situação vulnerável, incluindo vítimas de trabalho escravo e tráfico de pessoas.

Recorrente
De acordo com o procurador Jeferson Pereira, não é a primeira vez que a Polícia Federal notifica trabalhadores resgatados no Mato Grosso do Sul a deixar o país. Em dezembro do ano passado, um grupo também de paraguaios foi obrigado a sair após resgate em uma obra no perímetro urbano de Dourados (MS). “O delegado Fernando Parizotto queria notificar os trabalhadores paraguaios a deixarem o país de forma rápida sem receber os valores rescisórios. Tive de ponderar com ele, a fim de que os trabalhadores permanecessem em hotéis localizados na cidade pelo período de cinco dias, e assim, após o recebimento dos haveres, poderem ir embora”, afirma o procurador. O delegado Fernando Parizotto não foi localizado pela reportagem para comentar o caso.

foto SRTE-MS (3)

Resgatados dormiam diretamente no estrado das camas e beliches ou no chão

“É um problema sério que estamos encontrando sim. Isso precisa ser resolvido logo. Pois toda vez temos de ficar intercedendo junto à PF para manter os trabalhadores no país pelo menos até receberem o pagamento. Referidos trabalhadores ficam temerosos e assustados achando que a qualquer momento vão ser presos. Aí acontece o que ocorreu aqui em Naviraí. Eles acabaram indo embora e nós tivemos de tomar providências para que eles retornassem até a fronteira”, completa o procurador.

 

 

Colaborou Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Consumismo, o 'aliciador' de trabalho infantil nas cidades

Por vontade própria e com o apoio dos pais, crianças e adolescentes realizam trabalhos degradantes para poder comprar bens como celulares e videogames

Por Sabrina Duran, da Repórter Brasil

A necessidade de um prato de comida já não é o único motivo a forçar crianças e adolescentes ao trabalho precoce e degradante. Na sociedade do consumo exacerbado e da publicidade ostensiva, outros itens pesam nas suas listas de urgências: celulares, tênis de marca e videogames são alguns deles. A pressão social para a aquisição desses produtos é tão grande que estes deixam de ser somente o bem conquistado e tornam-se os próprios “aliciadores”.

“Eles veem os colegas com celular e procuram trabalho. Muitos jovens são autônomos: compram computador, fazem cópias piratas de CDs e vão vender na rua para ganhar R$ 300, R$ 400 por mês. Hoje não são somente os pais que colocam os filhos para trabalhar. O consumismo atrai muita criança e adolescente”, afirma Luiz Henrique Ramos Lopes, chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). De acordo com ele, desde a divulgação do Censo de 2010 é possível perceber que o trabalho infantil no Brasil não está mais tão ligado à pobreza ou miséria extrema.

Adolescente trabalha em uma borracharia  Foto: SRTE/PE

Fotos:  Divulgação/SRTE-PE

No âmbito urbano, onde a pressão do consumo é generalizada, os adolescentes são as “presas” mais fáceis para os empregadores. Além de estarem mais expostos do que as crianças ao apelo das propagandas, são os que mais trabalham nas cidades. “Os dados da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] mostram que na faixa etária de 5 a 9 anos o trabalho é muito mais rural do que urbano. De 10 a 14, o urbano começa a se sobrepor. De 15 a 17 anos o trabalho infantil é proeminentemente urbano”, informa Lopes.

Entre as atividades em que a exploração da mão de obra de crianças e adolescentes é mais comum, segundo a fiscalização do MTE, estão feiras livres, comércios ambulantes, borracharias, lava-jatos e oficinas mecânicas. Todas essas atividades estão na lista de Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), aprovada como decreto federal em 2008 (veja a primeira parte da reportagem sobre a Lista TIP aqui).

A cidade e seus riscos
Paula Moreira Neves, auditora fiscal do MTE e coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Infantil em Pernambuco, confirma que o consumismo, hoje, é um dos grandes desafios aos que combatem o trabalho infantil, especialmente nas cidades. “Existem crianças e adolescentes que são obrigados a trabalhar pela família ou são cooptados por terceiros nas ruas, mas muitos trabalham porque querem comprar bens que os pais não têm condições de lhes dar. Já que a maioria desses pais começou a trabalhar na infância, eles permitem e até estimulam que seus filhos façam o mesmo”, diz a auditora.

OLYMPUS DIGITAL CAMERASão muitos e graves os riscos para as crianças que desempenham atividades contidas na Lista TIP. No trabalho como vendedoras ambulantes nas ruas e outros logradouros públicos, por exemplo, elas estão sujeitas a violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; e a exposição à radiação solar, chuva, frio, acidentes de trânsito e atropelamento. Nas borracharias, são submetidas a esforços físicos intensos e expostas a produtos químicos, antioxidantes, plastificantes e calor. Na lida dos lava-jatos, crianças e adolescentes estão em constante contato com solventes, neurotóxicos, névoas ácidas e alcalinas. Já os que trabalham como carregadores em feiras livres estão sujeitos a padecer de bursites, tendinites, sinovites, escolioses, lordoses e outras doenças músculo-esqueléticas decorrentes do intenso esforço físico. “Esses pais [que estimulam os filhos a trabalhar] desconhecem os graves prejuízos que o trabalho precoce ocasiona aos seus filhos, como a dificuldade de aprender, a defasagem e a evasão escolar, os danos físicos ao corpo ainda em desenvolvimento e os danos psicológicos”, alerta Paula.

Dificuldades de fiscalização
Em 2012, segundo a auditora, foram fiscalizadas feiras livres em 65 municípios de Pernambuco, além das praias de Boa Viagem, no Recife, e Piedade, em Jaboatão dos Guararapes. Nos casos em que os empregadores foram identificados, todos foram notificados e autuados. No entanto, informa Paula, a maioria das crianças e adolescentes encontrados naqueles locais trabalhava com os pais ou, embora prestasse serviço a um terceiro, estava desacompanhada do empregador e não sabia informar seu endereço.

Não conseguir identificar quem explora a mão de obra infantil nas ruas e outros locais públicos é uma das grandes dificuldades dos fiscais do MTE. Nas feiras livres de municípios do Rio Grande do Norte, a auditora fiscal e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil do estado, Marinalva Cardoso Dantas, relata a mesma dificuldade de Paula. “Às vezes temos de inventar, dizer que não somos do Ministério do Trabalho para poder conversar com as crianças, senão elas correm, mentem para não dizer o nome dos pais.”

trabalhoinfantilPara Paula Neves, a utilização de praias e outros logradouros públicos para o comércio deve ser regulamentada e fiscalizada pelo poder público municipal a fim de prevenir e coibir o uso da mão de obra infantil. “Condicionando, por exemplo, a autorização do uso do espaço público pelos barraqueiros e ambulantes à não utilização de mão de obra infantil”, sugere a auditora. Outras medidas importantes são a busca dessas crianças em situação de trabalho e sua inclusão em programas sociais e a realização de campanhas junto ao público em geral, especialmente com usuários de praias e feiras livres. “Que a sociedade pare de adquirir produtos e serviços das mãos de crianças e adolescentes que trabalham sob sol escaldante, descalços, expostos a riscos e diversos problemas de saúde decorrentes do trabalho precoce”, finaliza.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente