postado por

O combate ao trabalho infantil doméstico no Brasil enfrenta barreiras culturais, desigualdades de gênero e dificuldades de fiscalização

Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil

Sem perspectivas no sertão da Bahia, aos 15 anos, uma retirante chega a Ilhéus para buscar trabalho em casas de família. Acaba virando cozinheira na casa do árabe Nacib, onde começa propriamente a história de “Gabriela, Cravo e Canela”, romance consagrado de Jorge Amado, encenado várias vezes no cinema e na TV.

A história de Gabriela, muito viva no imaginário popular brasileiro, parte de uma situação tão comum para a sociedade da época que até hoje ainda passa batida para quem se envolve com o livro: o trabalho infantil doméstico.

Num Brasil bem mais moderno e onde o trabalho infantil já era proibido, em 2008, cerca de 320 mil crianças de 10 a 17 anos realizavam trabalhos domésticos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE. Em 2001, estudo da Organização Internacional do Trabalho apontou que mais da metade (64%)  das 500 mil crianças trabalhando no serviço doméstico então recebiam menos de um salário mínimo por uma jornada superior a 40 horas semanais e 21% tinham algum problema de saúde decorrente do trabalho.

Barreira cultural
Ainda hoje o trabalho infantil doméstico se confunde com solidariedade e relacionamento familiar em lares brasileiros. Em regiões onde convivem famílias pobres e ricas, é comum a divisão do trabalho na cidade ou na fazenda se estender à figura do “afilhado” ou “filho de criação”, geralmente o filho do empregado ou do parente mais pobre que vai à cidade para “ter mais oportunidades” e cuidar da casa e das crianças da familia.

Meninas trabalham como lavadeiras em Conceição do Araguaia, no Pará. Foto: João Roberto Ripper / Imagens Humanas

“O trabalho infantil doméstico é visto mais como caridade do que como exploração. Isso não mudou”, conta Renata Santos, pedagoga do programa de enfrentamento ao trabalho infantil doméstico (PETID) do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-Emaús), em Belém. Segundo ela, famílias de classe média da capital ainda recebem mão-de-obra do interior do Estado; no interior, a zona urbana emprega as crianças da zona rural.

Renata lembra das primeiras reuniões de conscientização no início do programa, há 13 anos: “Era horrível. Fazíamos palestras em igrejas e anúncios no rádio para tentar sensibilizar as patroas, e elas não entendiam”, conta.

Ativo na região metropolitana de Belém e em quatro outras cidades do Pará, o Petid hoje entrou em sua terceira fase. “Agora fazemos uma campanha mais incisiva. Antes era uma questão de sensibilização, de explicar o problema, e agora nós dizemos claramente que quem emprega mão-de-obra infantil está sujeito a penalidades”, explica Renata.

O trabalho doméstico é tão fortemente enraizado nas práticas sociais brasileiras que chegou a ser contemplado no Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído em 1990 – o ECA determinava regularização da guarda do adolescente empregado na prestação de serviços domésticos. Esse artigo (248) é considerado tacitamente revogado desde 2008, quando o Brasil aprovou a lista de piores formas de trabalho infantil, proibidas para adolescentes com menos de 18 anos.  Entre elas está o trabalho doméstico.

Ministro Lélio Bentes, presidente doTribunal Superior do Trabalho. Foto: Divulgação/TST

O ministro Lélio Bentes, presidente da mais alta corte trabalhista do Brasil, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), reforça a necessidade das campanhas – incisivas, como diz Renata – de conscientização na área. “Quando se diz que uma criança é levada ao trabalho infantil para ser protegida, para ter oportunidade de estudo – isso é balela, é um discurso construído para justificar a exploração”, afirma. “O que me parece mais eficaz na questão do trabalho infantil doméstico, sem sombra de dúvida, é a conscientização: as pessoas precisam se indignar com a violação dos direitos das crianças e dos adolescentes”.

Características e riscos do trabalho infantil doméstico
Enquanto, em geral, o trabalho infantil atinge mais meninos do que meninas, quando se trata de trabalho doméstico a situação se inverte e fica mais aguda: 94% das crianças e adolescentes trabalhando em casas de família são meninas, segundo a PNAD de 2008.

Com mais de dez anos de experiência no combate ao problema Renata aponta o que considera o maior problema enfrentado pelas meninas que trabalham cuidando da casa ou dos filhos de alguém. “A criança que faz o trabalho infantil doméstico é privada do convívio com sua família e sua comunidade, não é uma situação natural para ela”, explica.

A OIT cita ainda como os riscos mais comuns presentes na vida dessas crianças a submissão a jornadas longas e muito pesadas de traballho, salários baixos ou inexistentes e uma grande vulnerabilidade ao abuso físico, emocional ou sexual.

Renato Mentes, coordenador nacional do Programa para Erradicação do Trabalho Infantil da Organização Internacional do Trabalho (OIT), concorda: “Muitas trabalhadoras domésticas que vêm de uma situação de trabalho infantil têm um perfil mais submisso e introvertido, características desenvolvidas por uma criança ou adolescente que assumeum papel de adulto dentro de casa”, afirma. De acordo com ele, uma menina que presta serviço doméstico dificilmente encontra ou tira proveito de oportunidades educativas e de desenvolvimento pessoal.

Renato Mentes, coordenador nacional do Programa para Erradicação do Trabalho Infantil da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Foto: Adenilson Nunes/Secom – Governo da Bahia

A defasagem escolar de crianças que fazem serviço doméstico também é muito acentuada, o que também compromete as perspectivas de futuro. Estudo de pesquisadores das Universidades Federais da Paraíba e de Pernambuco publicado na revista Psicologia e Sociedade em 2011 mostrou que 80% das crianças que faziam trabalho doméstico já tinham sido reprovadas; metade dessas crianças atribuiram as dificuldades de desempenho a dificuldades de relacionamento ou adaptação, e 26% delas citaram expressamente o trabalho como fator principal.

Hoje, a principal frente de ação do CEDECA-Emaús no Pará é justamente a escola. “Nossa experiência mostrou que na maioria das vezes a escola sabe da situação da criança, mas não faz a denúncia”, afirma Renata.

Por isso, a estratégia da organização mudou: hoje, oito grupos de jovens, muitos deles ex-trabalhadores domésticos, fazem ações diretas de prevenção em escolas cujos alunos enfrentam o problema. Eles dão palestras sobre o tema dos direitos da criança e do adolescente em escolas, abordam a questão do trabaho doméstico e se aproximam da realidade das crianças exploradas.

Dificuldade de fiscalização
Luiz Henrique Ramos Lopes, coordenador da divisão de trabalho infantil do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), admite que o trabalho infantil doméstico é especialmente difícil de se fiscalizar. “Por causa da inviolabilidade domiciliar, não existe uma ação fiscal contra o trabalho doméstico como há em outras áreas. Não se pode entrar na casa de alguém sem um mandado judicial”, explica.

Menina marisqueira em Maragogipe, na Bahia. Foto: João Roberto Ripper / Imagens Humanas

Muitos fiscais, segundo Lélio Bentes, conseguem fazer a fiscalização em espaços públicos onde a criança trabalhadora doméstica circula, como feiras, parques e mercados. São raras as vezes, no entando, em que criança é encaminhada para a rede de proteção, já que a regulamentação específica para a fiscalização do trabalho doméstico também é mais branda; instrução normativa do MTE prevê que os eventuais flagrantes devem ser tratados com medidas de conscientização, e não propriamente com autuação dos fiscais. Essa instrução normativa, segundo apurou a Repórter Brasil, está sob revisão e deve cair.

Por fim, a própria atividade do trabalhor doméstico adulto é alvo de discriminação por parte da legislação brasileira. O registro de empregados domésticos hoje, por exemplo, não contempla o recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Também há dificuldades em se aplicar o controle de jornada e fazer valer o direito a pausas e horas extras, por exemplo.  A Convenção 189 da OIT para o Trabalho Doméstico, que exige a equiparação dos direitos desses empregados aos dos demais trabalhadores urbanos, aguarda ratificação do Brasil.



É da nossa conta! Trabalho Infantil e Adolescente. Uma campanha colaborativa da Fundação Telefônica em correalização com OIT e Unicef
Dividida em quatro estratégias – Reconheça, Questione, Descubra e Compartilhe – a campanha É da nossa conta! pretende sensibilizar e potencializar ações junto a diversos públicos, incluindo crianças, adolescentes, jovens e especialistas em trabalho infantil para que se tornem agentes multiplicadores, produzindo e compartilhando informações sobre o tema nas redes sociais. Saiba mais em
http://bit.ly/OlDlKY

 

O que fazer?
Identificou alguma situação de trabalho infantil? Comunique ao Conselho Tutelar de sua cidade, ao Ministério Público ou a um Juiz de Infância. Há a opção também de denunciar pelo telefone ou site do Disque 100 – Disque Denúncia Nacional: www.disque100.gov.br 

Como compartilhar?
Fique de olho nas notícias e dados no site e redes sociais da Rede Promenino, converse sobre o tema com as pessoas ao seu redor e compartilhe opiniões e informações a respeito nas redes com a hashtag #semtrabalhoinfantil.

http://www.facebook.com/redepromenino 
@promenino no twitter
#semtrabalhoinfantil
www.promenino.org.br

22 thoughts on “A dura realidade do trabalho infantil doméstico

  1. As penas deveriam ser duras e exemplares, mas no Brasil a criança e o jovem, tratados como item nada merece, para tanto bastar conhecer o que se faz para a mesma, no fundamental I e II!Para mudar a pobreza, educar com qualidade é a solução!

  2. Pingback

  3. Lamentavelmente , lendo está reportagem eu me vi lá pois, eu já passei por isto na decada de 70, trabalho infantil faz parte do cotidiano das crianças que moram nas roças e precisam ajudar os seus pais a sobreviverem.

  4. Na Inglaterra acaba de ser transmitida uma série de programas entitulado “Servants: The True Story of Life Below Stairs” (http://www.bbc.co.uk/programmes/b01n5wjx), na BBC, mostrando a trajetória de trabalhadores domésticos desde o século dezenove até o período entre guerras. Houve este discurso de “caridade” por parte dos patrões, que ainda existe no Brasil dos dias de hoje.

  5. Enquanto nós brasileiros não nos convencermos de que não devem existir classes para a cidadania, isto que todos nascidos neste Brasil, ou que nele vivam e busquem viver e contribuir para seu progresso, TODOS devem gozar dos mesmos direitos à saúde, educação, trabalho decente, habitação, cultura, lazer, respeito à privacidade e liberdade – este tipo de problema persistirá. Precisamos fazer valer as leis que já temos. O debate desta questão é oportuno.

  6. AINDA SE ESTÁ NO TEMPO EM QUE CARLOS MARX DENUNCIAVA O TRABALHO INFANTIL E QUE ERA JUSTIFICADO PELAS ELITIES DOMIMANTES DO SISMTEMA CAPITALITA QUE VEM AS PESSOAS COMO OBJEOS DE PRODUÇÃO.
    COMO CONNOU JESUS AI DAQUELES QUE ESCNDALIZR UM DESSES PEQUENINOS./VEMNAM A MIM AS CRIANÇAS PORQUE DELAS É REINO DE DEUS.

  7. Concordo em parte.
    Penso que alguem com 16 anos já pode trabalhar sim
    Pior é ficar ocioso e aprendendo “bobagem”
    Dizer que o trabalho impede o estudo é meia verdade
    Pode se trabalhar e estudar ao mesmo tempo, afinal existe escola noturna
    Sou contra a exploração(isso o Ministério do Trabalho deve coibir), contra o trabalho não.
    Aacho que o trabalho dignifica e enobrece
    Sem querer me gabar, posso citar meu exemplo:
    Engraxei sapatos e vendi picolés desde criança para ajudar meus pais muito pobres, e hoje estou muito bem graças a Deus e continuo os ajudando
    Não acho que eu seja exceção

  8. Pingback

  9. QUE TRISTE O SOFRIMENTO SOBRE AS CRIANÇAS QUE TRABALHA O TRABALHO ESCRAVO

  10. Quando todos e todas( sociedade civil organizada) assumirmos um porojeto de NAÇÃO BRASILEIRA, com toda força , coragem e dedicação, podemos ver no horizonte, a solução para esse e outros graves problemas que enfrentamos todos os dias. Mas enquanto a grande maioria de nós apenas contemplar a penalização da classe subalterna, vamos ver ainda por muitos anos, ceifada a infância de milhares.
    São problemas que não se resolvem com medidas paleativas. São necessárias mudanças estruturais mesmo e, ao mesmo tempo, a construção de uma nova cultura.É preciso aprender a ver , sentir e agir de outra forma, admitindo e assumindo que esse não é um problemas DELES/AS, mas nosso, de todos/as nós.
    Mas vamos lutando com coragem,fazendo o que podemos fazer.

    Adelaide Pereira da Silva

  11. Pingback

  12. Pingback

  13. Pingback

  14. Pingback

  15. Pingback

  16. Pingback

  17. Pingback

  18. Pingback

  19. Pingback

  20. Pingback