Atrás do trio elétrico... o trabalho infantil

Famoso por ser uma das maiores celebrações populares do Brasil, carnaval de Salvador mascara exploração de crianças

Por Ana Maria Amorim e Lucas Ribeiro Prado
Foto de abertura: Adenilson Nunes/AGECOM

O carnaval de Salvador mobiliza anualmente 2 milhões de pessoas, sendo 600 mil turistas, segundo dados da Secretaria de Turismo da Bahia (Setur). A demanda por mão de obra é expressiva e as atividades vão de ocupações gerenciais ao trabalho informal. Cerca de 93 mil pessoas trabalham durante os festejos, conforme levantamento realizado em 2010 pela Secretaria de Cultura. Destes, 17% trabalham com comércio ambulante. Há jornalistas, cordeiros, profissionais de saúde e seguranças; e há crianças e adolescentes sendo explorados também.

O trabalho é irregular para cerca de 60% dos trabalhadores dessa época. Uma parcela considerável da mão de obra do carnaval é jovem, sendo 19,4% entre a faixa etária de 10 a 24 anos. A pesquisa mostra ainda que o perfil majoritário é masculino, de cor negra, acima de 25 anos e não migrante.

A preocupação com o trabalho infantil durante a maior festa popular do país motiva ações de diversas entidades desde pelo menos 1995. Uma dessas ações é o projeto Blitz Social, da Secretaria Municipal do Trabalho, Assistência Social e Direitos do Cidadão (Setad) de Salvador. Em 2011, a Blitz cadastrou 312 crianças e adolescentes que estavam trabalhando nos circuitos de carnaval na cidade.

Já em 2012, o número subiu para 521. Isso, entretanto, não significa necessariamente um aumento da incidência de trabalho infantil durante essa época do ano. Como não há uma clara sistematização e acompanhamento desses dados, eles podem ser interpretados como resultado de uma ampliação dos programas, que estariam alcançando mais crianças e adolescentes.

Combate
“O carnaval é um momento de trabalho”, afirmou a ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR) Maria do Rosário, que participou da cerimônia de lançamento da campanha “Solte a Voz no Carnaval”, em Salvador (BA). Com foco no combate à violência sexual e ao trabalho infantil, a iniciativa é desenvolvida em conjunto com entidades estaduais e municipais da Bahia.

Secretária Mara Moraes de Carvalho ressalta a importância de iniciativas para prevenir o trabalho infantil. Foto: Ascom/Sedes

Uma das intenções da mobilização é unir as ações realizadas por diversas organizações e criar um observatório que acompanhe os dados de trabalho infantil e exploração sexual durante a festa. Para a secretária de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza do Estado da Bahia, Mara Moraes de Carvalho, a iniciativa deve integrar autoridades, sociedade e famílias. “A campanha tem dois eixos: o preventivo e protetivo, integrando ações de conscientização e acolhimento para aqueles que precisam trabalhar no carnaval, como os ambulantes, e as crianças encontradas em estado de violação de direitos”, explica.

No caso da Bahia, a campanha enfrenta um desafio maior. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), em 2011 o estado registrou, na semana do levantamento, 363 mil pessoas na faixa etária dos 5 aos 17 anos exercendo algum tipo de trabalho (clique aqui para ver infográfico sobre a incidência de trabalho infantil nas diferentes regiões do Brasil). “A Bahia ainda é, da região Nordeste, o estado que tem os piores índices de trabalho infantil e registro de crianças em situação de risco. Muitas vezes a criança deixa de estudar para trabalhar e compor a renda familiar. Essa cultura ainda é muito forte aqui no Nordeste”, diz a promotora do Ministério Público do Estado da Bahia, Eliana Bloisi.

A criança como sujeito da festa
Na avenida, dentre os tantos blocos que fazem o carnaval de Salvador, está o tradicional bloco afro Ilê Aiyê, que atua na valorização da cultura afro na cidade e promove atividades de inclusão social. Participam crianças que saíram da situação de trabalho infantil para desenvolver atividades socioculturais no próprio carnaval. “Já trabalhei de vendedor de cerveja e de várias outras coisas com minha mãe, meu pai e minha irmã. Depois que entrei para o Ilê, eu nunca mais trabalhei no carnaval. O trabalho da criança tinha de acabar, elas tinham de ter uma oportunidade valiosa”, diz um dos integrantes, de 11 anos. “Eu achava o trabalho valioso, porque, se não trabalhar, não come”.

Integrantes do grupo Ilê Aiyê, que promove atividades de inclusão social. Foto: André Santana SeCul/BA

A atuação do Ilê com jovens e adolescentes envolve 120 crianças. “Um dos pré-requisitos é estar estudando, dedicando um turno à escola e outro às atividades do bloco. O turno integral ajuda a ocupar as crianças com outras atividades que não o trabalho degradante”, explica a coordenadora da Banda Mirim do Ilê Aiyê Jaciara Ferreira.

As lembranças de quando trabalhavam no carnaval expõem a desigualdade no acesso à festa. Outra criança, uma menina de 12 anos, associava a brincadeira na avenida como um benefício do trabalho que fazia antes de entrar para o bloco. “Minhas amigas acham muito divertido trabalhar no carnaval, porque, quando acaba a festa, elas podem subir no palco”, diz.

O relato evidencia que o trabalho infantil compõe a questão central da desigualdade econômica do país, que se reflete em todas as esferas, inclusive no reinado de Momo. O acesso ao lazer chega, antemão, como um anúncio do uso de sua mão de obra, e não como um direito fundamental. Ainda assim, ações como a do bloco Ilê, também realizada por outras entidades carnavalescas, tentam socializar o carnaval com essas crianças, que reconhecem a entrada no bloco como um momento crucial.

Erradicação do trabalho infantil
Segundo especialistas em trabalho infantil, a busca pela erradicação deve envolver diversas esferas da sociedade, pois o problema é decorrente das variadas situações de restrição nas quais as crianças são colocadas: falta de acesso à educação, saúde, lazer etc. O pano de fundo do trabalho infantil, portanto, é a sociedade em que a criança se encontra. “É preciso combater a miséria para se combater o trabalho infantil, pois o trabalho infantil está no centro da miséria. Criança não é mercadoria para ser vendida”, detalha a ministra Maria do Rosário.

Lançamento da campanha “Solte a Voz no Carnaval”. Foto: Ascom/Sedes

Um dos objetivos da iniciativa é justamente desmistificar os argumentos que o senso comum usa para justificar o trabalho infantil, que impõe o conceito “trabalho versus marginalidade” para a trajetória da infância. “É preciso quebrar o mito de que criança tem de trabalhar para não ser ladrão e mostrar que o fato de trabalhar na infância não garante a construção do sujeito no positivo social. A criança deve começar a trabalhar na idade adequada”, defende Maria Moraes.

Educadas sob essa visão, as próprias crianças justificariam o trabalho como algo produtivo, em um contexto em que foram cerceadas do direito à educação, moradia digna e/ou lazer, garantias prescritas no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Fazer valer esses direitos é um dos horizontes da nova campanha do estado da Bahia, que pretende trabalhar as ações em conjunto com algumas secretarias, órgãos públicos e organizações não governamentais. Outra medida destacada é o Disque 100, que recebe denúncias de trabalho infantil e exploração sexual durante todo o ano – somente em 2012, registrou 16 mil queixas. A intenção da iniciativa é ampliar a divulgação desse método.

A dificuldade encontrada por quem combate o trabalho infantil é sua invisibilidade. No carnaval, por exemplo, é possível contabilizar as crianças que estão nos circuitos – como vendedoras ambulantes e catadoras de material reciclável –, mas a organização da festa envolve diversas etapas não visíveis ao público, como a confecção de abadás e montagens de barracas, atividades não incluídas nos atuais estudos e levantamentos.

Problema não se limita a Salvador. Na foto, crianças seguram o cordão de bloco em Taguatinga, no Distrito Federal. Foto: José Cruz/ABr

“O trabalho infantil está cada vez mais difícil de ser erradicado. Sua redução está cada vez mais lenta, porque está cada vez mais velado. É preciso criar novas formas de enfrentar o problema”, destaca Paula Fonseca, responsável pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da Organização do Internacional do Trabalho (Peti-OIT).

Para a menina ouvida pela reportagem, o problema não parece tão difícil de ser resolvido: “primeiro os grandes têm de trabalhar para depois a gente trabalhar quando crescer”.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

Seminário debate educação no combate ao trabalho escravo e infantil

A relação entre exploração de escravos contemporâneos e a de criação e adolescentes é debatida em São Félix do Araguaia

Por Daniel Santini, da Repórter Brasil

São Félix do Araguaia (MT) – A importância da educação e da difusão de direitos como ferramenta no combate ao trabalho escravo contemporâneo e à exploração de trabalho infantil foi debatida na manhã deste sábado, 2 de fevereiro, durante o seminário “1970-2012: a Luta pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil”, em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. A relação direta entre a superexploração de trabalhadores e a de crianças e adolescentes foi destacada. Citando dados do estudo “Perfil dos atores Envolvidos no Trabalho Escravo”, organizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a procuradora Marcela Monteiro Dória lembrou que 92,6% dos trabalhadores resgatados da escravidão iniciaram a vida profissional antes dos 16 anos e que eles tinham, em média, 11,4 anos quando começaram a trabalhar.

Procuradora Marcela Monteiro Dória, representante regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes do MPT. Fotos: Gustavo Ohara

“É preciso combater a ideia de que o trabalho infantil é bom para as crianças, que afasta das drogas, que ajuda a desenvolver o jovem. Isso não é verdade. São mitos que precisam acabar. Nossas crianças ou vão trabalhar ou vão usar drogas? São só essas duas alternativas? Não podemos lutar para que essas crianças vivam seus direitos?”, questiona a procuradora Marcela. “Temos que ser radicais contra o trabalho infantil assim como contra o trabalho escravo”, completa a procuradora que é representante regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do MPT.

Entre as maneiras de se lidar com o problema, a procuradora aponta a necessidade de políticas públicas específicas, vagas em redes de ensino, programas específicos de combate, fortalecimento dos conselhos tutelares e da rede de assistência social e trabalho com as famílias. Ela lembra que a meta é a erradicação do trabalho infantil até 2016 e defende que o problema deve ser priorizado. “Por que as crianças continuam trabalhando? Primeiro devido à pobreza e miséria. Depois, porque para o empregador é muito mais barato do que contratar um adulto e fazer tudo conforme a lei. O trabalho infantil muitas vezes tira o lugar de um adulto”, aponta, destacando que a aceitação social prejudica o combate.

Carolina Motoki, do programa de educação Escravo, Nem Pensar!, da Repórter Brasil

Naturalização da violência
Para Carolina Motoki, educadora do “Escravo, Nem Pensar!”, programa de educação da Repórter Brasil, a desnaturalização de discursos sobre trabalho escravo ou infantil é a principal chave para o combate a tais violações. “O trabalho escravo é tido como normal em muitos locais. Tem muito trabalhador que fala eu não estudei, o que sobra para mim é o trabalho escravo, como se isso fosse algo natural. Não é”, afirma. Ela ressalta a importância da educação e como discutir o tema na sala de aula pode ajudar.

“A partir do momento em que a gente começa a debater e a escola entra no processo, a sociedade começa a questionar. Será que é tão natural assim? E reconhecer o problema como violação é o primeiro passo para não naturalizar o processo de exploração. A sociedade passa a denunciar e se posicionar para combater o problema”, ressalta Carolina.

Maria José Souza Moraes, advogada da Prelazia de São Félix do Araguaia, que trabalha em defesa de direitos humanos na região, também reforçou a necessidade de combater a aceitação de violações. “A cultura muda pelo olhar que passamos a ter sobre determinados fatos. A sociedade repudia o trabalho escravo, e, repudiando, a cultura muda”, afirma. “Direitos precisam ser respeitados, concretizados. O trabalho do professor é fundamental neste processo. Sem a participação de educadores a gente não consegue ir muito longe”.

Também durante o seminário, Xavier Plassat, coordenador da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, ressaltou que crianças e adolescentes têm sido sistematicamente exploradas em condições degradantes. Ao falar sobre escravidão contemporânea e citar ameaças e violências, destacou que entre as vítimas “há muitos jovens, gente de 13 anos, 14 anos”.

Representantes de diferentes municípios da região do Araguaia, no Mato Grosso, e autoridades acompanharam o debate


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

Os desafios da fiscalização do trabalho infantil

Governo planeja ações com base em dados e tenta aprimorar combate à exploração incentivando envolvimento da sociedade civil em fóruns e conselhos

Por Denise Galvani, da Repórter Brasil

Fiscalizar o emprego irregular de crianças e jovens é responsabilidade do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE). Em 2007, os fiscais do trabalho encontravam, em média, seis crianças a cada incursão em firmas ou logradouros públicos. Agora, a média é de 0,8 – ou seja, em parte das ações de controle, não se encontra irregularidade.

“É natural que nosso trabalho vá ficando mais difícil à medida em que chegamos mais perto da erradicação”, diz Luiz Henrique Ramos Lopes, coordenador do combate ao Trabalho Infantil do MTE. “Nós precisamos mudar a maneira de fiscalizar, fazer um trabalho de inteligência, estudar os dados do IBGE e planejar as ações”.

Em suma: hoje há menos trabalho infantil que há dez ou vinte anos, mas ele ainda existe e está mais difícil de ser combatido. Em resposta a isso, o número de ações fiscais exclusivamente para buscar focos de crianças trabalho aumentou: entre 2007 e 2011, a média era de 2.700 ações fiscais por ano, em todo o Brasil; em 2012, apenas de janeiro a outubro, foram 6.499 ações, que afastaram do trabalho um total de 5.263 crianças.

Meninas marisqueiras. Foto: João Roberto Ripper

Os desafios variam muito de região para região. “No Sul há muito trabalho de crianças na agricultura familiar, então é preciso reforçar a conscientização, o aspecto cultural. No Nordeste ainda se encontra bastante o trabalho infantil associado à pobreza da família, então é preciso encaminhar para os programas de transferência de renda”, explica Luiz.

A articulação eficiente com diferentes órgãos de assistência social é considerada prioridade para dar mais efetividade ao trabalho de fiscalização. Está em fase final, segundo Luiz, um sistema eletrônico de notificação de agravos que vai permitir a profissionais das áreas da saúde, educação ou Direitos Humanos comunicar a ocorrência de casos de Trabalho Infantil. “Também orientamos os nossos coordenadores a participar ativamente dos foruns estaduais, para ajudar a fortalecer a rede de proteção local. Alguns, como o de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, são muito articulados, e o trabalho realmente avança”, diz Luiz. Mas, de maneira geral, a articulação depende muito de órgãos de governos e prefeituras, e não se vê o mesmo grau de comprometimento em todas as cidades.

Prioridades

O planejamento das ações fiscais é descentralizado, para atender às particulariades regionais, mas algumas diretrizes partem do Ministério do Trabalho, em Brasília, para orientar o combate ao trabalho infantil.

Nos últimos dois anos, o pricipal esforço tem sido para erradicar as chamadas piores formas de trabalho infantil, definida por um decreto de 2008, que regulamentou a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho, sobre trabalho infantil, do qual o Brasil é parte.  “Este ano, foram mais de 1.000 ações em lava-jatos, principalmente em junho, onde se sabe que a mão de obra infantil e juvenil é muito empregada”, diz Lopes. Em 2013, os fiscais devem voltar aos estabelecimentos fiscalizados, para controlar a reincidência do problema.

Em 2012, também receberam atenção de vários estados irregularridades do trabalho de crianças e jovens em clubes de futebol, casos pontuais de trabalho artístico e o trabalho infantil urbano, na maior parte das vezes, no comércio de rua.

Trabalho infantil urbano  Foto: MPT/Divulgação

Nós priorizamos também o setor formal, que é onde há relação de emprego, porque essa é a competência natural do Ministério do Trabalho”, diz Luiz. Assim, em 2012, uma das frentes de trabalho buscou fiscalizar as condições de trabalho em empresas que declaravam empregar funcionários com menos de 18 anos na Relação Anual de Informações Sociais.

Luiz destaca também a regularização dos trabalhos de adolescentes maiores de 14 anos, que é permitido pela lei, em condições de aprendizagem (menores de 16 anos) ou protegidas (16 e 17 anos). “A fiscalização tem feito um trabalho excelente no setor de aprendizagem, ao orientar as empresas a adequar as funções e estabelecer parcerias com instituições de ensino. Este ano já foi regularizado o traballho de 120 mil aprendizes, mais que o dobro de todo o ano passado”, destaca.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

Feira, lugar para criança trabalhar?

Crianças e adolescentes carregadores, empacotadores e vendedores passam despercebidos em meio aos adultos que compram e vendem nas feiras livres

Por Denise Galvani, da Repórter Brasil

A feira livre leva o nome de Cidade da Esperança, o mesmo do bairro na zona oeste de Natal, mas muitas crianças da vizinhança sofrem com a falta de perspectivas. Um ano depois de afastar do trabalho 42 crianças que passavam os domingos carregando encomendas para os clientes da feira,  fiscais do Ministéiro do Trabalho no Estado (MTE) encontraram, em outubro, outras 39 fazendo o mesmo serviço.

“São crianças de 8 a 15 anos, muitas visivelmente em situação de abandono, com bicho de pé, problemas dentários, vê-se que não têm assistência nenhuma. A família muitas vezes aluga ou compra o carrinho para os meninos poderem trabalhar”, conta a auditora fiscal Marinalva Cardoso Dantas.

Depois da ação em 2011, as crianças que trabalhavam na feira foram encaminhadas para a rede de proteção social local. Muitas famílias passaram então a receber o Bolsa Família, que exige um nível de 85% de frequência escolar das crianças do domicílio, uma forma de mantê-las longe do trabalho. Na ação deste ano, duas das 49 crianças encontradas pelos fiscais em 2011 continuavam na feira de Cidade da Esperança; as demais começaram de um ano para cá.

A situação particular de um menino chamou a atenção de Marinalva. Com os pés machucados e infectados, ele circulava, arrastando sandálias grandes demais, em busca de clientes. Esperava desde as 6h para levar as compras de alguém. “Eram 9h e ele ainda não tinha ganhado nada, precisamos pagar fretes para ele poder comer”, lembra. “Ele só sabia o primeiro nome, estava completamente alheio a tudo”.

Enquanto lavravam os autos de infração, responsabilizando a prefeitura de Natal pela situação das crianças na feira, os fiscais foram abordados por feirantes de Cidade da Esperança. É uma situação frequente nos trabalhos de fiscalização feito pelo MTE, mas a atitude na segunda visita, segundo Marinalva, foi de especial agressividade. “Diziam que estávamos nos metendo numa coisa que era certa, que era bom criança trabalhar pra não virar marginal… Na verdade essa situação é muito confortável para eles, que gostam de ter os meninos carregadores por perto, para atrair e convencer o cliente a levar mais”.

Crianças vítimas de trabalho infantil estão mais sujeitas a ter problemas com aproveitamento escolar, saúde e socialização do que as demais.

Crianças pelas feiras do Brasil

Clique no mapa para ver infográfico interativo com a distribuição do trabalho infantil no Brasil

É recorrente o emprego de crianças e jovens, por uns poucos trocados, em feiras livres de grandes centros urbanos.  Ação em junho deste ano afastou 32 crianças e adolescentres entre 6  e 17 anos de atividades de venda, carregamento de mercadorias e lavagem de veículos no Ceasa do Recife. Em audiência com o Ministério Público Estadual, o Ceasa informo que menores de 18 anos não entram no complexo desacompanhados de um responsável, e se comprometeu a aprimorar a ficalização do problema.

No Recife, o problema de crianças trabalhando no comércio informal extrapola as feiras e chega também a outro ambiente, onde a situação é tão comum que quase não chama atenção: a praia. De janeiro a setembro de 2012, só na Praia de Boa Viagem, a fiscalização identificou 73 crianças e jovens, entre 7 e 17 anos, que trabalhavam como ambulantes. Paula Neves, aditora fiscal do Estado, conta da dificuldade em se fiscalizar. “A gente sabe que alguém fornece material para as crianças venderem – picolé, bronzeador – , mas não consegue identificar essa pessoa para lavrar o auto de infração”, conta.

Também em Pernambuco, a feira de Caruaru é famosa, considerada por alguns a maior do mundo.  No mesmo mês, ação dos fiscais localizou, em menos de duas horas, 64 crianças e adolescentes entre  8 e 17 anos realizando venda e carregamento de mercadorias. O restante do dia foi dedicado a organizar os dados e a situação de cada criança, encaminhados ao Conselho Tutelar e à Prefeitura.

Voltar regularmente aos grandes focos de trabalho infantil é considerado essencial para acabar efetivamente com o problema.  Esse trabalho, no entanto, é prejudicado pelo número ainda reduzido de fiscais.

A Superintendência Regional do Rio Grande do Sul obteve sucesso com uma ação dirigida na cidade de Esteio, que organiza anualmente a feira de agronegócio Expointer. Segundo informações da Secretaria, desde 2006, uma força-tarefa formada pelo MTE, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Conselho Tutelar de Esteio fiscaliza situações de trabalho de crianças e jovens e orientam as famílias. Nos primeiros anos, eram mais de 200 crianças trabalhando no centro de exposições. Na edição de 2012, que aconteceu entre agosto e setembro, foram três casos.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

Exploração sexual de adolescentes indígenas

Rede de exploração sexual de São Gabriel da Cachoeira (AM) passa a ser investigada em âmbito federal. Vulnerabilidade de meninas indígenas preocupa

    Por Daniel Santini, da Repórter Brasil

O caso de exploração de crianças e adolescentes indígenas em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, passou à esfera federal. Além da investigação aberta há cerca de um mês a pedido do Ministério Público Federal, agora a Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República e os deputados federais da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Tráfico de Pessoas  passaram a acompanhar o caso. Na semana passada, a ministra Maria do Rosário visitou o centro de acolhida Kunhantãi Uka suri (Casa da Menina Feliz), onde vítimas de abusos receberam apoio de freiras salesianas. Os deputados, por sua vez, não só aprovaram requerimento para uma diligência na cidade, como também a realização de uma audiência pública para debater o problema.

As primeiras denúncias da exploração foram feitas em 2008, mas nem o Ministério Público Estadual, nem Polícia Civil, conseguiram desmantelar a rede de pedofilia local. As violências cometidas ganharam repercussão nacional neste mês, após notícias de que a virgindade de uma menina havia sido vendida por R$ 20.

Meninas ameaçadas temem represálias. Imagens: Repórter Brasil

As autoridades ouviram depoimentos de 12 garotas e listaram nove suspeitos. Quem acompanha a questão na região alerta, no entanto, que a rede é bem maior. “Tem muito mais do que os 12 casos. Há muitas meninas amedrontadas por essas pessoas, meninas que se calam diante de ameaças”, diz o bispo Edson Taschetto Damian, que afirma que freiras da congregação que recebeu as vítimas vêm sofrendo ameaças e perseguição.

“Elas estão em contato com essas meninas mais pobres e exploradas. Acabam ouvindo e descobrindo os casos, que não são poucos. Os órgãos judiciários locais estão pouco presentes. Embora tenha Tribunal de Justiça e Procuradoria do Estado [em São Gabriel da Cachoeira], os responsáveis vivem em Manaus e permanecem poucos dias na cidade”, completa. De acordo com o religioso, a participação do procurador Júlio José Araújo Junior, do Ministério Público Federal, foi fundamental para que a investigação passasse ao âmbito federal.

Objeto sexual
“Por que existe essa exploração? Porque para alguns brancos o índio é objeto, não conta, não tem dignidade ou valor. Eles fazem o que bem entendem”, diz o bispo Edson. O crescimento populacional acelerado no município é apontado como um dos fatores que agravaram a vulnerabilidade das meninas indígenas. O número de moradores do município encravado na floresta, na fronteira do Brasil com Venezuela e Colômbia, quase dobrou em duas décadas. De 23.140 pessoas em 1991, passou para 37.896 em 2010, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mais de 90% dos moradores são indígenas.

Em 2008, a eleição do prefeito Pedro Garcia (PT) e seu vice André Baniwa (PV), primeiros índios a assumirem o poder municipal, acelerou a urbanização. Muitas famílias trocaram aldeias pela cidade, esperançosas em relação a acesso a mais políticas e serviços públicos. A desigualdade social, no entanto, não mudou. Segundo os dados mais recentes do IBGE, enquanto a renda média mensal dos indígenas é de R$ 601, a da população de cor branca é de R$ 2.387.

A relação entre urbanização acelerada em municípios indígenas e exploração sexual infantil não é exclusividade do município no norte do Amazonas. Em julho do ano passado, em encontro do Grupo de Estudos sobre Infância Indígena e Trabalho Infantil da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), integrantes manifestaram a preocupação em relação a este tema. Dernival dos Santos, representante dos índios Kiriris, afirmou na ocasião que a saída de jovens das aldeias para as cidades trazia riscos de exploração pela prostituição e alcoolismo.

Diante da exposição das crianças indígenas ao risco de exploração sexual, os integrantes apontaram a necessidade de estratégias prioritárias para lidar com o problema.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

Trabalho infantil e vulnerabilidade

Crianças vítimas de trabalho infantil estão mais sujeitas a ter problemas com aproveitamento escolar, saúde e socialização

Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil

“Trabalho para me preparar para a vida”. Essa frase, dita por um menino de 14 anos, impressionou a coordenadora de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) do Brasil, que conduzia encontros para um estudo sobre exclusão escolar no país. “Aquilo acabou comigo. Não deveria ser a escola, a infância a preparar para a vida?”, pergunta Maria de Salete Silva.

Para as abordagens mais modernas de políticas públicas para a infância, o acesso à educação e a erradicação do trabalho infantil são um desafio conjunto. “Sabemos hoje que não basta haver escola, é preciso garantir a universalização da matrícula e a aprendizagem adequada, na idade certa. Com uma realidade de trabalho infantil, não há como fazer isso”, diz Maria de Salete.

O desempenho e o abandono escolares são indicadores importantes da vulnerabilidade na infância, que, em muitos casos, no Brasil, está ligada ao trabalho precoce. Por afastar a criança da escola, a vulnerabilidade infantil também se converte facilmente em vulnerabilidade de adultos. Um estudo da OIT apontou, por exemplo, que mais de 90% dos trabalhadores brasileiros resgatados de situação análoga à de escravidão foram também explorados durante a infância.

Para proteger a infância e a adolescência, a legislação brasileira proíbe qualquer trabalho para crianças com menos de 14 anos e reconhece o direito do adolescente à profissionalização, desde que com “respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”, segundo o artigo 69 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

De acordo com Renato Mendes, coordenador de erradicação do trabalho infantil da OIT e um dos principais estudiosos do tema no Brasil, são três os aspectos do desenvolvimento individual afetados pelo trabalho infantil: o aproveitamento escolar, a saúde e a socialização.

Fotos: João Roberto Ripper / Imagens Humanas

Educação

No estudo da Unicef, conduzido simultaneamente em mais de 20 países, concluiu-se que o trabalho infantil contribui duplamente para a exclusão escolar: de forma direta, no caso das crianças que deixam a escola para trabalhar; e de forma indireta, porque o trabalho prejudica o desempenho escolar, e o aluno com defasagem de aprendizado deixa a escola mais facilmente. “O traballho infantil e o atraso escolar são os fatores universais da exclusão escolar, em todos os países”, concluiu Salete.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) permite medir o impacto do trabalho na defasagem escolar das crianças brasileiras. O doutorado da pedagoga Amélia Artes analisou dados da PNAD de 2006 relativos a crianças de 10 a 14 anos e constatou que o trabalho tem impacto uniforme sobre os alunos dessa faixa etária, meninos e meninas.  “Prejudica o desempenho tanto no caso dos meninos, que trabalham mais fora de casa, quanto no caso de meninas, que fazem mais trabalho doméstico”, explica Amélia. A tese dela investigou se o trabalho fora de casa, estatisticamente mais frequente entre meninos, poderia ser um fator que contribuiu para o pior desempenho deles.

A pesquisa encontrou defasagem idade-série com maior frequência entre as crianças que trabalham: em 2006, 68,4% dos meninos e 49,4% das meninas que trabalhavam estavam atrasados na escola, enquanto esse percentual cai para 50,5% e 41,3%, respectivamente, entre meninos e meninas que não trabalham.

No Brasil, segundo relatório da Unicef, publicado em agosto deste ano, são 3,6 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola. Para eles, frequentar a escola seria obrigatório, de acordo com a legislação brasileira. “Não se pode chamar isso de acesso universal à educação, temos insistido em derrubar esse mito no Brasil. Mesmo na faixa do Ensino Fundamental (dos 6 aos 14 anos), em que 98% estão matriculados, a parcela dos 2% fora da escola representa mais de 600 mil crianças”, diz Maria Salete.

Como os dois grandes fatores determinantes da exclusão, figuram o trabalho infantil e o atraso escolar. Por isso, universalizar a matrícula sem investir na qualidade da escola e no acompanhamento adequado da criança é “enxugar gelo”, nas palavras da representante do Unicef. “As escolas poderiam se envolver muito mais no combate ao trabalho infantil e à vulnerabilidade. Elas precisam sentir que também são parte da rede de atenção e do sistema de garantias à criança”, afirma.

Saúde

Um exemplo da combinação de esforços vindos de várias áreas para a erradicação do trabalho infantil é um termo de cooperação assinado entre o Ministério da Saúde e o Ministério Público do Trabalho (MPT) no final de 2010. Desde 2004, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem procedimentos para identificar se trabalham os menores de 18 anos atendidos na rede pública de saúde. O acordo com o MPT permitiu mais eficiência no encaminhamento dessas crianças e jovens à rede de proteção local.

Carmen Silveira, coordenadora de vigilância da saúde do trabalho no Ministério da Saúde, integra ainda grupos de trabalho interministerais que estudam maneiras de melhorar essa articulação. Segundo ela, os postos de atendimento emergencial têm condições de identificar se crianças e jovens se acidentaram ou desenvolveram alguma doença em função do trabalho.

Entre 2007 e 2011, levantamento preliminar do SUS identificou mais de 7,5 mil casos no país, muitos envolvendo acidentes de trabalho doméstico ou no campo. Segundo Renato Mendes, da OIT, acidentes de trabalho atingem duas vezes mais crianças que adultos, já que elas não atingiram a maturidade do de desenvolvimento físico e motor. “A visão periférica, por exemplo, só chega ao fim de seu desenvolvimento entre os 18 e 21 anos. Descobriu-se que, por esse motivo, é altíssimo o índice de acidentes entre crianças e adolescentes que trabalham na colheita do babaçu, uma árvore espinhenta. Algumas são feridas nos olhos e perdem à visão”, diz.

Na lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, que o Brasil promete erradicar até 2015, constam atividades consideradas inadequadas por oferecerem claros riscos à saúde e ao desenvolvimento físico de adolescentes. “Há incidência de câncer de pele, por exemplo, entre crianças que trabalham nas praias, no campo ou nas feiras, expondo-se ao sol por longos períodos e sem proteção”, conta Carmen.

Clique no mapa para ver infográfico interativo com a distribuição do trabalho infantil no Brasil

Socialização

Ainda do ponto de vista da saúde, a convivência de crianças entre si é importante para seu pleno desenvolvimento. “O contato com o lúdico é importante”, diz Carmen. O “lúdico”, essencial ao desenvolvimento infantil, envolve contato com outras crianças e tempo de brincadeira, que são roubados por uma jornada de trabalho.

Crianças e adolescentes em condições de descobrir e exercitar seus potenciais tornam-se adultos mais preparados para a vida, concordam especialistas de várias áreas, especialmente em sociedades e mercados de trabalho cada vez mais exigentes. O economista Márcio Pochmann, especialista em estudos do trabalho, defende, por exemplo, que o ingresso no mercado de trabalho moderno deveria acontecer depois de um ciclo de educação intensiva e formação de personalidade que, em geral, só vai se concluir depois dos 20 anos.

Pela experiência de Salete, do Unicef, é uma questão delicada convencer a sociedade de que trabalho não só não ajuda, como também atrapalha o desenvolvimento da criança. “Não é que os pais não valorizem a formação do filho. Muitos querem que os filhos estudem, tenham oportunidades que eles próprios não tiveram, mas não conseguem entender que trabalho desprotegido não é formação”, afirma. “É comum achar que o menino que trabalha no campo está aprendendo o ofício do pai, e que a menina que olha os irmãos treina para um dia cuidar dos próprios filhos”.

A defasagem escolar, como consequência do trabalho infantil, também é um problema impedindo a socialização adequada das crianças e adolescentes com colegas da mesma idade. “Nos últimos anos do Ensino Fundamental, isso fica muito evidente. Metade dos alunos de 15 a 17 anos, que deveriam estar no ensino Médio, estão no Ensino Fundamental”, diz Salete, do Unicef.

O trabalho desprotegido na faixa etária dos 15 aos 17 anos tem preocupado, e equacionar o problema da educação de qualidade é fundamental para manter o interesse dos jovens na escola. “Acontece muito: o adolescente, desanimado, para de estudar para fazer algum trabalho que lhe parece mais atraente.  Aí ele volta no ano seguinte para a Educação de Jovens e Adultos. Como esperar que o adolescente sinta que a escola é lugar para ele, se ora ele é tratado como uma criança grande, ora como um adulto pequeno?”, pergunta Salete.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente