Campo – Meia infância http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br Desafios do combate ao trabalho infanto-juvenil Thu, 20 Apr 2017 13:16:04 +0000 pt-BR hourly 1 Operação flagra trabalho infantil em plantações no interior de São Paulo http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/operacao-flagra-trabalho-infantil-em-plantacoes-no-interior-de-sao-paulo/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/operacao-flagra-trabalho-infantil-em-plantacoes-no-interior-de-sao-paulo/#comments Thu, 03 Oct 2013 15:40:21 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1653 Fiscalização encontrou 21 meninos e meninas trabalhando na colheita de vegetais em seis municípios paulistas. A maior dificuldade, no entanto, é superar aceitação cultural do problema

Por Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Uma fiscalização conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) localizou 21 crianças e adolescentes vítimas de trabalho infantil em pequenas propriedades de seis municípios do interior de São Paulo. Seis tinham entre seis e doze anos. Elas colhiam beterrabas de chinelos ou descalços, sem qualquer proteção. Alguns exibiam ferimentos nas mãos.

Entre as vítimas, seis crianças com menos de 12 anos trabalhavam na colheita de beterraba (Fotos: MPT-15)

Entre as vítimas, seis crianças com menos de 12 anos trabalhavam na colheita de beterraba (Fotos: MPT-15)

Os municípios de Itobi, Casa Branca, São José do Rio Pardo, Santa Cruz das Palmeiras, Vargem Grande do Sul e Mococa ficam a cerca de 250 quilômetros da capital paulista. A região tem 223 mil habitantes e aproximadamente 10 mil trabalhadores no meio rural, divididos entre 1,2 mil produtores. Eles se distribuem principalmente nas colheitas de batata, cebola, beterraba e laranja.

A diligência, que aconteceu entre 9 e 14 de setembro, faz parte de uma operação maior dos dois órgãos, que visa reduzir a incidência de trabalho infantil e irregularidades trabalhistas na região. Em agosto, uma audiência reuniu cem produtores rurais na Câmara Municipal de Itobi com o objetivo de conscientizá-los sobre a proibição do trabalho de crianças e adolescentes em plantações, que ainda é comum na região.

Trabalhador com os pés descalços: falta de proteção é recorrente

Trabalhador com os pés descalços: falta de equipamento de proteção é recorrente

Entre os desafios para o combate ao emprego de meninos e meninas nas lavouras está a aceitação cultural; a prática atravessa gerações. Por envolver condições insalubres e manuseio de ferramentas perigosas, o trabalho rural infantil nas condições encontradas neste caso pode ser enquadrado, segundo o MPT, entre as piores formas de trabalho infantil, definidas em decreto de 2008, que regulamentou a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Quem tem menos de 18 anos não pode trabalhar nestas atividades nem como aprendiz.

Além das crianças e adolescentes, a fiscalização encontrou cerca de mil pessoas atuando em 25 fazendas sem registro em carteira ou equipamento de proteção individual. Elas não tinham acesso a banheiro e os alojamentos de 19 dos trabalhadores, que não eram da região, estavam em condições ruins.

O número teria sido ainda maior, se não fossem as dificuldades para a fiscalização: “Quando viram que estávamos chegando a uma das fazendas, colocaram um carro para barrar nossa entrada. Então, nós tivemos que pular a cerca e sair correndo atrás dos três ônibus onde estavam alguns trabalhadores. Eu mesmo tive que correr por 300 metros para pegar um deles”, contou o auditor fiscal do trabalho Antônio Valério Morillas Júnior, que acompanhou a operação. Outro problema apontado por Antônio é a falta de funcionários do MTE, que deixa o órgão em uma “situação extremamente precária”. Para fiscalizar as 25 fazendas, eles puderam contar com apenas sete auditores fiscais.

Entidades organizaram audiência com produtores da região para conscientização

Entidades organizaram audiência com produtores da região para conscientização

Para erradicar o trabalho infantil e sanar as questões trabalhistas as entidades têm orientado os produtores a criar cooperativas rurais para, por exemplo, baratear os custos com a compra de equipamentos de proteção individual: “Como as colheitas são de cultura rápida, mas devem ser feitas em momentos diferentes, os produtores podem compartilhar os equipamentos quando estes estiverem ociosos”, explica o auditor. Apesar do trabalho educacional, as fiscalizações devem continuar e a equipe já disse que vai voltar às fazendas no início do próximo ano, quando novas colheitas serão feitas.

 

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Crianças sem identidade, o trabalho infantil na produção de castanha de caju http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-sem-identidade-o-trabalho-infantil-na-producao-de-castanha-de-caju/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-sem-identidade-o-trabalho-infantil-na-producao-de-castanha-de-caju/#comments Thu, 19 Sep 2013 13:59:21 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1610 Meninos e meninas têm as mãos queimadas por ácido e perdem digitais na quebra da castanha do caju. Mesmo após denúncias, problema persiste no Rio Grande do Norte

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Enviado a João Câmara (RN) – Olhe a ponta do seu dedo. Repare no conjunto minúsculo de linhas que formam sua identidade. Essa combinação é única, um padrão só seu, que não se repete. As crianças que trabalham na quebra da castanha do caju em João Câmara, no interior do Rio Grande do Norte, não têm digitais. A pele das mãos é fininha e a ponta dos dedos, que costumam segurar as castanhas a serem quebradas, é lisa, sem as ranhuras que ficam marcadas a tinta nos documentos de identidade.

O óleo presente na casca da castanha de caju é ácido. Mais conhecido como LCC (Líquido da Castanha de Caju), esse líquido melado que gruda na pele e é difícil de tirar tem em sua composição ácido anacárdico, que corrói a pele, provoca irritações e queimaduras químicas. No vilarejo Amarelão, na zona rural de João Câmara, as castanhas são torradas – além de corroer a pele, o óleo é inflamável – e quebradas em um sistema de produção que envolve famílias inteiras, incluindo as crianças.

colocara uma legenda aqui

Com a pele cada vez mais lisa, as pontas dos dedos perdem as digitais, e as linhas e traços de identidade se esfacelam (clique nas fotos para ampliar)

O óleo é pegajoso. Basta pegar uma castanha e quebrá-la para ficar com a pele manchada por alguns dias. Nem todas as crianças e os adultos que trabalham no processo sabem que o óleo é ácido. Muitos acham que a mão fica assim machucada por conta da água sanitária utilizada para tirar o preto encardido da mão depois de horas seguidas manuseando e quebrando as castanhas torradas. “Se fosse assim, as pessoas que usam água sanitária para limpeza estariam roubadas! É o óleo LCC que tem uma ação irritante, ele é cáustico, produz lesões e chega a retirar as digitais”, explica o médico Salim Amed Ali, autor de diferentes estudos sobre doenças ocupacionais para a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), do Ministério do Trabalho e Emprego. A perda da identidade não é permanente. Com o tempo, as digitais voltam se a pessoa se afastar da atividade.

Sobrevivência
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação. “A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.

Um menino e uma adolescente se revezando ao redor da mesa. A garota é quem cuida do fogo, alimenta a lata improvisada com cascas de castanha e controla as labaredas espirrando água com uma garrafinha. A fumaça sobe e cobre seu rosto. Um cachorro dorme perto do fogo. Eles estão nessa atividade desde a madrugada, começaram às 3 horas. É preciso começar cedo, no sol do sertão nordestino, não dá para continuar com o calor de meio-dia.

Os trabalhos começam cedo, devido ao calor do sertão nordestino; ao meio-dia, o sol é muito forte para prosseguir

O garoto tem 13 anos e, assim como a irmã, cursou até a quarta série do ensino fundamental mas tem dificuldades para ler e escrever. Largou a escola na quinta série porque teria de viajar uma hora de ônibus para ir até uma que atende alunos mais velhos, localizada na área urbana de João Câmara – trabalhar e estudar ao mesmo tempo já é difícil quando a escola é perto; quando não há escolas perto, impossível. Ele quebra as castanhas com agilidade, seus dedos fininhos seguram, selecionam e escapam das pancadas duras.

São poucas as palavras, ambos trabalham em silêncio e as respostas são curtas. Na mesa vizinha, os mais velhos reclamam da falta de água – a que a prefeitura tem entregue para abastecer as cisternas do bairro é salobra. “Dá dor de barriga e aí a gente tem de comprar água de garrafa, vê se pode”, conta uma mulher de 63 anos, que já passou fome e acha melhor que as crianças trabalhem com castanhas do que colhendo algodão ou roçando pasto para o gado, atividades que exerceu quando criança.

Meninas, meninos, pais, mães e famílias inteiras se misturam para organizar a produção das castanhas

Em outra unidade de produção, uma família adapta o ritmo à existência de um recém-nascido. Uma adolescente, também de 15 anos, se reveza com o marido de 18 anos e sai, de tempos em tempos, para amamentar o bebê. “Eu lavo as mãos bem antes de pegá-lo, para não sujá-lo”, conta a mãe, antes de fazer uma pausa às 4 horas. O trabalho costuma ir até as 11 horas e, à tarde, todos trabalham tirando a pele fininha.

O emprego de crianças na quebra da castanha de caju está incluído na lista de piores formas de trabalho infantil, ao lado de atividades como beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar. A situação a que estão submetidas as crianças de João Câmara (RN) não chega a ser novidade. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, tem realizado sucessivas ações de fiscalização, denunciado a situação e cobrado soluções. “Não dá para aceitar que as crianças continuem nessa situação, mas não basta reprimir, é preciso oferecer alternativas”.

A representante do poder público reconhece o problema na região, mas admite: “não conseguimos avançar”

Além de identificar as crianças e reunir informações para relatório a ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade, ela também tem procurado cobrar providências por parte da prefeitura sobre a situação das famílias. Os programas sociais são considerados insuficientes pelos moradores, que reclamam da atuação do poder público. “Sabemos do que está acontecendo, mas até agora não conseguimos avançar”, admite Maria Redivan Rodrigues, secretária de Assistência Social e primeira-dama de João Câmara, que promete solucionar o problema em um ano, até setembro de 2014. O Brasil se comprometeu a erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2015, mas, mesmo com denúncias, situações com a de João Câmara persistem.

Em 24 de fevereiro de 2012, o promotor Roger de Melo Rodrigues, do Ministério Público Estadual, abriu o Inquérito Civil nº 06.2012.00003777-7 após denúncias. “Ele disse que ia processar as famílias, tentou proibir as pessoas de trabalhar, deixou todo mundo apavorado. Foi muito ruim”, diz Ivoneide Campos, presidente da Associação Comunitária do Amarelão. “A fumaça faz mal, a gente sabe, mas as famílias não querem mudar o método com que sempre trabalharam. E não adianta forçar, tem de transformar em querer, ajudar na busca de alternativas”, defende.

Procurado para comentar a reclamação, o promotor negou, em nota, que sua atuação tem sido meramente repressiva. Ele diz que “os problemas relacionados à queima de castanha, tais como impacto ambiental, danos à saúde dos moradores e trabalho infantil, não têm passado desapercebidos do Ministério Público Estadual” e que “em vez de buscar a repressão de delitos relacionados ao caso, esta Promotoria tem priorizado o diálogo com a respectiva comunidade, já havendo sido realizadas duas reuniões no local com todos os interessados e representantes de órgãos municipais, estaduais e federais, objetivando a construção de um consenso para solucionar o caso”.

O promotor reclama, porém, que embora “busque uma resposta adequada e legítima aos problemas, tem enfrentado alguma resistência relacionada ao costume já enraizado, da parte de algumas famílias locais, de proceder à queima de castanhas ao alvedrio dos respectivos danos decorrentes, o que não impedirá uma atuação isenta e efetiva para a resolução do caso”.

Potiguar
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.

Assim que as castanhas estão torradas, as mãos se levantam; pancadas quebram uma noz, depois outra e outra, e outra

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O óleo se esparrama em torno das unhas, pela ponta dos dedos e, quando se vê, as mãos inteiras já estão cheias de ácido

“Tentamos identificar quem lucra com isso, mas é um sistema muito primitivo. As indústrias organizaram a produção e estão processando diretamente as castanhas, não identificamos nenhuma envolvida. Os intermediários são pequenos comerciantes que adquirem o produto diretamente com as famílias”, explica o auditor fiscal José Roberto Moreira da Silva.

Criatividade na busca por soluções para as famílias não falta. Nilson Caetano Bezerra, do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador Aprendiz, por exemplo, sonha em fazer parcerias com as empresas de produção de energia eólica, que fazem multiplicar o número de torres de geração na região, para empregar adolescentes como aprendizes. E em providenciar máquinas para que os adultos não tenham de manusear as castanhas torradas. Experiências com mecanização já aconteceram, mas o descasque manual ainda é o preferido porque a taxa de desperdício é menor.

Mesmo que já exista formas de produção mecanizadas, ainda há preferência pelas técnicas manuais, que seriam mais produtivas

Em fevereiro, o juiz Arnaldo José Duarte do Amaral, titular da 9ª Vara do Trabalho de João Pessoa, visitou a comunidade e também encontrou as crianças trabalhando na produção de castanhas. Ele escreveu um artigo sobre a questão e, desde então, tenta articular soluções e envolver mais interessados em resolver o problema. “Quando estive lá como juiz, me perguntavam se ia prender alguém. Não é esse o papel do judiciário, o objetivo não é prender ninguém, é achar solução”, diz, defendendo a formação de cooperativas e mecanismos de economia solidária como o melhor caminho para erradicar o trabalho infantil e melhorar a condição de trabalho dos adultos. “A gente tenta corrigir essas questões há séculos, sem sucesso. Não bastam ações repressivas, que vão além de tentar punir.”

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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“Crianças são mais suscetíveis a infecções” http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-sao-mais-suscetiveis-a-infeccoes/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-sao-mais-suscetiveis-a-infeccoes/#comments Thu, 05 Sep 2013 18:02:52 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1531 Especialista alerta para o risco à saúde dos trabalhadores de matadouros que funcionam em condições inadequadas e diz que situação é especialmente delicada para crianças

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir 

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – Isabel Cristina Lopes Dias é bióloga e veterinária, e estuda as condições de saúde e trabalho em abatedouros nordestinos. Ela é especialista em Saúde, Meio Ambiente e Segurança e em Engenharia Ambiental, além de mestre em Saúde e Ambiente. Em artigos científicos e estudos específicos, Isabel alerta para a frequente ocorrência de zoonoses envolvendo matadouros, e cobra políticas públicas e ações para minimizar o problema. Procurada pela reportagem, a especialista comentou a situação flagrada em Lagoa de Pedras, no Rio Grande do Norte, destacando a gravidade de crianças estarem submetidas às condições encontradas, e detalhou os riscos e doenças a que estão sujeitos todos os envolvidos.

O fato de crianças estarem envolvidas na prática é um agravante? Em termos de sistema imunológico, elas estão mais sujeitas a infecções?
O envolvimento de crianças precocemente no mundo do trabalho (mesmo que não tenha tantos perigos associados) é por si só um grave problema social. No caso específico de abatedouros, onde o trabalho é considerado insalubre, exaustivo e com vários perigos associados, a situação torna-se mais delicada ainda. Dependendo da faixa etária da criança envolvida, os riscos podem ser maiores ou menores, mas, de modo geral, nesse ambiente de trabalho as crianças estão mais vulneráveis tanto às doenças quanto aos acidentes, pois precisam realizar tarefas e manusear instrumentos desconexos de sua capacidade física e psicológica, justamente em uma fase em que são mais imaturas e ingênuas. A curiosidade natural das crianças também pode levá-las a se envolverem mais facilmente em acidentes ou a contraírem doenças. Quanto ao sistema imunológico, as crianças são mais suscetíveis, tanto às doenças mais comuns como gripes e resfriados quanto às doenças infecciosas, pois é nessa fase que a imunidade está sendo construída. Por isso, para fortalecer o desenvolvimento de suas defesas naturais, as crianças devem realizar, durante esse período, hábitos considerados saudáveis, como dormir e se alimentar bem, estudar e brincar, conviver em ambientes tranquilos e livres de agentes estressores, o contrário do que é verificado em abatedouros. Além dessas implicações mais imediatas (impacto no desenvolvimento do sistema imune) o estresse, o barulho e a repetição, típicos do trabalho em abatedouros, podem também ter consequências graves no desenvolvimento geral da criança, principalmente o psíquico.

Lagoa de pedras

Crianças e adultos trabalham com chinelos ou descalços, caminhando sobre sangue e fezes. Fotos: Daniel Santini

Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas realizando tarefas inadequadas para capacidade física e psicológica. Fotos: Daniel Santini

Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas realizando tarefas inadequadas para capacidade física e psicológica

As pessoas trabalhavam descalças e/ou com chinelos abertos. Trabalhadores caminhavam sobre sangue, fluidos internos e até sobre o conteúdo do intestino dos animais recém-abatidos. Quais problemas de saúde podem acontecer em função dessa prática?
Os principais problemas de saúde dizem respeito às zoonoses, que são doenças transmitidas entre os animais e o homem. Um agente zoonótico pode ser uma bactéria, um vírus, um fungo ou outro agente de doença transmissível, existindo mais de 200 tipos de zoonoses transmissíveis ao homem, segundo dados atuais da Organização Mundial de Saúde. Em abatedouros clandestinos é comum que os animais sejam abatidos sem passar por nenhum tipo de inspeção “ante-mortem”, permitindo que animais doentes sejam encaminhados para o abate com o risco de contaminar os trabalhadores e toda produção com doenças contagiosas, causando danos à saúde e à economia. A desproteção desses trabalhadores e o contato direto e/ou indireto com animais e/ou suas secreções são situações críticas de exposição e transmissão de microrganismos zoonóticos.

Todos, adultos e crianças, manuseavam instrumentos altamente cortantes (machadinhas, facas e cutelos) sem nenhuma proteção para evitar cortes e afins. Muitos relatam acidentes constantes e têm marcas de cortes abertos. Que doenças podem ser transmitidas em função desse comportamento?
Em virtude da exposição a diversos perigos, a atuação na indústria de carnes é considerada internacionalmente como trabalho perigoso. Inúmeros trabalhadores no mundo inteiro se ferem e vários morrem todos os anos devido a acidentes nos locais de trabalho. Problemas ocupacionais importantes estão relacionados a lesões de membros superiores, casos em que a manipulação de material perfuro-cortante (utilizado na maioria das etapas de abate) é o agente de risco de acidente de maior relevância, sendo a faca e afins instrumentos responsáveis por parcela significativa dos acidentes de trabalho registrados nesta ocupação. Como medida preventiva, deveria ser adotado o uso do equipamento de proteção individual – EPI, pois, conforme dispõe a Norma Regulamentadora – 6, do Ministério do Trabalho e Emprego, a empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, EPI adequado ao risco, em perfeito estado de conservação e funcionamento. Apesar da obrigatoriedade, essa situação não se verifica nos locais de abate.

Trabalhador descalço no matadouro. Problemas de saúde e acidentes de trabalho são constantes entre adultos e crianças do setor

Trabalhador descalço no matadouro. Problemas de saúde e acidentes de trabalho são constantes entre adultos e crianças do setor

Trabalhadores com lesões e feridas nas mãos devem ser afastados da função e evitar o contato direto com a carne, uma vez que isso pode facilitar tanto a contaminação da carne que está sendo manipulada como a infecção do trabalhador, pela entrada de micro-organismos zoonóticos através das lesões. Alguns problemas relacionados com agentes biológicos zoonóticos podem ser lesões de pele, pelo antraz e vaccinia; febres, ocasionadas por brucelose e Chlamydia spp. no abate de frangos; ocorrência de doenças entéricas como a salmonelose – que além do risco de infecção aguda, também pode causar artrite reativa pós-infecção –, campilobacteriose e yersinose; toxoplasmose ocasionada pelo contato direto com Toxoplasma gondii; tuberculose ocasionada pelo Mycobacterium bovis por inalação de aerossóis ou acometimento cutâneo – contato direto com carcaças contaminadas; surtos de leptospirose e vírus Nipah (essas doenças podem afetar trabalhadores que entram em contato com grandes volumes de urina durante o trabalho nas indústrias de carne).

As diferentes partes dos bois recém-abatidos ficam espalhadas pelo matadouro, que é aberto e sem nenhuma proteção. As fezes armazenadas no intestino são derramadas a não mais do que um metro da carne que será cortada e distribuída para consumo. Qual o risco de contaminação?
A legislação que regulamenta o funcionamento desses estabelecimentos, quer seja a nível federal, estadual ou municipal, requer infraestrutura e procedimentos higiênico-sanitários mínimos. Como exemplos de padrão mínimo exigido para funcionamento, primeiramente, o estabelecimento deve ser afastado dos limites das vias públicas; as vias e pátios internos devem ser pavimentados; pisos e paredes convenientemente impermeabilizados com material adequado, construídos de modo a facilitar a coleta e afastamento das águas residuárias; mesas de aço inoxidável; rede de abastecimento de água e, quando necessário, tratamento de água; câmaras frias segundo a capacidade do estabelecimento, para armazenamento adequado da carne; carros de transporte da carne com sistema de refrigeração, dentre outros. Quando essas medidas mínimas não são respeitadas, o risco de contaminação da carne que está sendo manipulada é elevado, revestindo-se de importância em saúde pública, com perigos para a população consumidora em geral.

Homem abre e limpa intestino ao lado de onde garoto corta carne do boi

Homem abre e limpa intestino ao lado de onde garoto corta carne do boi

Após serem cortadas e separadas, patas dos boi são transportadas em carrinho de mão

Após serem cortadas e separadas, patas dos boi são transportadas em carrinho de mão

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouros

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Orçamento de meio milhão para novo matadouro está parado http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/orcamento-de-meio-milhao-para-novo-matadouro-esta-parado/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/orcamento-de-meio-milhao-para-novo-matadouro-esta-parado/#comments Thu, 05 Sep 2013 18:02:47 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1551 Prefeito promete providências para acabar com trabalho infantil e alega que licenciamento atrasou novo matadouro municipal. Órgão responsável diz que não há registros de pedido 

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – Desde 21 de janeiro de 2013, a Prefeitura de Lagoa de Pedras, cidade do interior do Rio Grande do Norte onde crianças trabalham no matadouro municipal, conta com um orçamento de R$ 502,125,00 para a construção de um novo abatedouro graças a convênio com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O projeto prevê a construção de instalações sanitárias adequadas, estação de tratamento de água e capacidade para 60 abates por semana (atualmente, segundo o informado pela Prefeitura ao Governo Federal, em média 42 animais são mortos todos os domingos). O dinheiro, no entanto, está parado.

O prefeito Raniere Cesar Amâncio da Silva (DEM) afirma que a demora deve-se ao processo de licenciamento ambiental, que, segundo ele, está sendo feito em conjunto com o Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (Emater). A reportagem entrou em contato com o departamento responsável pelo licenciamento de abatedouros do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte, que informou que não há registro de entrada de pedido de licenciamento para a obra, nem diretamente, nem em parceria com a Emater.

Questionado sobre o número de protocolo do pedido de licenciamento, o prefeito afirmou que, por estar em Natal, não tinha essa informação, mas garantiu que o pedido foi feito e que o novo matadouro ficará pronto até setembro de 2014. “O matadouro atual está realmente em péssimas condições, e temos de reconhecer que houve um erro [em relação ao trabalho infantil]. Vamos tomar providências imediatamente. Já aconteceu outras vezes, proibimos o pessoal, mas qualquer vacilo que a administração dá e os meninos voltam. É igual criança de rua, a gente tira, mas eles voltam”, diz o prefeito, que afirma que, além de reprimir, a prefeitura oferece programas sociais, com psicólogos e assistentes sociais.

Meninos de 12 anos trabalham cortando bois no matadouro municipal

Meninos de 12 anos trabalham cortando bois no matadouro municipal. Fotos: Daniel Santini

Sangue, carne e fezes espalhados colocam em risco saúde de crianças e adultos

Sangue, carne e fezes espalhados colocam em risco saúde de crianças e adultos

“Temos de tentar o máximo de soluções para acabar com isso. A gente orienta, mas o povo é difícil. A dificuldade que nós temos como gestores de municípios pequenos, de forma geral, são os pais. Eles proíbem os filhos de frequentar os programas que executamos”, afirma.

Problema regional
O emprego de crianças e adolescentes em matadouros está longe de ser exclusividade de Lagoa de Pedras. A auditora fiscal Marinalva Cardoso Dantas, que comandou a ação na cidade, já fiscalizou e registrou trabalho infantil em matadouros dos municípios de Acari, Bom Jesus, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Itaú, Jardim do Seridó, João Câmara, Lagoa Nova, Nova Cruz, São Paulo do Potengi, Tangará, Touros e Vera Cruz, entre outros. A estratégia de cobrar prefeitos, e, em alguns casos, em parceria com o Ministério Público Estadual, até responsabilizá-los judicialmente com abertura de processos, tem dado resultados.

Além de visitar Lagoa de Pedra, a reportagem esteve também no abatedouro de Brejinho (RN), onde ouviu relatos sobre o emprego de crianças e adolescentes na atividade, e no município de João Câmara (RN), um dos flagrados com trabalho infantil em matadouros em 2008.

Apesar do aviso de que é proibida a presença de crianças, feirantes relataram que os meninos costumam ficar no terreno ao lado do abatedouro de Brejinho (RN), esperando para trabalhar nos restos dos bois

Apesar do aviso de que é proibida a presença de crianças, feirantes relataram que os meninos costumam ficar no terreno ao lado do abatedouro de Brejinho (RN), esperando para trabalhar nos restos dos bois

O "fateiro" Reginaldo Raimundo da Silva ao lado dos escombros onde antes funcionava o antigo abatedouro municipal de João Câmara (RN), desativado após denúncia. Foto: Daniel Santini

O “fateiro” Reginaldo Raimundo da Silva ao lado dos escombros onde antes funcionava o antigo abatedouro municipal de João Câmara (RN), desativado após denúncia. Foto: Daniel Santini

Neste último, após a denúncia, o abatedouro público irregular foi desativado e destruído. No matadouro atual de João Câmara (RN), construído longe do centro urbano, são os adultos que trabalham como “fateiros”. “As condições mudaram muito, usamos equipamentos e é tudo muito mais limpo”, conta Reginaldo Raimundo da Silva, 36 anos, ao lado dos escombros em que funcionava o antigo matadouro. Ele conta que trabalha limpando tripas de bois na cidade desde os 10 anos de idade. “Agora estou recebendo um salário e comecei a cursar o ensino médio. Quero ser professor”, sonha.

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/violencia-crua-um-flagrante-de-trabalho-infantil-em-matadouro/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/violencia-crua-um-flagrante-de-trabalho-infantil-em-matadouro/#comments Thu, 05 Sep 2013 18:02:46 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1521 Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas no corte de bois no interior do Rio Grande do Norte. Banalização da violência afeta desenvolvimento, alertam especialistas

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – O boi branco está amarrado pela perna esquerda, com uma corda atada a uma cerca de madeira. São doze homens dentro do matadouro municipal de Lagoa de Pedras, município do interior do Rio Grande do Norte com população estimada em 7.372 pessoas e rebanho de 5.100 bovinos. Duas crianças esperam, trepadas na cerca. O boi hesita. Um dos homens levanta uma marreta e, sem pestanejar, desce ela com toda força na direção da testa do animal.

Uma fração de segundo, o boi desvia a cabeça, a pancada passa a milímetros do seu olho direito. O lugar cheira a sangue e merda. Um dos meninos sorri. Os homens gritam, o boi gira, desesperado, preso à corda. A segunda marretada é precisa. O boi branco cai, tendo espasmos, tentando coices inúteis, morre devagar. O corpo é arrastado para fora, outro boi é trazido para dentro do galpão aberto, sem paredes, sem nenhuma estrutura. Homens jogam água no chão de cimento onde ficou sangue, há mofo na mureta que limita o espaço, o ferro que segura as telhas está todo enferrujado.

Do lado de fora, onde há mais espaço para trabalhar, outros dois meninos de 12 anos com facas pontiagudas e afiadas estão debruçados sobre outro boi recém-morto. Praticamente um em cada três habitantes de Lagoa de Pedras tem menos de 15 anos. Em 2010, a mortalidade infantil do município era de 29,6 para cada mil nascidos vivos, média bem acima da nacional (19,7) e da estadual (16,7). A atividade em matadouros está entre as Piores Formas de Trabalho Infantil estabelecidas pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Assim como os adultos, as duas crianças trabalham de chinelos, ficando descalças em diversos momentos para andar sobre a carne, com o cuidado de se equilibrar para não fazer os órgãos internos romperem.

Menino de 12 anos corta e limpa boi momentos após abate em matadouro de Lagoa de Pedras. Fotos: Daniel Santini

Menino de 12 anos corta e limpa boi momentos após abate em matadouro de Lagoa de Pedras. Fotos: Daniel Santini

Lagoa de Pedras, no RIo Grande do Norte

Pele do animal é arrancada com uma faca afiada com uma série de puxões que requerem habilidade

Lagoa de Pedras, no Rio Grande do Norte

Para a limpeza das tripas, garoto tem de praticamente entrar no boi. A carne ainda está quente e os músculos sofrem breves espasmos, mesmo com o animal já morto

Apenas um dos trabalhadores usa botas de plástico. Não há nenhum outro equipamento de proteção. Os meninos hesitam ao verem a chegada da equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, para ao lado dos dois. Ao seu lado, a auditora fiscal Virna Soraya Damasceno olha com dificuldade para a cena crua, vermelha. A carne, mesmo com o animal morto, ainda se mexe. São breves espasmos dos músculos, agora já descobertos, sem pele. O pai de uma das crianças, depois de cumprimentar a todos educadamente, dá um grito para um dos meninos. “Vai ficar aí parado? Não tem de ter vergonha, você está trabalhando, não na rua roubando!”.

O mais magricelo volta a se debruçar e trabalhar, e fica praticamente dentro da barriga do boi. O outro ainda titubeia por alguns momentos, antes de abaixar e ajudar o colega. Nenhum dos outros garotos que estavam esperando o outro boi ser morto se aproxima enquanto a fiscalização está presente.

Responsabilidade
A auditora Marinalva Dantas registra a situação com uma câmara fotográfica, identifica as crianças e conversa com elas. As informações servirão de base para um relatório a ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade e para a cobrança de providências da Prefeitura em relação às condições de trabalho no matadouro municipal. A estratégia de autuar e responsabilizar o poder público é a mesma utilizada em ações em outros matadouros públicos e em feiras livres em outras das cidades da caatinga onde o emprego de crianças em tarefas pesadas insalubres é cotidiano, comum.

Em um contexto grave de pobreza e miséria, responsabilizar as famílias pura e simplesmente não basta, explica a auditora. Adultos e crianças trabalham nos abatedouros por comida. Os meninos costumam receber, em troca da limpeza do “fato” do boi, como são chamadas as entranhas do animal, miúdos e tripas de menor valor.

Crianças recebem miúdos do boi como pagamento pelo trabalho

Crianças recebem miúdos do boi como pagamento pelo trabalho

Garoto que trabalhou na limpeza leva pagamento para casa

Garoto que trabalhou na limpeza leva pagamento para casa

Também é difícil responsabilizar quem se beneficia economicamente do sistema estabelecido. Em Lagoa de Pedras, os bois costumam ser levados ao abatedouro por pequenos produtores locais e são abatidos no domingo, na véspera da feira livre local, onde a carne é vendida, muitas vezes, também por meninos. A cidade é uma das mais carentes do país. Com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0.553 (em um critério que vai de 0 a 1), Lagoa de Pedras ocupava em 2010 a 5.150ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros.

Leia também: Orçamento de meio milhão para novo abatedouro está parado

Banalização
O trabalho infantil é tido como algo normal na região. Fiscalizar a prática não é tarefa fácil e há até quem hostilize os auditores. É fácil ouvir os adultos defenderem, mesmo dentro dos matadouros, que criança tem de trabalhar “para não virar vagabundo”, “para não se envolver com droga” e “para aprender uma profissão”, só para citar alguns dos argumentos repetidos a esmo.

A psicóloga infantil Christiane Sanches, do Centro de Referência às Vítimas da Violência, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, alerta, no entanto, que crianças vítimas de trabalho infantil estão mais sujeitas a problemas, em especial as que se deparam com realidades cruas como a do abate de animais. “Quando a criança se depara diretamente com uma situação de extrema violência, ela rompe uma fase de desenvolvimento. A fantasia é importante, é uma forma de a criança se relacionar com a realidade”, explica, ressaltando que brincar e imaginar são atividades fundamentais para a formação de adultos responsáveis, capazes de manter boas relações sociais, relações afetivas e independência.

Garoto trabalha com os avós na barraca em que carne crua é vendida na feira livre de Brejinho (RN)

Garoto trabalha com os avós na barraca em que carne crua é vendida na feira livre de Brejinho (RN)

É fácil ver crianças trabalhando nas barracas açougue na feira de Monte Alegre (RN)

É fácil ver crianças trabalhando no setor onde estão as barracas que servem de açougue na feira de Monte Alegre (RN)

Menino manuseia faca no corte de carne de frango, também em Monte Alegre (RN)

Menino manuseia faca no corte de carne de frango, também em Monte Alegre (RN)

O risco de acidentes é maior para crianças em função da força necessária para os cortes

O risco de acidentes é maior para crianças em função da força necessária para os cortes

Nos abatedouros, a banalização da morte é marcada por episódios de crueldade e o trabalho envolve ações violentas. Entre as atividades que os garotos cumprem estão arrancar toda a pele do animal recém-morto puxando aos poucos e separando o couro com breves golpes e cortar a cabeça e as patas. A noção do que é vida e morte se dilui na mesma medida que o sangue se espalha pelas mãos, pés e pernas desnudas de moleques magrelos. A auditora fiscal Marinalva Dantas conta que em uma das ações flagrou crianças “brincando” de espetar um boi ainda vivo com lâminas.

Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento, a psicóloga Christiane Sanches explica que a frieza e falta de sensibilidade podem ser mecanismos de defesa de crianças que tiveram contato com eventos de extrema agressividade. “A família tem de ter a preocupação em relação a uma profissão, mas dentro de uma faixa de desenvolvimento adequada. É preciso respeitar etapas. O trabalho infantil é uma ruptura do que se espera de determinadas fases. Quanto menor a faixa etária, mais grave a situação”, alerta, destacando que o fato de a atividade ser considerada normal pela comunidade agrava a situação. “Ao fazer o corte, a criança está seguindo o modelo da família, está exercendo um papel dentro da sociedade. Se não aceitar, está excluída, o que provoca desamparo emocional. Não trabalhar vira uma vergonha”, diz.

Estômago aberto, sangue e fezes
Em um canto do abatedouro, um dos cachorros que ronda o local aproxima-se de um pedaço de carne crua sangrando. Com uma machadinha na mão, um dos adultos que trabalha quebrando os ossos da base do peito de um boi morto para ao perceber o avanço, gira o instrumento e dá um golpe com o cabo. O animal dá um ganido, late e se afasta rápido, a tempo de evitar a pancada. A dois passos, outro trabalhador carrega o intestino de um boi.

Ele faz furos com o facão para o ar sair e a pele não romper ao ser erguida, leva com cuidado o órgão até o fundo do terreno e, com um golpe seco, abre o intestino. A merda escorre em um canal aberto junto com sangue e outros dejetos. Um tanto se espalha no chão, o homem caminha descalço sobre a sujeira. O cheiro é insuportável. A menos de dois passos, os garotos trabalham no boi, terminando de separar os pedaços de carne. “A gente se corta às vezes. Eu já fiquei com o pé todo em carne viva”, conta um dos trabalhadores adultos, puxando e ajeitando um pedaço de carne com a faca. “Trabalho com isso desde que eu tinha 9 anos. Aqui todo mundo é assim. E trabalho para viver. Melhor do que roubar, né?”, conta.

Cachorros circulam o matadouro, que é todo aberto. Sangue e fezes escorrem em canais

Cachorros circulam o matadouro, que é todo aberto. Sangue e fezes escorrem em canais

Trabalhadores usam chinelos ou trabalham descalços, caminhando sobre resíduos

Trabalhadores usam chinelos ou trabalham descalços, caminhando sobre resíduos

Por si só, as condições de trabalho em abatedouros e empresas de processamento de carne já são consideradas problemáticas. Em 2011, de acordo com dados do Ministério da Previdência Social (MPAS), ocorreram 19.453 acidentes de trabalho e 32 mortes envolvendo o setor. Os problemas levaram o Ministério do Trabalho e Emprego a estabelecer em abril de 2013 a Norma Regulamentadora nº 36, que, entre outras medidas, determina adequação e organização de postos de trabalho.

Em Lagoa de Pedra, crianças e adultos que trabalham no matadouro ostentam cortes abertos, marcas de acidentes leves ou profundos. “Trabalhadores com lesões e feridas nas mãos devem ser afastados da função e evitar o contato direto com a carne, uma vez que isso pode facilitar tanto a contaminação da carne que está sendo manipulada como a infecção do trabalhador”, explica a bióloga e veterinária Isabel Cristina Lopes Dias, mestre em Saúde e Ambiente.

“A desproteção desses trabalhadores e o contato direto e/ou indireto com animais e/ou suas secreções são situações críticas de exposição e transmissão de microrganismos zoonóticos. As crianças estão mais vulneráveis tanto às doenças quanto aos acidentes, pois precisam realizar tarefas e manusear instrumentos desconexos de sua capacidade física e psicológica, justamente em uma fase em que são mais imaturas e ingênuas.”

Leia também: Entrevista: “crianças são mais suscetíveis à infecções”

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Muitas pedras no caminho http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/muitas-pedras-no-caminho/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/muitas-pedras-no-caminho/#comments Thu, 08 Aug 2013 17:16:25 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1488 Resgate de garoto de 15 anos em condições de escravidão contemporânea numa pedreira no Rio Grande do Sul evidencia outras consequências do trabalho infantil, além da social: os riscos e danos à saúde de crianças e adolescentes

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Para João Júlio**, havia mais do que uma pedra no meio do caminho. Eram centenas, no mínimo. Aos 15 anos de idade, o garoto não ia à escola para, assim como o pai, quebrar pedaços de basalto com uma marreta. Juntamente a um grupo de dez homens, ele foi resgatado do regime de trabalho análogo ao de escravo por uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), ocorrida no último dia 30 de julho, em uma pedreira situada na zona rural do município de Antônio Prado, a cerca de 180 km ao norte de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul (RS). João Júlio era o único com menos de 18 anos.

O garoto João Pedro, em frente à área que trabalhou em condições análogas às de escravo (Fotos: MTE / Divulgação)

O garoto João Júlio, em frente à área em que trabalhou em condições análogas às de escravo (Fotos: MTE / Divulgação)

Segundo os fiscais do MTE, as rochas retiradas do local, de propriedade da empresa Mineração Zulian, seriam utilizadas como paralelepípedos para a pavimentação de ruas e calçadas. O menino era responsável por extrair pedaços do mineral, um tipo atividade que, pelo ambiente insalubre e esforço excessivo, poderia lhe causar graves problemas de saúde.

“Quando a gente fala em saúde, costuma assustar muito mais do que quando falamos somente das consequências sociais do trabalho infantil. Por isso é sempre importante deixarmos claro quais são os riscos”, salienta a coordenadora do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) em Caxias do Sul (RS), a enfermeira Ana Maria Mezzomo. Para ela, jovens com menos de 18 anos que ingressam no mundo do trabalho estão em situação muito mais vulnerável do que os adultos. Conforme explica a agente do Cerest, João Júlio estaria principalmente sujeito a desenvolver problemas em seu sistema ósseo, porque se encontra em fase de crescimento.

“Os esforços requeridos por um adolescente não podem ultrapassar a marca de 2,7 kg. No caso do trabalho em uma pedreira, além de ser perigoso e cansativo, com certeza há o risco de desenvolver doenças osteomusculares”, explica a especialista de saúde. De acordo com a enfermeira, a intensidade do serviço desempenhado pelo menino poderia lhe causar deformações na extremidade superior do osso do fêmur, localizado no interior da coxa, ao ponto de até provocar um defeito ortopédico que na medicina é conhecido como “coxa vara”.

A iminência de acidentes no ambiente de trabalho no caso de crianças e adolescentes é maior, conforme explica a coordenadora do Cerest. As atividades na pedreira, além disso, poderiam oferecer riscos aos sistemas respiratório e cardíaco do garoto. “O coração do menino poderia não aguentar o esforço, já que ainda está em fase de desenvolvimento”, afirma. A ausência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), situação a que todas as vítimas resgatadas na pedreira estavam submetidas, seria um agravante para problemas de respiração, devido à poeira provocada e aos resíduos tóxicos depreendidos da extração mineral.

Área na comunidade de Caravaggio por onde se estende a pedreira em Antônio Prado, no Rio Grande do Sul

Área na comunidade de Caravaggio por onde se estende a pedreira em Antônio Prado, no Rio Grande do Sul

Danos ao sistema psíquico do menino também seriam possíveis, por causa de traumas, estresse ou outras situações pelas quais o garoto poderia passar enquanto estivesse precocemente em um ambiente da vida adulta. “A exposição excessiva, e em horário inapropriado, ao sol também pode causar problemas de pele a crianças e adolescentes expostos a atividades em ambientes abertos”, acrescenta Ana Maria Mezzomo.

O serviço de extração de pedras está incluído na lista de piores formas de trabalho infantil (Lista TIP), reconhecida em 2008 pelo Governo Federal. Entre alguns dos problemas de saúdes decorrentes desse tipo de atividade, a Lista TIP indica “queimaduras na pele”, “doenças respiratórias”, “lesões e deformidades osteomusculares” e “comprometimento do desenvolvimento psicomotor”.

Fiscalização
De acordo com o auditor fiscal do MTE, Vanius João Corte, o pai de João Júlio chegou a trabalhar, em um momento anterior, na mesma pedreira em que o menino foi resgatado. No momento do recebimento das verbas rescisórias, ele compareceu com o garoto, que, segundo a fiscalização, não aparentava problemas de saúde. O agente trabalhista diz que, neste ano, foram flagrados outros dois casos de trabalho infantil nos entornos de Caxias do Sul, maior município próximo a Antônio Prado. “É comum o emprego de crianças e adolescentes na região. E a atividade mineral é forte devido ao solo rico em basalto”, comenta.

Problemas nas instalações da pedreiram levaram à interdição do local

Problemas nas instalações da pedreira levaram à interdição do local

Na pedreira, o adolescente e os outros nove resgatados de condições análogas às de escravo desempenhavam as atividades sem registro em carteira de trabalho. O empregador no local também não fornecia ao grupo de trabalhadores escravizados as ferramentas para o serviço nem alojamento adequado, instalações sanitárias ou ambiente para preparar e consumir refeições. Por não apresentarem condições mínimas de segurança, as instalações foram interditadas. Ao fim do processo de fiscalização, todos os trabalhadores retornaram a suas casas, custeados pelo empresa responsável pelo caso, a Mineração Zulian.

A reportagem não conseguiu contato com o jovem, algum parente dele ou seu empregador para comentar o caso.

** nome fictício para preservar a identidade da vítima

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Adolescentes paraguaios escravizados são forçados a deixar o país http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/adolescentes-paraguaios-escravizados-sao-forcados-a-deixar-o-pais/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/adolescentes-paraguaios-escravizados-sao-forcados-a-deixar-o-pais/#comments Thu, 21 Mar 2013 16:22:09 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=989 Um adolescente de 15 anos e seis de 17 anos estavam entre 34 resgatados no Mato Grosso do Sul. Após libertação, todos foram notificados pela Polícia Federal a sair do Brasil

Por Daniel Santini, da Repórter Brasil*

A Polícia Federal (PF) obrigou 34 trabalhadores paraguaios resgatados de condições análogas à escravidão na fazenda Dois Meninos, em Itaquiraí, no Mato Grosso do Sul, a deixar o país. Entre os que foram libertados no flagrante realizado em 1º de março, em operação conjunta da qual fizeram parte também o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), estavam sete adolescentes, sendo um de 15 anos e seis de 17 anos. A legislação brasileira prevê que, quando permitido, o trabalho de adolescentes entre 14 anos e 18 anos “não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola” (Lei nº 10.097  2000). Para adolescentes com idades entre 14 anos e 16 anos, somente é permitido trabalho na condição de aprendiz.

Local em que os trabalhadores dormiam. Fotos: Divulgação

Local em que os trabalhadores dormiam. Fotos: Divulgação

Assim como os demais, os jovens estavam submetidos a condições degradantes análogas às de escravos trabalhando no cultivo de mandioca. Após o resgate, em vez de amparar e garantir a segurança do grupo, a PF notificou todos a deixarem o país e os multou em R$ 168 cada por estarem em situação irregular. A medida contraria a Resolução Normativa número 93 do Conselho Nacional de Imigração, que prevê a concessão de vistos para “estrangeiros que estejam em situação de vulnerabilidade”. É o segundo caso recente em que vítimas de trabalho escravo são forçadas pela PF a deixar o país. Em fevereiro, 13 trabalhadores também paraguaios, escravizados quebrando pedras em Mercedes, no Paraná, foram notificados a sair em três dias sob ameaça de deportação.

A resolução em questão foi estabelecida com o objetivo de fortalecer denúncias de exploração, já que muitos dos estrangeiros que são submetidos à escravidão evitam procurar as autoridades brasileiras devido ao temor de ter que deixar o Brasil. Foi exatamente o que aconteceu no caso em questão, segundo o procurador Jeferson Pereira, da Procuradoria do Trabalho de Dourados (MS), que acompanhou o resgate. Após serem libertados, os trabalhadores foram ameaçados pelo aliciador e fugiram temendo punições.

“Quando fui procurar o grupo para garantir o pagamento das indenizações devidas, não encontrei ninguém. O ‘gato’ [responsável por aliciar os trabalhadores no Paraguai e levá-los até a fazenda em questão] havia entrado no hotel e assustado todos eles falando que seriam presos pela Polícia Federal”, conta o representante do MPT. Os proprietários da fazenda assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta se comprometendo a não empregar mais mão de obra escrava, pagar as verbas rescisórias devidas e danos morais por conta da contratação de adolescentes. O procurador teve que determinar o retorno do grupo até a fronteira de Salto Guarirá, no Paraguai, com Mundo Novo, no Mato Grosso do Sul, para assegurar que eles recebam o valor devido. Dos 34 trabalhadores,  26 conseguiram retornar, recebendo R$ 55.255 em verbas indenizatórias.

Trabalhadores foram resgatados trabalhando em lavouras de mandioca

Trabalhadores foram resgatados trabalhando em lavouras de mandioca

Condições degradantes
Segundo o MPT, os trabalhadores estavam submetidos a condições degradantes, jornada exaustiva e servidão por dívida pelos fazendeiros Cleiton Geremias e Cleber Geremias. Eles haviam sido aliciados por Miguel Slometzki. A Polícia Federal confirma a participação dos três e informa que eles foram indiciados. A Repórter Brasil tentou contato, mas eles não foram localizados para comentar o caso.

foto SRTE-MS (5)

Alojamento improvisado em que os trabalhadores dormiam

De acordo com Ubaldo Fortunato, auditor fiscal do MTE que participou da fiscalização, os paraguaios estavam submetidos a condições degradantes. Todos, incluindo os adolescentes, viviam em alojamento improvisado, sem colchões. Alguns dormiam diretamente no chão, outros no estrado de beliches. “Não havia local para refeição e as condições de higiene e limpeza eram bem ruins”, explica o auditor, que confirma que a PF fez a notificação e ameaçou o grupo de deportação. “Eles tiveram de ir embora. São pessoas que têm interesse em permanecer no Brasil, que queriam se regularizar para continuar trabalhando, mas não conseguiram.”

O auditor também diz ter ouvido relatos sobre a ameaça do ‘gato’. “Após o resgate, eles estavam em um hotel esperando as verbas rescisórias, mas foram embora. Falaram que o gato que agenciava o grupo mandou eles fugirem”, diz o auditor. “É uma prova de que eles ficaram com medo.” Procurado, o delegado-chefe da Polícia Federal em Naviraí, Leandro Chagas, afirmou que pretende investigar as ameaças citadas. Ele confirma que os paraguaios estavam escravizados e diz que a instituição têm tido especial atenção ao lidar com denúncias desse tipo. O delegado ficou de verificar com o setor de imigração o que aconteceu.

Fiscais apontaram falta de condições mínimas de higiene e limpeza no alojamento

Fiscais apontaram falta de condições mínimas de higiene e limpeza no alojamento

O delegado da PF responsável pelo flagrante, Guilherme Guimarães, que participou da ação, confirma a notificação e diz que foi a base que determinou que eles deixassem o país. “Não sei como é o procedimento padrão nesses casos, não atuo na área de imigração”, diz. O delegado, que pertence à unidade de Ponta Porã (MS), participou da ação porque estava de plantão em Naviraí (MS). Justamente por estar no apoio da fiscalização, ele afirma ter repassado o prosseguimento do trato aos estrangeiros ao departamento de imigração dessa delegacia.

O procedimento contraria a própria orientação da frente de Repressão ao Trabalho Forçado da Coordenação-Geral de Defesa Institucional da Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado do Departamento de Polícia Federal, que determina que agentes e delegados amparem estrangeiros em situação vulnerável, incluindo vítimas de trabalho escravo e tráfico de pessoas.

Recorrente
De acordo com o procurador Jeferson Pereira, não é a primeira vez que a Polícia Federal notifica trabalhadores resgatados no Mato Grosso do Sul a deixar o país. Em dezembro do ano passado, um grupo também de paraguaios foi obrigado a sair após resgate em uma obra no perímetro urbano de Dourados (MS). “O delegado Fernando Parizotto queria notificar os trabalhadores paraguaios a deixarem o país de forma rápida sem receber os valores rescisórios. Tive de ponderar com ele, a fim de que os trabalhadores permanecessem em hotéis localizados na cidade pelo período de cinco dias, e assim, após o recebimento dos haveres, poderem ir embora”, afirma o procurador. O delegado Fernando Parizotto não foi localizado pela reportagem para comentar o caso.

foto SRTE-MS (3)

Resgatados dormiam diretamente no estrado das camas e beliches ou no chão

“É um problema sério que estamos encontrando sim. Isso precisa ser resolvido logo. Pois toda vez temos de ficar intercedendo junto à PF para manter os trabalhadores no país pelo menos até receberem o pagamento. Referidos trabalhadores ficam temerosos e assustados achando que a qualquer momento vão ser presos. Aí acontece o que ocorreu aqui em Naviraí. Eles acabaram indo embora e nós tivemos de tomar providências para que eles retornassem até a fronteira”, completa o procurador.

 

 

Colaborou Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Um perfil do trabalho infantil http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/brasil-enfrenta-nova-fase-do-combate-ao-trabalho-infantil/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/brasil-enfrenta-nova-fase-do-combate-ao-trabalho-infantil/#comments Thu, 20 Sep 2012 14:40:57 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=75 Velho problema, novos desafios: Redução da pobreza inaugura segunda fase do combate ao trabalho infantil

 

O Brasil cresce e tira famílias da pobreza, mas o trabalho de crianças e adolescentes persiste como marca da nossa sociedade. Agora, ele avança para as classes médias e atividades urbanas

 

Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil

 

Em dez anos, o Brasil tirou quase 530 mil crianças e adolescentes de situações de trabalho e os devolveu às suas atividades de direito: estudar, brincar e se desenvolver. Outros 3,4 milhões de crianças e adolescentes de 10 a 17 anos ainda trabalham no país, segundo a última análise do IBGE, baseada no Censo de 2010.

Em estimativa mais abrangente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, no ano de 2011, são 3,6 milhões de crianças de 5 a 17 anos trabalhando – ou 8,6% da população nessa faixa de idade.*

Principal região de aplicação das políticas de combate à pobreza, o Nordeste apresentou os melhores índices de redução do trabalho infantil entre 2000 e 2012. Foto: Leonardo Sakamoto

A modesta redução de 13,4% no número de crianças e adolescentes trabalhando apontada pelo Censo entre 2000 e 2010 poderia ser um alento, não fossem alguns poréns. Justamente na faixa mais vulnerável dessa população – as crianças de 10 a 13 anos, para quem qualquer tipo de trabalho é proibido –, a ocorrência do problema chegou a aumentar 1,5% (são 710 mil crianças nessa idade, quase 11 mil a mais que em 2000).

No levantamento da PNAD, em todo o Brasil havia 89 mil crianças de 5 a 9 anos e 615 mil de 10 a 13 anos trabalhando na semana da pesquisa – mais de 700 mil crianças no total, o que equivale a pouco menos que a população da cidade de João Pessoa.

A mão de obra de quase 2,7 milhões de jovens entre 14 e 17 anos, apesar de menos freqüente que há dez anos (os adolescentes que trabalhavam eram então 3,2 milhões), é empregada de maneira irregular e em atividades perigosas. Segundo a legislação brasileira, jovens de 14 e 15 anos só podem trabalhar na condição de aprendizes; os de 16 e 17 anos, em atividades que não sejam perigosas ou degradantes, protegidos por uma série de condições.

Novo perfil do trabalho infantil

Se comparada a condição atual à do início dos anos 90, quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT) começou a monitorar a questão no Brasil, o trabalho infantil hoje é mais urbano e menos rural e atinge, na média, crianças mais velhas que há 20 anos. Essas crianças enfrentam, em sua maioria, uma dupla jornada de escola e trabalho com a própria família, que nem sempre está em situação de pobreza.

“Se anteriormente a pobreza era um dos determinantes do trabalho infantil, hoje esta relação está menos clara”, analisa Renato Mendes, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da OIT no Brasil. “Quase 40% das crianças e jovens que trabalham não estão em famílias que vivem abaixo da linha de pobreza.”

O trabalho infantil e juvenil migrou para áreas urbanas, especialmente na informalidade, em atividades degradantes. Foto: Leonardo Sakamoto

Isso denota, na opinião de Renato, uma mudança de motivação, principalmente por parte dos adolescentes. “Antes o jovem trabalhava para complementar a renda básica da família, hoje trabalha para ter acesso aos bens resultantes do desenvolvimento, como um celular ou uma roupa de marcar. Muitas vezes o trabalho infantil e juvenil está mais ligado à necessidade de inclusão social e menos à sobrevivência”, afirma.

A posse de bens de consumo e o trabalho precoce vistos como forma de inclusão social evidenciam que falta oferta de atividades socioculturais para crianças e jovens. Parte desse vazio poderia ser preenchido com acesso a escola de qualidade e à convivência com outras crianças em espaços de cultura, lazer e esporte – modelo que se convencionou chamar de “educação em tempo integral”.

“Existe uma visão equivocada de que crianças e adolescentes têm que trabalhar. Uma frase que ouvimos muito é: ‘Melhor a criança trabalhar do que roubar’, como se não houvesse uma terceira opção”, diz o promotor Carlos Martheo Guanaes, membro auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), organizador do último seminário no Judiciário para debater o tema, em agosto deste ano. A abordagem da educação em tempo integral nas futuras políticas públicas para as famílias seriam a principal aposta para processar essa mudança cultural.

“Houve no Brasil, nos últimos cinco ou seis anos, uma perda de foco no combate ao trabalho infantil. Até pouco tempo se acreditava que o problema todo era reduzir a pobreza, que a transferência de renda bastaria”, avalia Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fundo Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). Hoje se sabe, segundo ela, que o problema é mais complexo que a pobreza material.

Embora reconheçam que a melhoria da renda dos brasileiros, em grande parte como consequência da ampliação do programa Bolsa Família, tenha impactado positivamente na redução do trabalho infantil, a estratégia dada hoje como mais efetiva envolve o tripé transferência de renda, escola de qualidade e oferta de políticas educacionais, culturais e esportivas para crianças e adolescentes.

“É preciso empoderar as famílias para que elas cumpram suas obrigações com as crianças. Os programas de transferência de renda são um marco positivo da última década, expressivo num primeiro momento. Mas é preciso também oferecer a educação integral, para convencer os pais de que as crianças estarão em segurança, em atividades adequadas para sua idade, enquanto eles trabalham”, resume Isa Maria.

Realidades regionais

Estudo dos microdados dos censos do IBGE de 2000 e de 2010 feito pela OIT permitiu identificar em quais regiões do país a atual política de redução do trabalho infantil surtiu mais efeito.

A única região onde todos os Estados registraram redução do número de crianças de 10 a 13 anos trabalhando foi o Nordeste – queda de 14,96% nessa faixa de idade, e de 23,28% entre crianças e adolescentes de 10 a 17 anos.

“O desempenho do Nordeste mostrou a eficácia da política pública de transferência de renda, já que é a região onde ela foi melhor implementada. Isso explica também porque, hoje, não há crianças trabalhando na maioria das famílias pobres do Brasil”, afirma Renato, da OIT. Ainda assim, a região concentra cerca de 30% das crianças e adolescentes que trabalham no Brasil, grande parte deles na agricultura familiar ou em serviços domésticos. “O Nordeste era a região onde o problema era mais crítico, daí também a relevância dos resultados positivos”, completa Isa Maria.
Em todas as outras regiões do Brasil, o número de crianças entre 10 e 13 anos trabalhando aumentou. Nos Estados do Norte e do Centro-Oeste, esse aumento é de mais de 25%.

Com exceção de Rondônia, todos os Estados da região Norte viram o número de crianças e adolescentes que trabalham aumentar entre 2000 e 2010. “O Norte é uma região em que ainda há dificuldade de acesso dos instrumentos da política pública federal, com municípios longínquos, escolas mais distantes dos domicílios, períodos de chuva, transporte difícil. Nessa região, a política pública precisa de uma contextualização melhor”, analisa Renato. Predominam nesta região, segundo ele, o trabalho de crianças no extrativismo, agricultura e no trabalho doméstico.

Nas regiões Centro-Oeste e Sul, onde a agroindústria se desenvolve,o que preocupa é principalmente o emprego de adolescentes nas fazendas em atividades perigosas, listadas entre as piores formas de trabalho infantil reconhecidas pelo Brasil em 2008 – como a operação de máquinas e veículos agrícolas, manuseio de defensivos químicos ou a extração e colheita de culturas que desprendem resíduos nocivos à saúde.

“A taxa de ocupação de adolescentes no Centro-Oeste e no Sul é altíssima, e caiu pouco em comparação com outras regiões do país”, avalia Renato. Isa Maria concorda: o trabalho infantil na agricultura familiar, típico da cultura dos imigrantes, persiste e migrou para o agronegócio. “O trabalho desprotegido desses jovens cria um desenvolvimento irresponsável na região”, diz ela.

Na região Sudeste, de maior concentração urbana, e nas regiões metropolitanas do país, crianças e adolescentes trabalham principalmente no setor de comércio e serviços informais – como ambulantes, no trabalho doméstico, no setor de transportes, confecção, manutenção e outras atividades terceirizadas. Daí a importância, alertam os especialistas, de as empresas conhecerem sua cadeia produtiva e não pactuarem com a violação dos direitos expressos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

“Na década de 90, as regiões Sul e Sudeste foram as que registraram melhor desempenho no combate ao trabalho infantil, mas na década seguinte foram as que menos municipalizaram os instrumentos da política pública federal. Por isso, o índice voltou a crescer em algumas faixas de idade ou não diminuiu tanto quanto o esperado”, diz Renato. De acordo com ele, o retrocesso da questão no Sudeste – onde aumentou mais de 15%, entre 2000 e 2010, o número de crianças de 10 a 13 anos que trabalham – deve-se à omissão dos governos locais em implementar os programas federais direcionados, como o Bolsa Família e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), ou em elaborar uma política regional para substituí-los.

Na avaliação de Renato, Isa Maria e do promotor Carlos Martheo, o Brasil se encontra num momento decisivo para repensar as políticas de combate ao trabalho infantil e atacar o problema em toda a sua complexidade.

Campanha lançada pela OIT Brasil e pelo FNPETI no último dia 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, busca convencer famílias e empresários de que explorar ou conviver com o trabalho infantil é uma violação dos direitos humanos. “Não é possível que, em plena fase de desenvolvimento, com o Brasil entre as oito maiores economias do mundo, o problema persista. É uma situação epidêmica, que demanda ação imediata”, conclui Renato.

 

* Enquanto a PNAD é uma pesquisa feita anualmente por amostragem (em domicílios de 1.100 municípios brasileiros, no ano de 2011), o Censo tenta se aproximar do universo total de famílias entrevistando um número consideravelmente maior de pessoas, em todas as cidades brasileiras.

Apesar de o Censo não considerar o trabalho de crianças menores de 10 anos,de  fora da População Economicamente Ativa (PEA), é um instrumento importante de análise das políticas sociais por retratar o quadro do mercado de trabalho brasileiro com mais precisão.

Sempre que não for mencionada a PNAD no texto, os dados se referem ao Censo.

 

 

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