Ex-presidente Lula diz que falta vergonha para acabar com trabalho infantil

Conferência Global realizada em Brasília aponta necessidade de acelerar esforços para erradicar o trabalho infantil até 2016 

Por Antonio Biondi, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Brasília (DF) – “Falta vergonha e vontade política para acabar com o trabalho infantil. Recursos existem, certamente.” O ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, resumiu em poucas e agudas palavras um sentimento que permeava toda a programação da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, realizada durante esta semana em Brasília (8 a 10). Em seu documento final, a “Declaração de Brasília”, a Conferência afirmou “a necessidade de acelerar os esforços em todos os níveis para erradicar o trabalho infantil, em particular suas piores formas até 2016”.

O evento destacou a centralidade do Brasil e da América Latina na agenda de combate ao trabalho infantil, definindo que a IV Conferência Global será realizada na Argentina, em 2017. O encontro também afirmou a relevância da cooperação entre países para a erradicação do problema, além do envolvimento e da articulação entre os vários atores no plano nacional e internacional.

Em sua participação, na manhã do último dia 10 – que se afirmou como um dos pontos mais fortes e emblemáticos da Conferência –, o ex-presidente Lula destacou que, desde 2008, mais de 10 trilhões de dólares foram gastos no socorro e proteção aos bancos, indústrias, seguradoras e outros segmentos ligados ao setor privado. E lembrou que a Guerra no Iraque já consumiu entre 1,7 trilhão e 3 trilhões de dólares.

Lula resgatou memórias de suas viagens pelo mundo e pelo Brasil, destacando a degradação causada pela fome e pela pobreza. Contou, por exemplo, de uma ocasião em que se deparou com crianças mastigando bolachas de argila no Haiti, por não terem recursos para comprar comida. E disse ter visto o mesmo desespero em pessoas na África, na Ásia e na América Latina. No Brasil, registrou a situação em que encontrou crianças mastigando a palma forrageira para enganar a fome e a sede no Nordeste. E contou que ele só foi comer pão pela primeira vez em sua vida aos 7 anos.

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Lula destacou ter perdido o dedo de sua mão esquerda trabalhando das 22hs às 6hs como operário, aos 17 anos, quando era proibido trabalhar nesse horário. Falando especificamente das crianças e adolescentes que hoje trabalham em atividades que oferecem perigos adicionais a elas, Lula lembrou que “quando a pessoa precisa levar alguma comida para casa, alguma renda, ela faz aquilo mesmo sabendo que é errado ou dos riscos envolvidos”.

O ex-presidente registrou concordar que existam vários fatores que contribuem para a existência do trabalho infantil, mas que certamente a miséria e a fome são determinantes. “Os mapas que registram esses problemas coincidem rigorosamente”, concluiu, passando em seguida a elencar uma série de conquistas obtidas pelo Brasil nessas áreas nos últimos anos – bem como agendas a serem priorizadas pelo país e por outras nações no combate ao trabalho infantil nos próximos anos.

Brasil central
Durante a coletiva de imprensa realizada ao final do evento, perguntou-se ao presidente da OIT, Guy Ryder, se o fato de a diminuição do trabalho infantil ter atingido 36% da meta planejada para o período entre 2010 e o final de 2016 não seria uma indicação de que a OIT e a comunidade internacional deveriam rever as metas e estipular algo mais realista.

O presidente da OIT discordou, defendendo que o roteiro estipulado em Haia em 2010, na conferência anterior, deveria ser mantido, com a intensificação dos esforços para chegar à Argentina em 2017 com o objetivo cumprido – ou o mais próximo possível a isso. Para tanto, será necessário se retirar do trabalho infantil as mais de 168 milhões de crianças e adolescentes ainda envolvidas no problema em 2012 – 85 milhões das quais nas piores formas de trabalho. Em 2000, o número global era de 246 milhões de crianças e adolescentes.

Para Ryder, “o intercâmbio de experiências será essencial nesse próximo período, e o Brasil possui um papel central nisso. O Brasil está implementando políticas que estão, sim, dando certo”, afirmou, pedindo licença à ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, para fazer tal avaliação sobre as medidas aplicadas pelo governo brasileiro.

Na própria coletiva, perguntou-se à ministra, cuja pasta incumbiu-se da organização da Conferência, quantas crianças e adolescentes atualmente trabalham no Brasil, e quais as metas do país para os próximos anos. Campello destacou que hoje há 2 milhões de jovens acima de 16 anos trabalhando no Brasil, além de 1,5 milhão com menos de 16 anos e que trabalham.

A ministra afirmou que o governo Dilma não adota atualmente uma diferenciação entre o trabalho infantil no seu todo e em relação às piores formas de trabalho pelo fato de ter conseguido bons resultados atacando o problema na sua totalidade. Ao passo que a diminuição mundial ficou em cerca de 36% entre 2000 e 2012, no Brasil a diminuição atingiu 67%. “Pretendemos então seguir trabalhando na mesma linha, e com metas bem ambiciosas nesse sentido.”

Ministros do Trabalho, Manoel Dias; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo; e o diretor-geral da OIT, Guy Ryder. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ministros do Trabalho, Manoel Dias; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo; e o diretor-geral da OIT, Guy Ryder. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Campello afirmou que o governo pretende enfrentar um primeiro desafio emergencial, relativo ao trabalho de crianças em lixões, que deve ser atacado ainda em 2014, no contexto da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Além disso, a análise do governo federal é que o trabalho infantil não está mais concentrado em alguns grandes setores, devido à queda já verificada nos principais segmentos que se utilizavam da mão de obra infantil. A ministra afirmou que agora será necessário enfrentar um novo núcleo duro do trabalho infantil, dentro das casas, das propriedades rurais, que diz respeito ao trabalho doméstico e familiar, por exemplo. Para ela, essas novas ações precisarão de outras iniciativas, ao lado da fiscalização, para que logrem sucesso. “Será necessário priorizar a educação, a orientação, o convencimento, buscar transformações culturais”, defendeu.

América Latina em foco
Em diálogo com o intercâmbio defendido pelo presidente da OIT e pelas novas agendas apontadas pela ministra brasileira, a política de enfrentamento ao trabalho infantil doméstico possui exemplos interessantes a serem conhecidos. No Uruguai, por exemplo, o governo do presidente José ‘Pepe’ Mujica já aplica hoje uma metodologia para enfrentar a questão.

Com mais de 1.300 pessoas presentes, vindas de 154 países, com representantes de 135 governos – um marco, especialmente por se tratar de um evento não organizado diretamente pela ONU –, a III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil registrou um razoável protagonismo dos países da América Latina.

Menino carrega carrinho de mão em feira livre no interior do Rio Grande do Norte. Foto: Marinalva Dantas

Menino carrega carrinho de mão em feira livre no interior do Rio Grande do Norte. Foto: Marinalva Dantas/SRTE-RN

Além de a Argentina ter obtido sucesso em sua proposta pela realização no país da Conferência Global sobre a Erradicação Sustentada do Trabalho Infantil em 2017, em diversos momentos do encontro em Brasília iniciativas verificadas na região foram apresentadas e destacadas – e certamente poderão ter aplicabilidade e efeitos semelhantes em países dos outros continentes.

O governo do Equador, por exemplo, realizou uma apresentação bastante ampla de seu programa de combate ao trabalho infantil, no qual saltam à vista: o papel destacado conferido aos municípios (com leis e políticas próprias destinadas ao problema), a atuação do governo central não só como responsável pelas normas e sua fiscalização, mas também como orientador e facilitador, e ainda a presença muito forte das políticas de educação e geração de renda.

Eleonora Slavin, da Argentina, ao participar da sessão semiplenária a respeito do papel do sistema judicial no combate ao trabalho infantil, explicou que houve mudanças importantes nos últimos anos nas leis do país. Eleonora destacou que, primeiramente, foi aprovada uma lei proibindo o trabalho aos menores de 16 anos, e que, em março de 2014, houve uma alteração no Código Penal argentino, que passou a prever a pena de um a quatro anos de prisão para quem se valer do expediente do trabalho infantil.

Para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além das conquistas verificadas no Brasil, “o combate ao trabalho infantil também avançou em muitos outros países, sobretudo na América Latina, onde muitos países adotaram modelos de desenvolvimento com inclusão social”.

Desafio de todos
Em sua participação na Conferência, Lula defendeu que a erradicação do trabalho infantil “é uma responsabilidade de todos nós, não só da presidenta, do ex-presidente, mas de toda a sociedade”. O ex-presidente brasileiro destacou ainda o papel fundamental a ser desempenhado nesse sentido pelo Ministério Público, pelo Ministério do Trabalho e Emprego e Poder Judiciário.

Rafael Marques, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), em sua exposição na sessão a respeito do papel do sistema judicial no combate ao trabalho infantil, apresentou o projeto “Políticas Públicas”, implementado por uma coordenação do MPT, tendo à frente os procuradores Alexandre Ragagnin e Sueli Bessa.

Encerramento da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Brasília: 154 países presentes, reunindo mais de 1.300 pessoas. Foto: Divulgação/OIT

Encerramento da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Brasília: 154 países presentes, reunindo mais de 1.300 pessoas. Foto: Divulgação/OIT

Marques explicou que o projeto inicialmente identificou os 20 piores municípios em termos de trabalho infantil em cada Estado. Além de trabalhar no sentido de compreender a situação da criança e da família, o projeto vai em busca de entender as causas, com vistas a atacar as consequências e evitar o retorno da criança à situação de risco em que se encontrava.

Para que o projeto alcançasse resultados melhores, o MPT teve como premissa o estabelecimento de parcerias, seja com ministérios do governo federal (Saúde, Trabalho, Desenvolvimento Social), seja com as Câmaras Municipais, famílias, aparato policial e instituições da sociedade.

Nos municípios em que se identifica uma maior omissão do poder público em relação a seus deveres constitucionais, o MPT instaura um inquérito civil, que por sua vez pode gerar ou Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) por parte dos municípios junto ao MPT, ou mesmo ações na Justiça voltadas à inibição do ilícito e a pedidos de indenização voltados às crianças e famílias envolvidas – bem como a toda a coletividade.

De acordo com o procurador, o projeto instaurou investigações em 53 municípios em 2012, levando à assinatura de 30 TACs, e a medidas por parte das prefeituras, empresas e outras instituições locais que beneficiaram cerca de 42 mil crianças entre 10 a 17 anos.

A necessidade de uma ação coordenada envolvendo todas as nações foi destacada também pela presidenta Dilma Rousseff, na abertura da Conferência. Dilma destacou a importância da articulação entre os países, e também entre os vários setores envolvidos com a questão.

As palavras da presidenta foram reforçadas pela Declaração dos Adolescentes participantes da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil apresentada na Conferência, na qual os jovens destacam seu interesse em participar mais dos processos de decisão política. Ao apresentar suas propostas, os jovens ressaltaram possuir outra visão de mundo, diferente da dos adultos, que precisa ser cada vez mais considerada – a fim de evitar a repetição de erros cometidos pela atual geração de políticos e construir novas soluções.

Garotos trabalham na cata do sururu no Recife. Foto: Igor Ojeda

Garotos trabalham na cata do sururu no Recife. Foto: Igor Ojeda

Além da Declaração de Brasília e da elaborada pelas crianças e adolescentes, a Conferência foi palco da apresentação de outros documentos e iniciativas, nos quais a articulação e as parcerias também obtiveram destaque. Foi o caso, por exemplo, da criação do Grupo Interagencial sobre Trabalho Infantil das Nações Unidas (Giti). O grupo, que buscará levantar 20 milhões de dólares para um fundo próprio voltado ao desenvolvimento de suas ações, conta com a presença da OIT e de outras agências da ONU que desenvolvem ações de enfrentamento ao trabalho infantil: Organização Panamericana de Saúde/OMS; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), ONU Mulheres; Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO); Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); e o Fundo das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

No encerramento da III Conferência, o presidente da OIT avaliou que o encontro, além de apresentar um impressionante número de participantes e países, e de representantes de governos, sociedade civil, empregadores e trabalhadores, também colheu um impressionante número de resultados. “E nos permitiu compreender muito melhor os problemas.”

O indiano Kailash Satyarthi, um dos responsáveis pela criação da Marcha Global contra o Trabalho Infantil, também compartilhou da avaliação positiva do evento, considerado “único” por ele. “Agora, precisamos fazer mais daquilo que já sabemos fazer e fazemos. Precisamos agir para tornar a Declaração final da Conferência realidade”.

Declaração de Brasília  

O documento final da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, a Declaração de Brasília, ressalta que “o combate ao trabalho infantil e a Agenda de Trabalho Decente devem receber a devida consideração na agenda de desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas”.

Entre seus 24 pontos, a Declaração defende o aprofundamento da cooperação internacional, inclusive a cooperação “triangular” e entre países do Sul (Sul-Sul), além de afirmar que os participantes da Conferência buscarão “engajar a mídia nacional e internacional, as redes sociais, a academia e os órgãos de pesquisa, como parceiros na sensibilização para a erradicação sustentada do trabalho infantil”.

O documento registra a importância da continuidade da promoção do “engajamento de todos os setores da sociedade” na questão, bem como de “Ministérios e outros órgãos do Estado, de Parlamentos, dos sistemas judiciais, de organizações de empregadores e trabalhadores, de organizações regionais e internacionais e de atores da sociedade civil”.

A Declaração aponta, por outro lado, que “os governos têm o papel principal e a responsabilidade primária”, além de destacar a importância do “uso efetivo, coerente e integrado de políticas e serviços públicos nas áreas do trabalho, da educação, da agricultura, da saúde, do treinamento vocacional e da proteção social”.

Para os presentes à III Conferência, a formalização da economia e as ações de monitoramento, avaliação e as inspeções de trabalho são outras iniciativas a serem fortalecidas, bem como possíveis incrementos do arcabouço legal e institucional de cada Estado.

Em seu preâmbulo, a Declaração de Brasília sobre Trabalho Infantil reconhece “os esforços e os progressos realizados e ainda em andamento, a despeito da crise econômica e financeira global”, mas reconhece “a necessidade de acelerar os esforços em todos os níveis para erradicar o trabalho infantil, em particular suas piores formas até 2016”.

O documento cita, ainda, o “progresso feito pelos Estados na ratificação das Convenções 138, sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego, e 182, sobre a Proibição e Ação Imediata para a Eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil, da OIT, e reiterando a importância de promover sua ratificação universal e sua efetiva implementação”. Ainda nesse ponto, a Declaração convida “os países a considerar a ratificação de outros instrumentos relevantes, como a Convenção 189, sobre Trabalho Decente para Trabalhadores Domésticos, bem como a Convenção 129, sobre Inspeção do Trabalho na Agricultura, e a Convenção 184, sobre Segurança e Saúde na Agricultura”.

Embora já tenha ratificado as Convenções 138 e 182 da OIT, o Brasil ainda não ratificou a 129 e a 184, adotadas respectivamente em 1969 e 2001 pela Organização Internacional do Trabalho, nem a 189, de 2011.

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* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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