trabalho infantil – Meia infância http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br Desafios do combate ao trabalho infanto-juvenil Thu, 20 Apr 2017 13:16:04 +0000 pt-BR hourly 1 Crianças trabalham como ambulantes nos arredores da Arena Fonte Nova, em Salvador http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-trabalham-como-ambulantes-nos-arredores-da-arena-fonte-nova-em-salvador/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-trabalham-como-ambulantes-nos-arredores-da-arena-fonte-nova-em-salvador/#comments Thu, 31 Oct 2013 17:12:07 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1737 Enquanto o luxo predomina no lado de dentro de um dos estádios da Copa do Mundo, no lado de fora o trabalho infantil é comum na venda de cerveja, nas barraquinhas de churrasco e na coleta de latas de alumínio, entre outras atividades

Por André Uzêda, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Salvador (BA) – Em uma sintomática contradição biológica, a Arena Fonte Nova, estádio baiano erguido para a Copa do Mundo de 2014, tem exposto suas vísceras do lado externo da arquitetura que emoldura sua construção. Divididas entre brasas incandescentes, bandejas mal equilibradas e servindo latinhas de cerveja, um batalhão de crianças executa atividades profissionais sob olhares pouco desconfiados dos que ali transitam.

É um domingo, 27 de outubro, e os torcedores se aglomeram nos arredores do estádio para acompanhar o embate entre Bahia x Atlético-PR, em Salvador, pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2013.

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Demolida e reconstruída para a Copa do Mundo, Fonte Nova apresenta interior luxuoso. Foto: Secom-BA

As crianças e jovens que compõem esse cenário da exploração aparentam idade entre 8 e 17 anos e se agrupelham entre as mais diversas atividades informais ofertadas no espaço. Tal qual uma ciranda desencontrada, algumas vendem cervejas acompanhadas dos pais, enquanto outras recolhem latas de alumínio abandonadas no chão. Há ainda as que, próximas ao braseiro, onde são assadas carnes para serem comercializadas, ignoram os perigos da inalação da fumaça ou riscos de queimaduras com a imprudência própria da idade. A brutalidade envolve a atmosfera do lugar, sob olhares embrutecidos de quem enxerga aquilo como cenário habitué.

O barulho ambiente, exagerado a ponto de extrapolar as cercanias do lugar, parece sufocar a presença da pequena Vanessa**, de apenas 9 anos. A garota, apenas mais uma entre tantas outras crianças submetidas ao trabalho infantil naquele espaço, mantém o olhar em um ponto fixo, evasivo.

A menina carrega um curativo acima do olho direito, fruto de uma traquinagem infantil, enquanto apostava corrida durante o recreio escolar. Quando perguntada pela reportagem por que, mesmo tão nova, precisa ir trabalhar, sorri timidamente: “Fala com minha mãe, moço”.

“Melhor do que ficar na rua”
Há 20 anos, a senhora de 52 anos estabeleceu seu ponto de venda de cerveja em jogos do Bahia. A bebida é armazenada em um isopor largo, equilibrado em um carrinho de mão. Ela é mãe da pequena desconfiada, embora também acumule a função de chefia nessa relação familiar. “Tem pouco tempo que comecei a levá-la para me acompanhar. Vanessa fica mais aqui para cuidar das coisas enquanto eu vou ao banheiro ou preciso trocar um dinheiro. Não posso deixar o lugar vazio”, pontua a matriarca.

Em média, estima a ambulante, em um dia de jogo é possível arrecadar até R$ 400 com a venda de bebidas alcoólicas (proibidas no interior do estádio por resolução da CBF). Com o marido encostado pelo INSS, após cirurgia delicada, ela virou responsável por sustentar a casa ao mesmo tempo que cuida da sua prole. “Essa é outra razão pela qual levo Vanessa comigo. É melhor do que ela ficar na rua, sem ter o que fazer, desocupada…”, argumenta.

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Explicação comum
De acordo com a socióloga baiana Inaiá Carvalho, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), dois elementos na fala dessa vendedora resumem a condição do trabalho infantil em território brasileiro. “Esse problema [trabalho infantil] ainda é visto pelos pais como um fator educacional. Na falta de uma escola em tempo integral, eles acham que, muitas vezes, é melhor ter o filho por perto, mantendo-o longe da rua, do crime e de tantos outros problemas”, diz a pesquisadora, que emenda: “A outra condição é estritamente social. O trabalho na infância está ligado à criança pobre, estritamente. Não se fala dessa questão entre jovens e crianças de classe média, por exemplo”, afirma. Especialistas na questão costumam defender que em vez de se criminalizar os pais, é necessário realizar um trabalho de conscientização e de fornecimento de garantias sociais.

A socióloga, porém, diz enxergar avanços consistentes nos últimos anos em relação ao combate ao trabalho infantil no Brasil. “Desde a década de 1990, os governos vêm sistematicamente trabalhando contra essa chaga social. A própria sociedade despertou de uma postura de passiva naturalidade para uma de horror escandalizado diante do trabalho infantil, sobretudo aquele mais pesado, na extração do sisal, carvoarias e plantação de cana-de-açúcar. Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, sancionada em 1990), os números de casos estão diminuindo”, afirma.

Sem escola em tempo integral
Apesar da redução de 13,44% na última década, entre jovens que trabalham dos 10 aos 17 anos, segundos dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), os números apontam estagnação da exploração infantil como mão de obra na zona rural e no setor informal da economia, como é o caso das crianças que trabalham ao redor da Fonte Nova. “São duas vertentes que tiveram baixas importantes, mas estagnaram. Chegamos a um ponto em que a única forma de resolver essa questão é com a redução drástica da pobreza e com escolas com acompanhamento integral para os jovens”, afirma a professora Inaiá Carvalho.

A ausência de uma instituição de ensino que prolongue suas atividades em mais de um período é a principal causa, por exemplo, para Gilvan**, de 14 anos, acompanhar uma senhora de 60 anos na sua rotina de trabalho. O garoto, que recolhe dinheiro enquanto ela assa espetos de carne, não possui qualquer relação de parentesco com a vendedora.

A reportagem encontrou o adolescente trabalhando nos arredores da Arena Fonte Nova em uma quinta-feira à noite, dia 24 de outubro, momentos antes da partida Bahia x Nacional de Medellín (Colômbia), pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana. “Ele é meu vizinho, lá do subúrbio ferroviário. A mãe dele sai para trabalhar e passa o dia todo na rua, só volta de noite. Ela que me pede para levá-lo para o trabalho, porque ele pode juntar um dinheiro e também fica mais seguro”, diz a churrasqueira.

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No total, nova arena custou R$ 688,7 milhões, a serem pagos em 15 anos. “Nunca entrei lá não”, revela Vanessa. Foto: Carol Garcia/Secom-BA

Copa do Mundo
O olhar de Vanessa, perdido no horizonte, em algum momento talvez se depare com a suntuosidade da Arena Fonte Nova. A praça esportiva seria levantada ao custo inicial de R$ 591,7 milhões, celebrados por um contrato de PPP (Parceria Público Privada) entre governo do estado e as construtoras OAS e Odebrecht. Entretanto, um aditivo contratual de R$ 97,7 milhões elevou o valor final do empreendimento para R$ 688,7 milhões, no total. A serem pagos nos próximos 15 anos.

Tal grandeza numérica, traduzida em conforto, rótulos de sustentabilidade e embalagem de segurança para o mundial brasileiro, ainda que fisicamente próximos parecem léguas de distância da realidade da pequena Ana Carolina. “Nunca entrei lá não”, confidencia a garota, em referência ao luxuosíssimo estádio.

Enquanto embala sonhos do lado de dentro, fora o estádio expõe suas vísceras.

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

** Os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes.

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Combate ao trabalho infantil passa por estruturação de políticas públicas http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/combate-ao-trabalho-infantil-passa-por-estruturacao-de-politicas-publicas/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/combate-ao-trabalho-infantil-passa-por-estruturacao-de-politicas-publicas/#comments Thu, 22 Aug 2013 17:12:14 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1506 Para cumprir as metas de erradicação, o Brasil precisa não apenas contar com fiscalização, mas investir em serviços públicos e promover com eficiência sistema de garantia de direitos

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Para evitar que crianças e adolescentes ingressem de modo precoce no mundo do trabalho – e na vida adulta – não basta somente contar com ações que encontrem, verifiquem e afastem meninos e meninas vítimas desse tipo de exploração. Em geral, fiscalizações trabalhistas, promovidas por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), têm, no que diz respeito à tarefa de erradicar todas as formas de trabalho infantil, alcance limitado, porque agem mais no sentido de reprimir a prática do que preveni-la e garantir que não haja sua reincidência.

Se o Brasil almeja cumprir o compromisso de eliminar as piores formas de trabalho infantil até 2016 – e, até 2020, todas as formas de trabalho infantil –, deve contar também com um conjunto de políticas públicas que integrem um sistema que garanta efetivamente os direitos de meninas e meninos. Esse é, pelo menos, um dos principais entendimentos de autoridades e agentes da sociedade civil que lidam com o tema, ouvidos pela Repórter Brasil. Medidas como o fortalecimento do papel da educação e da saúde públicas são alguns exemplos.

Garoto busca restos em lixão, atividade considerada entre as piores formas de trabalho infantil. Foto: MPT-MA

Garoto busca restos em lixão, atividade considerada uma das piores formas de trabalho infantil. Foto: MPT-MA

O fato de o país ter reduzido substancialmente o número absoluto de crianças e adolescentes trabalhando nos últimos 12 anos demonstra, por um lado, considerável avanço na questão. Segundo o último Censo, 3,4 milhões de crianças e adolescentes de 10 a 17 anos estavam em serviço em 2010 – número que indica uma redução de 13,4% desde o ano de 2000. No entanto, esse ritmo é insuficiente para que o Brasil cumpra as metas estabelecidas para eliminar o trabalho infantil dentro do seu território, mesmo se levado em conta o fato de o MTE ter intensificado a quantidade de fiscalizações a partir de 2012.

De acordo com dados do Ministério do Trabalho, entre 2007 e 2011 a média anual de ações fiscais exclusivamente voltadas à busca de focos de jovens trabalhando foi de 2,7 mil em todo o Brasil; em 2012, foram 7.392 ações do tipo, mas uma quantidade menor de meninos e meninas foi afastada de atividades remuneradas. Em 2007, as inspeções encontravam, em média, seis pessoas com menos de 18 anos a cada incursão em empresas ou logradouros públicos. Agora, a média é de 0,9 – o que significa que, em parte das vistorias, não são encontrados indícios de exploração infanto-juvenil.

Para Isa Maria de Oliveira, secretaria-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), é insuficiente jogar a responsabilidade do combate ao trabalho infantil exclusivamente sobre as fiscalizações do MTE. “Não basta que as inspeções retirem as crianças e adolescentes do trabalho, é preciso articular um conjunto de políticas públicas para evitar que essas situações se repitam”, explica.

O posicionamento dela, entretanto, leva em conta um cenário mais complexo. Todos os casos de flagrantes de crianças e adolescentes em atividades de trabalho seguem um procedimento adicional para a orientação das vítimas. Ao encontrarem meninos e meninas em serviço, as ações de fiscalização os encaminham para outros órgãos responsáveis. Conselhos tutelares, procuradorias do Ministério Público do Trabalho (MPT), órgãos governamentais de assistência social e mesmo organizações do terceiro setor recebem esses jovens. O procedimento é referência para a comunidade internacional e varia conforme as características de cada região do país, conforme indica o auditor Luiz Henrique Ramos, chefe da divisão de fiscalização de trabalho infantil do MTE. “Fazemos uma entrevista para verificar as especificidades de cada caso e encaminhamos os jovens para os órgãos responsáveis”, detalha.

Principal região de aplicação das políticas de combate à pobreza, o Nordeste apresentou os melhores índices de redução do trabalho infantil entre 2000 e 2012 Foto: Leonardo Sakamoto

Para evitar que crianças sejam aliciadas pelo mundo do trabalho, deve-se fortalecer o sistema de garantia de direitos. Foto: Leonardo Sakamoto

“A fiscalização é eficiente, e referência. Deixa a desejar pela falta de recursos, como acontece com os sistemas de garantias”, acrescenta um dos coordenadores do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil (Ipec, na sigla em inglês) do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Antônio Carlos de Mello. Segundo o representante da OIT, a fiscalização cumpre o papel que deve cumprir no combate ao trabalho infantil, e a única ressalva diz respeito à falta de recursos, ponto do qual os auditores que lidam com o tema também reclamam.

É consenso, entre os fiscais do MTE, que faltam equipamentos e mais pessoal para as fiscalizações trabalhistas – sobram relatos do tipo entre os profissionais da área e o concurso para 100 novos agentes na área é apontado como insuficiente para suprir o déficit do serviço, segundo o sindicato da classe, o Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho).

A analogia entre os problemas de estrutura para os agentes de fiscalização do trabalho e as políticas públicas desenvolvidas com o objetivo de manter um sistema de garantias no Brasil para o combate do trabalho infantil faz parte de como a OIT entende a situação, segundo Antônio Carlos. “Existe um interesse internacional nos tipos de políticas públicas desenvolvidos no Brasil, que partem da atenuação da pobreza. O processo vem acontecendo, mas faltam recursos físicos e humanos”, afirma. “Enquanto essa estruturação não acontecer, vai ser difícil erradicar o trabalho infantil.”

Educação e ciclo da pobreza
“As políticas públicas devem atuar sobre o conjunto de questões que são relevantes e impactam a exploração de trabalho infantil”, pontua Isa Maria de Oliveira, do FNPETI. “O não sucesso [de alguns jovens] na escola é uma questão a se analisar. A escola não responde às necessidades daquelas crianças que podem enfrentar problemas familiares”, exemplifica. Segundo ela, há situações em que pais e mães, ao não observarem o bom desempenho escolar dos filhos, forçam a entrada dos meninos e meninas no mundo do trabalho. Nesses casos, os adultos, se não encontram resultados esperados dos filhos, não veem necessidade de a criança perder tempo com o estudo quando já poderiam estar trabalhando.

Menino participa de programa educativa contra o trabalho infantil. Foto: Secretaria Municipal de Educação de Alto Paraguai

Menino participa de programa educativo contra o trabalho infantil. Foto: Secretaria Municipal de Educação de Alto Paraguai (MT)

Uma leitura errada desse tipo de situação seria a de entender que os pais são culpados pelo fato de os filhos serem aliciados pelo mundo do trabalho. A representante do FNPETI entende, porém, que o problema está associado ao próprio modelo de funcionamento da educação no Brasil. Ela recomenda, por exemplo, uma escola em período integral, que assegure o acesso ao lazer de crianças e adolescentes e desenvolva um tipo de coordenação pedagógica que proporcione o pleno desenvolvimento na infância.

A fragilidade das escolas municipais e estaduais pode colaborar para que crianças e adolescentes estudem e também trabalhem, casos que evidenciam a pouca capacidade do sistema educacional de auxiliar no combate ao trabalho infantil. “Muitos jovens, por conta disso, já chegam à idade adulta com uma defasagem educacional”, pondera Antônio Carlos, da OIT. “Para a comunidade mais vulnerável, que de fato vai procurar trabalho por necessidade, essas dificuldades vão perpetuando o ciclo de pobreza. Por isso, deve haver o reconhecimento dessas deficiências por parte do Estado”, completa.

De um lado, o papel das políticas públicas deve ser o de proteger crianças e adolescentes que estejam mais vulneráveis ao aliciamento para o trabalho infantil por meio da garantia de direitos, com a estruturação de serviços de educação, saúde e transporte, em quantidade e com qualidade. De outro, o de articular redes que fortaleçam os vínculos comunitários e familiares dessas pessoas em situação de vulnerabilidade. É, de modo geral, o que entendem os representantes das entidades que lidam com o tema. O coordenador do Ipec aponta que certas medidas já vêm sendo tomadas, como a implementação de algumas escolas de período integral pelo país.

Para a secretária executiva do FNPETI, está claro que a erradicação do trabalho infantil passa pela reestruturação do próprio Estado. Crianças e adolescentes que trabalham não conseguem se desenvolver na plenitude e, portanto, têm dificuldade em almejar um emprego melhor que o dos pais e alcançar uma vida mais confortável. “Não há desenvolvimento sustentável onde há trabalho infantil. O Brasil, inclusive, tem carência de profissionais qualificados”, observa, em referência às dificuldades proporcionadas. “A permanência do trabalho infantil perpetua a pobreza e a desigualdade no Brasil. Não rompe e contribui para a manutenção do ciclo de miséria”, conclui.

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Muitas pedras no caminho http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/muitas-pedras-no-caminho/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/muitas-pedras-no-caminho/#comments Thu, 08 Aug 2013 17:16:25 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1488 Resgate de garoto de 15 anos em condições de escravidão contemporânea numa pedreira no Rio Grande do Sul evidencia outras consequências do trabalho infantil, além da social: os riscos e danos à saúde de crianças e adolescentes

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Para João Júlio**, havia mais do que uma pedra no meio do caminho. Eram centenas, no mínimo. Aos 15 anos de idade, o garoto não ia à escola para, assim como o pai, quebrar pedaços de basalto com uma marreta. Juntamente a um grupo de dez homens, ele foi resgatado do regime de trabalho análogo ao de escravo por uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), ocorrida no último dia 30 de julho, em uma pedreira situada na zona rural do município de Antônio Prado, a cerca de 180 km ao norte de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul (RS). João Júlio era o único com menos de 18 anos.

O garoto João Pedro, em frente à área que trabalhou em condições análogas às de escravo (Fotos: MTE / Divulgação)

O garoto João Júlio, em frente à área em que trabalhou em condições análogas às de escravo (Fotos: MTE / Divulgação)

Segundo os fiscais do MTE, as rochas retiradas do local, de propriedade da empresa Mineração Zulian, seriam utilizadas como paralelepípedos para a pavimentação de ruas e calçadas. O menino era responsável por extrair pedaços do mineral, um tipo atividade que, pelo ambiente insalubre e esforço excessivo, poderia lhe causar graves problemas de saúde.

“Quando a gente fala em saúde, costuma assustar muito mais do que quando falamos somente das consequências sociais do trabalho infantil. Por isso é sempre importante deixarmos claro quais são os riscos”, salienta a coordenadora do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) em Caxias do Sul (RS), a enfermeira Ana Maria Mezzomo. Para ela, jovens com menos de 18 anos que ingressam no mundo do trabalho estão em situação muito mais vulnerável do que os adultos. Conforme explica a agente do Cerest, João Júlio estaria principalmente sujeito a desenvolver problemas em seu sistema ósseo, porque se encontra em fase de crescimento.

“Os esforços requeridos por um adolescente não podem ultrapassar a marca de 2,7 kg. No caso do trabalho em uma pedreira, além de ser perigoso e cansativo, com certeza há o risco de desenvolver doenças osteomusculares”, explica a especialista de saúde. De acordo com a enfermeira, a intensidade do serviço desempenhado pelo menino poderia lhe causar deformações na extremidade superior do osso do fêmur, localizado no interior da coxa, ao ponto de até provocar um defeito ortopédico que na medicina é conhecido como “coxa vara”.

A iminência de acidentes no ambiente de trabalho no caso de crianças e adolescentes é maior, conforme explica a coordenadora do Cerest. As atividades na pedreira, além disso, poderiam oferecer riscos aos sistemas respiratório e cardíaco do garoto. “O coração do menino poderia não aguentar o esforço, já que ainda está em fase de desenvolvimento”, afirma. A ausência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), situação a que todas as vítimas resgatadas na pedreira estavam submetidas, seria um agravante para problemas de respiração, devido à poeira provocada e aos resíduos tóxicos depreendidos da extração mineral.

Área na comunidade de Caravaggio por onde se estende a pedreira em Antônio Prado, no Rio Grande do Sul

Área na comunidade de Caravaggio por onde se estende a pedreira em Antônio Prado, no Rio Grande do Sul

Danos ao sistema psíquico do menino também seriam possíveis, por causa de traumas, estresse ou outras situações pelas quais o garoto poderia passar enquanto estivesse precocemente em um ambiente da vida adulta. “A exposição excessiva, e em horário inapropriado, ao sol também pode causar problemas de pele a crianças e adolescentes expostos a atividades em ambientes abertos”, acrescenta Ana Maria Mezzomo.

O serviço de extração de pedras está incluído na lista de piores formas de trabalho infantil (Lista TIP), reconhecida em 2008 pelo Governo Federal. Entre alguns dos problemas de saúdes decorrentes desse tipo de atividade, a Lista TIP indica “queimaduras na pele”, “doenças respiratórias”, “lesões e deformidades osteomusculares” e “comprometimento do desenvolvimento psicomotor”.

Fiscalização
De acordo com o auditor fiscal do MTE, Vanius João Corte, o pai de João Júlio chegou a trabalhar, em um momento anterior, na mesma pedreira em que o menino foi resgatado. No momento do recebimento das verbas rescisórias, ele compareceu com o garoto, que, segundo a fiscalização, não aparentava problemas de saúde. O agente trabalhista diz que, neste ano, foram flagrados outros dois casos de trabalho infantil nos entornos de Caxias do Sul, maior município próximo a Antônio Prado. “É comum o emprego de crianças e adolescentes na região. E a atividade mineral é forte devido ao solo rico em basalto”, comenta.

Problemas nas instalações da pedreiram levaram à interdição do local

Problemas nas instalações da pedreira levaram à interdição do local

Na pedreira, o adolescente e os outros nove resgatados de condições análogas às de escravo desempenhavam as atividades sem registro em carteira de trabalho. O empregador no local também não fornecia ao grupo de trabalhadores escravizados as ferramentas para o serviço nem alojamento adequado, instalações sanitárias ou ambiente para preparar e consumir refeições. Por não apresentarem condições mínimas de segurança, as instalações foram interditadas. Ao fim do processo de fiscalização, todos os trabalhadores retornaram a suas casas, custeados pelo empresa responsável pelo caso, a Mineração Zulian.

A reportagem não conseguiu contato com o jovem, algum parente dele ou seu empregador para comentar o caso.

** nome fictício para preservar a identidade da vítima

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Tortura e escravidão em caso de trabalho doméstico infantil http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/tortura-e-escravidao-em-caso-de-trabalho-domestico-infantil/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/tortura-e-escravidao-em-caso-de-trabalho-domestico-infantil/#comments Thu, 25 Jul 2013 17:38:23 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1437 Justiça condena empregadora por abusos durante quase três anos. Vítima sofreu violência física, trabalhou sem receber e foi impedida de estudar ou ver a mãe

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

A 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) condenou, em 18 de julho, Maria Aparecida da Rocha a 6 anos e 8 meses de prisão em regime inicial semiaberto, por torturar e reduzir à condição de escravo uma adolescente dos 15 aos 18 anos. A decisão foi publicada na última segunda-feira (22). Segundo a denúncia do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) que culminou na condenação, a menina foi vítima de abusos físicos e mentais enquanto prestou serviços domésticos à condenada no período entre 2004 e 2007, na região administrativa de Riacho Fundo II, ao sudoeste de Brasília (DF).

A jovem, com então 15 anos de idade, teria deixado sua cidade natal, Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, para ir trabalhar na casa da Maria Aparecida da Rocha, em agosto de 2004. Até fevereiro de 2007, a adolescente sofria ameaças verbais e violência física, sendo vítima de lesões provocadas por facas e alicates. Depois de três tentativas, ela conseguiu deixar o local após contatar seu tio, que imediatamente acionou a polícia. Junto dele, ela foi para Teresina, no Piauí.


Percurso entre a cidade da vítima e a casa em que foi escravizada. Exibir mapa ampliado

De acordo com o MPDFT, durante esse período de quase três anos a empregadora teria impedido que a jovem deixasse a residência em que trabalhava e pudesse ver a própria mãe. Ainda segundo a denúncia, os serviços nunca eram remunerados, e o acesso à escola, proibido. Há relatos de que a acusada usaria da menina também para oferecer serviços a outras residências.

Em declaração à Justiça, a vítima relata sucessivos abusos e agressões pelas quais passava. “A acusada, diariamente, por qualquer pequeno motivo ou pretexto, passou a surrá-la”, descreve o depoimento. Fios, facas e martelos teriam sido utilizados para provocar golpes desde o pescoço até as costas da adolescente. A menina começava a trabalhar todo dia por volta das duas da manhã, quando era acorda por agressões. Por não conseguir descansar tempo suficiente, ela conta que ficava o dia inteiro sonolenta, e isso seria motivo de ainda mais violência.

Trabalho doméstico infantil

O trabalho doméstico está previsto na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), criada pelo decreto 6.481 assinado em junho de 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com base na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro de 2011 haviam pouco mais de 250 mil crianças e adolescentes exercendo atividades do tipo por todo o Brasil: 67 mil na faixa de 10 a 14 anos, e 190 mil na faixa de 15 a 17 anos.

Desse total, pelo menos 90% seriam do sexo feminino.


Vídeo institucional do Ministério Público do Distrito Federal contra trabalho infantil

Defesa
Contra os argumentos da promotoria, a ré alegou insuficiência de provas para a condenação, mas a Justiça não aceitou a apelação. Os magistrados mantiveram, na íntegra, a decisão condenatória proferida em primeira instância, e não acataram o recurso interposto pela defesa de Maria Aparecida da Rocha.

Para o desembargador Roberval Belinati, relator da condenação, os laudos de corpo de delito e as fotos anexadas nos autos da denúncia não deixam dúvida dos abusos cometidos contra a jovem. “As provas comprovam que a vítima foi submetida a ilegal e intenso sofrimento físico e mental, durante vários anos, como forma de castigo pessoal, em condições degradantes de alimentação, acomodação e trabalho, sem receber qualquer remuneração”, assinalou.

O magistrado observa, além disso, que a acusada manteve a menina presa e sem acesso a comunicação. “Além do trabalho excessivo, a acusada ainda a impedia de se comunicar com a família, restringindo sua liberdade de locomoção”, acrescenta.

Tortura e trabalho escravo

Restrições à liberdade de ir e vir e trabalho forçado são duas definições previstas para as formas de escravidão contemporânea, tipificadas no artigo 149 do Código Penal brasileiro. A pena prevista pela lei prevê reclusão de dois a oito anos, bem como multa. Em casos em que a exploração de mão de obra análoga à de escravo envolve vítimas com menos de 18 anos, a punição é aumentada da metade.

Na última atualização do cadastro de empregadores flagrados com o uso de trabalho escravo, a “lista suja” do trabalho escravo, mantida pelo governo federal, há pelo menos oito casos em que o crime de reduzir pessoas à escravatura aparece junto da exploração de crianças e adolescentes.

O crime de tortura, por sua vez, está prescrito na lei 9.455/1997, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A prática é inafiançável e não anistiável, além de ser considerada crime hediondo e contra a humanidade. Para casos em que as vítimas são crianças, adolescentes, gestantes, idosos ou pessoas com deficiência a pena é aumentada em um sexto a um terço do total determinado pela Justiça.

Leia também:

Mobilização global contra o trabalho infantil doméstico
Pequenas domésticas, a violação invisível
A dura realidade do trabalho infantil doméstico

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Inclusões em ‘lista suja’ reforçam o elo entre escravidão e trabalho infantil http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/inclusoes-em-lista-suja-reforcam-o-elo-entre-escravidao-e-trabalho-infantil/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/inclusoes-em-lista-suja-reforcam-o-elo-entre-escravidao-e-trabalho-infantil/#comments Thu, 11 Jul 2013 17:37:43 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1396 Atualização de cadastro federal com empregadores que utilizaram mão de obra escrava tem pelo menos oito nomes de empregadores que também se beneficiaram da exploração de crianças e adolescentes, em atividades consideradas entre as piores formas de trabalho infantil

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

Serviços forçados, submissão a condições degradantes de vida, jornadas exaustivas, restrições à liberdade de ir e vir e todas as demais situações características da escravidão contemporânea não são formas de violência que têm por alvo exclusivo homens e mulheres adultos. Fiscalizações com o objetivo de investigar o emprego de mão de obra análoga à escrava também encontram com frequência crianças e adolescentes sujeitas a tais violências.

De acordo com levantamento da Repórter Brasil, a atualização ocorrida em 28 de junho do cadastro de empregadores flagrados explorando pessoas em condição análoga à de escravatura, a chamada “lista suja” do trabalho escravo, contém, num total um de 142 novos nomes incluídos, a participação de pelo menos oito deles em casos de exploração laboral infantil. Mantida em conjunto pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), a relação é considerada uma das mais importantes ferramentas na luta pela erradicação da escravidão contemporânea no Brasil.

Muitas vezes, fiscalizações que investigam o uso de mão de obra escrava encontram também casos de trabalho infantil. Foto: Leonardo Sakamoto

No total, a “lista suja” do trabalho escravo conta com 503 nomes (clique aqui para ver a tabela completa). A relação vem sendo atualizada semestralmente, desde o final de 2003, e reúne empregadores flagrados pelo poder público na exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão. O cadastro tem sido um dos principais instrumentos no combate à prática, através da pressão da opinião pública e da repressão econômica. Após a inclusão do infrator, instituições federais, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES suspendem a contratação de financiamentos e o acesso a crédito. Bancos privados também estão proibidos de conceder crédito rural aos relacionados na lista por determinação do Conselho Monetário Nacional.

A inclusão de oito empregadores flagrados com o uso da mão de obra de crianças e adolescentes entre os 142 novos nomes reforça o elo entre as formas contemporâneas de escravidão e o trabalho infantil. Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), publicado em 2011, cerca de 90% do montante de adultos sujeitos à escravatura em território brasileiro até aquele momento haviam começado a trabalhar antes dos 16 anos de idade.

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Algumas das piores formas de trabalho infantil aparecem na atualização da ‘lista suja’. Foto: Marinalva Cardoso Dantas / SRTE/RN

Lista TIP e trabalho escravo
Em alguns dos casos em que a exploração infantil ocorre concomitante às formas de escravidão contemporânea, os serviços desempenhados por jovens, não raro, coincidem, por um lado, com aquelas descritas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). Com as bases lançadas em 1999 pela Convenção 182 da OIT, a Lista TIP passou a valer no país em 2008, a partir do decreto número 6.481, assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na relação, constam 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham.

A legislação brasileira define o emprego de escravos como crime, previsto no artigo 149 do Código Penal. E, quando a prática incide sobre crianças e adolescentes, a pena aos infratores é mais severa. Para aqueles que utilizarem de mão de obra escrava, espécie de violação dos direitos humanos no interior das relações trabalhistas, a punição prevista é a de prisão por um período de até oito anos, além de multa, conforme a gravidade da violência praticada.

Nas recentes inclusões no cadastro federal de empregadores com trabalho escravo há a ocorrência, por mais de uma vez, de alguma das piores formas de exploração infantil previstas na Lista TIP.

Suja, e nas piores formas
Adelson Souza de Oliveira está na “lista suja” do trabalho escravo devido ao flagrante de quatro trabalhadores em situação análoga à de escravo, ocorrido em 2007, na Fazenda Verena II, no município de Novo Repartimento, no Pará. À época, o empregador era o então prefeito da cidade de Iaçu, na Bahia, pelo PMDB. Um pai e seus três filhos, um deles com menos de 17 anos, eram responsáveis pela limpeza do pasto do rebanho bovino criado na propriedade. Segundo a Lista TIP, a atividade desempenhada pelo adolescente, na ocasião, poderia lhe provocar cortes, perfurações e lhe expunha ao risco de doenças ou outros acidentes, pelo contato próximo a animais.

Foto SRTE/MA

Na fazenda pertencente à Líder Agropecuária, crianças bebiam a mesma água usada por animais. Foto: SRTE/MA

No desempenho de serviços semelhantes, e sujeito aos mesmos riscos, um grupo de sete pessoas, entre as quais crianças, foi resgatado da escravidão, em 2012, em uma área pertencente à empresa Líder Agropecuária – incluída na “lista suja” e que tem como um dos sócios o deputado estadual Camilo Figueiredo (PSD/MA). A água que o contingente libertado utilizava, para banho e consumo, era a mesma da qual os animais da Fazenda Bonfim, na zona rural de Codó, no Maranhão, bebiam.

O parlamentar maranhense, no entanto, não é o único político nessa situação. O deputado federal Urzeni de Rocha Freitas Filho (PSDB/RR) consta na “lista suja”, acrescido também ao fato de ter se beneficiado de trabalho infantil, segundo o Ministério Público Federal em Roraima (MPF/RR).

Entre um grupo de 16 resgatados sob responsabilidade de Sérgio Luiz Xavier, havia um adolescente com 16 anos de idade responsável pela aplicação de agrotóxicos. Conforme a Lista TIP, esse tipo de serviço, em contato com venenos, pode provocar desde problemas respiratórios até, em casos mais graves, doenças cardíacas. Então proprietário da Fazenda Terra Roxa, localizada em Cumaru do Norte, no Pará, o empregador entra para a “lista suja” por conta desse flagrante de trabalho escravo ocorrido durante o ano de 2006.

Outro episódio em que os empregos de trabalhos infantil e escravo aconteceram conjuntamente foi tema de reportagem publicada este ano. Juntamente a um grupo de 34 resgatados, todos imigrantes vindos do Paraguai, sete adolescentes trabalhavam na colheita de mandioca, na Fazenda Dois Meninos, de propriedade de Cleber Geremias, em Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Na ocasião, depois de libertados da condição de escravo, a Polícia Federal (PF) notificou os estrangeiros a deixar o país. A ação da PF foi alvo de polêmica e contrariou medidas de acolhimento a migrantes vítimas da escravidão, ratificadas pelo Estado brasileiro.

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Crianças catam sururu que abastece quiosques e restaurantes do Recife http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-catam-sururu-que-abastece-quiosques-e-restaurantes-do-recife/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/criancas-catam-sururu-que-abastece-quiosques-e-restaurantes-do-recife/#comments Thu, 27 Jun 2013 17:05:01 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1283 Tipo de marisco muito apreciado na culinária do Recife, o sururu é frequentemente pescado por crianças e adolescentes de comunidades ribeirinhas urbanas da cidade

Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil
do Recife (PE)

Normalmente é assim. Os ribeirinhos da bacia do Pina, no Recife, saem para pescar o sururu ainda na barriga da mãe. Quem brinca é Ronaldo, morador da comunidade Ilha de Deus, enquanto está na superfície despejando o molusco numa galeia – em seguida, submerge novamente. A brincadeira, no entanto, tem o seu fundo de verdade, como diz o ditado. Hoje com 20 anos, o rapaz começou no ofício aos cinco. Espécie de marisco pequeno, a iguaria é muito comum em mercados, feiras, bares e restaurantes da capital pernambucana. Em geral, é preparada com leite de coco – quando ganha um sabor adocicado – e servida com farinha de mandioca e limão. Seu caldinho, apreciado tanto em restaurantes “finos” quanto em quiosques de praia, é considerado afrodisíaco. “Desde que nasci trabalho com o sururu. Com cinco anos já estava na maré. Chegava a faltar na aula para ir pescar”, conta Ronaldo, que parou de estudar no sexto ano do ensino fundamental.

Quando este mergulha para pegar mais sururu, quem fala é Gustavo*, parceiro de pescaria. Sentado na beira da canoa já repleta de bacias com o molusco, ele mexe freneticamente as pernas, de forma alternada, dentro da galeia – espécie de caixote – mergulhada na água lodosa. “Estou lavando o sururu”, explica o garoto, de 15 anos. O movimento repetitivo não é o único desconforto. O contato com a casca fina do marisco causa inúmeras feridas na sola de seu pé. “Não tem jeito, paciência, tem de fazer isso. As feridas a gente lava na maré, que a maré faz sarar.”

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Ronaldo volta à superfície e despeja os sururus na galeia para Gustavo lavá-los (Fotos: Igor Ojeda)

Estamos nas proximidades das pontes Governador Paulo Guerra e Engenheiro Antônio de Góes – que ligam a Zona Sul ao Centro e à Zona Norte do Recife –, no meio da bacia do Pina, ecossistema situado em plena área urbana, na parte interna do porto da capital pernambucana, formado pela confluência dos rios Capibaribe, Tejipió, Jordão e Pina. Da Ilha de Deus, Gustavo e Ronaldo remaram bons minutos até um banco de lodo onde era possível pescar o sururu. Em uma das margens, pode-se avistar as casas de alvenaria da comunidade Brasília Teimosa, antiga favela de palafitas que se tornou famosa nacionalmente depois da visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apenas uma semana após sua posse, em janeiro de 2003. No lado oposto, destacam-se edifícios de alto padrão.

Trabalho infantil
A pesca do sururu é uma das principais atividades econômicas das comunidades ribeirinhas dessa área, todas formadas há décadas. E, há décadas, os moradores desses locais começam desde criança a exercer esse tipo de trabalho, normalmente acompanhando os pais, que, por sua vez, não têm condições financeiras de sustentar a família sozinhos. Como acontece em muitos outros casos, na coleta desse molusco o trabalho infantil é naturalizado.

É a maré que determina que horas Gustavo e Ronaldo começam a trabalhar. Tem dias que eles saem às quatro da manhã. Outros, às sete. Os ribeirinhos gostam de aproveitar as marés baixas, pois desse modo o sururu fica mais próximo da superfície. Há vezes, porém, em que é preciso descer a cinco metros de profundidade, sob o risco de faltar fôlego e sentir câimbras. “Já salvei tanto criança quanto gente grande de se afogar”, conta Gustavo. Em geral, dependendo do rendimento, os dois amigos ficam de duas a quatro horas pescando o molusco. Assim que voltam para casa, eles o cozinham e pagam alguém da própria comunidade para catá-lo. “Catar” o sururu significa, na verdade, abri-lo um a um e retirar sua carne. O trabalho, igualmente muitas vezes realizado por crianças, é extremamente desgastante e pode causar feridas nas mãos por conta da casca afiada do pequeno marisco.

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Muitos moradores da comunidade do Pina vivem em palafitas sobre o mangue

Gustavo e Ronaldo costumam vender o produto “final” no Mercado São José, o mercado municipal da cidade. “Vendemos a seis, cinco reais o quilo. Agora está mais barato. Tem que trabalhar mais”, diz o adolescente de 15 anos, que usa parte do que recebe para comprar roupas e deixa o resto em casa, onde vive com a mãe e duas irmãs, de 12 e sete anos. “Com o que ganhamos, dá pelo menos para sobreviver.” Para seguir trabalhando, Gustavo abandonou a escola ainda mais cedo que Ronaldo, na quinta série. Mas não é o que quer fazer a vida toda. “Ainda sou adolescente. Quando crescer quero arrumar um serviço melhor. Quero ser jogador de futebol do Sport”, revela o torcedor fanático do time pernambucano.

O decreto presidencial 6.481, de 2008, inclui tanto a coleta de mariscos quanto as atividades em mangues e lamaçais ou que envolvam mergulhos na lista de piores formas de trabalho infantil. De acordo com o documento, além das intempéries climáticas, as crianças e adolescentes que pescam sururu estão expostas a “posturas inadequadas e movimentos repetitivos; acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes; horário flutuante, como as marés; águas profundas”. Como resultado, podem sofrer queimaduras na pele, envelhecimento precoce, câncer de pele, desitratação, doenças respiratórias, fadiga, dores musculares nos membros e na coluna, ferimentos, distúrbios do sono e afogamento.

Já meninos e meninas obrigadas a mergulhar em suas atividades laborais, como é o caso da coleta de mariscos, correm o risco de se afogar, terem a membrana do tímpano perfurada e sofrerem de uma série de enfermidades, como embolia gasosa, otite, sinusite e labirintite. O trabalho em mangues e lamaçais, por sua vez, expõe crianças e adolescentes com menos de 18 anos à umidade, cortes e perfurações e contatos com excrementos, situações que podem resultar em rinites, bronquites, dermatites e leptospiroses, entre outras doenças.

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Na foto acima, a pobreza e poluição da comunidade do Pina contrasta com o shopping de luxo ao fundo. Abaixo, a comunidade vista do alto (clique para ver mapa ampliado)

Contraste
Quem “guia” a reportagem é Daiane. Moradora da Ilha de Deus, ela também costumava pescar sururu, “ofício” que igualmente começou a exercer desde pequena. Hoje, aos 20 anos, faz trabalhos de manicure e de diarista e pretende fazer faculdade de engenharia num futuro próximo. “Normalmente, quem vai para a maré é o homem, enquanto a mulher fica na cata, muitas vezes com a ajuda dos filhos. Mas, quando não tem homem, vai a mulher mesmo”, explica. Há alguns anos, quando ainda era adolescente, a jovem participou de uma ação do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec) contra o trabalho infantil na sua comunidade. O resultado, segundo ela, foi muito bom. “Diminuiu a incidência de trabalho infantil na pesca do sururu na Ilha de Deus.” Nos últimos dois anos, além disso, a região foi urbanizada pela Prefeitura do Recife, política que fez melhorar as condições de moradia da população local.

Melhorias que ainda não chegaram para a população ribeirinha do Pina. Na “entrada” da comunidade, no entanto, a realidade é um tanto distinta. Inaugurado em outubro do ano passado, o RioMar Shopping destoa na paisagem. Terceiro maior centro de compras do Brasil, atrás do Shopping Leste Aricanduva, de São Paulo, e do Salvador Shopping, o estabelecimento é destinado em parte ao consumo de alto luxo, com lojas como Hugo Boss, Chanel Fragrance & Beauté, Daslu, e Diesel. Partindo do ponto de encontro no RioMar, conforme Daiane e a reportagem caminham em direção aos manguezais, as casas simples de alvenaria vão dando lugar a apertadas construções de madeiras, e ruas asfaltadas tornam-se ruelas e becos de terra. Espalhadas pelo chão, bacias cheias de sururu. Sob um telhado de zinco, uma mulher descasca o molusco.

Numa dessas moradias precárias, vive, com a família, Mariana*. “Pego sururu desde os dez anos, para ajudar minha mãe”, diz a garota, hoje com 14 anos. Ela costuma ir com o marido de uma das irmãs e um vizinho, ambos adultos. A tarefa é alternada: às vezes fica incumbida de lavar o marisco pescado na galeia, o que causa feridas nos pés. Outras vezes, ela própria mergulha para buscá-lo. “A água bate no peito”, conta. Por causa do trabalho, a menina parou de estudar na quarta-série. Não chegou a aprender a ler e escrever.

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Para ajudar a mãe, Mariana pesca sururu desde os dez anos de idade

Palafitas
Acompanhada de Daiane e da reportagem, Mariana sobe em uma das canoas ancoradas na beira do mangue e começa a remá-la em direção ao mar, distante alguns quilômetros – no meio do caminho, alguns minutos depois, encontraríamos Gustavo e Ronaldo. Do barco, a visão é ainda mais impressionante. Inúmeras palafitas avançam sobre o rio. Sacos de lixo e entulhos de todo o tipo, e ratos correndo na borda ou até dentro da água compõem a paisagem. Após alguns minutos, o RioMar Shopping surge imponente ao fundo. Mariana liga o motor. “Quando eu pescava, era só no remo. Agora alguns barcos têm motor. O pessoal pagar uns R$ 500 para um morador construir a canoa. O motor custa uns R$ 150”, explica Daiane.

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Segundo Edlene, está cada vez mais difícil sobreviver da pesca do molusco

A primeira parada é na Ilha de Deus, onde várias mulheres e algumas meninas estão sentadas catando o sururu. Uma delas é Edlene Maria Alves da Silva, de 45 anos. “Cheguei novinha aqui. E desde que cheguei, trabalho com o sururu. Antes só pescava, depois comecei mais a catar. Mas ainda pesco.” Segundo ela, está cada vez mais difícil sobreviver com a venda do molusco. “Está chovendo muito. O braço de mar aqui é fraco. Quando chove dois, três dias, o sururu morre, porque a água fica salobra, e ele vive mais na água salgada”, lamenta.

A auditora-fiscal Paula Neves, coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), lembra que no Recife as crianças e adolescentes não ficam restritas à pesca e à cata do sururu. Muitas o vendem nas praias da cidade. A comercialização de alimentos e outros produtos na orla da capital pernambucana é uma das atividades com maior incidência de trabalho infantil. “Os meninos que trabalham na praia normalmente param de estudar na oitava série. Muitos deles dizem que trabalhando por três ou quatro dias por semana ganham mais do que o pai”, diz Paula.

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Menina da comunidade Ilha de Deus cata sururu: risco de ferimentos

*nomes alterados para preservar a identidade dos entrevistados

Leia também:
Meninos do mangue, a cata de caranguejos em João Pessoa (PB)

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Mobilização global contra o trabalho infantil doméstico http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/mobilizacao-global-contra-o-trabalho-infantil-domestico/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/mobilizacao-global-contra-o-trabalho-infantil-domestico/#comments Wed, 12 Jun 2013 18:06:33 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1316 No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, relatórios destacam gravidade do problema. Segundo OIT, essa forma de exploração atinge 15,5 milhões de crianças e adolescentes

Por Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil

No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, celebrado nesta quarta-feira, 12 de junho, organizações da sociedade civil e autoridades se mobilizam para chamar a atenção para o trabalho infantil doméstico. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que publicou relatório destacando a gravidade da exploração de crianças e adolescentes em residências, o problema afeta aproximadamente 15,5 milhões em todo o mundo. São meninos e meninas sujeitos a violência, abusos sexuais e doenças físicas e mentais, e que têm dificuldades e/ou não conseguem acompanhar a escola. O trabalho infantil doméstico também foi tema de relatório publicado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), e de um dos capítulos do relatório “Brasil livre de trabalho infantil”, lançado recentemente pela Repórter Brasil.

Baixe os relatórios:
OIT – Erradicar o trabalho infantil no trabalho doméstico (em inglês, espanhol e francês)
FNPETI – O trabalho infantil doméstico no Brasil
Repórter Brasil – Brasil livre de trabalho infantil

Das 15,5 milhões de vítimas de trabalho infantil no planeta, 5 milhões de crianças e adolescentes são exploradas em países que não proíbem a prática e que, portanto, não ratificaram a Convenção 182 da OIT, que a proíbe de ser desempenhada por menores de 18 anos. Conforme a convenção, a atividade é considerada uma das piores formas de trabalho infantil. O relatório também lembra a Convenção 138, que define a idade mínima para admissão em 15 anos, independentemente da profissão. Apesar de ter sido ratificada por 161 países, quase metade (7,4 milhões) dos 15,5 milhões de trabalhadores domésticos com menos de 18 anos têm entre 5 e 14 anos.

A questão não pode ser entendida “puramente em termos de direitos da criança ou como um problema trabalhista”, lembra o relatório, citando que, de todos os 776 milhões de analfabetos no mundo, dois terços são mulheres. O dado reforça o argumento de que existe uma grande diferença entre as oportunidades de trabalho para mulheres e homens jovens. “A posição de subordinação e marginalização das garotas em muitas sociedades compõe os problemas que elas enfrentam no mercado de trabalho”, diz o estudo. Entre os que têm menos de 18 anos ocupados no trabalho doméstico, 73% são mulheres.

Debates e lançamento de campanha no Brasil

Uma série de debates, atos e ações foram marcados para a semana de 12 de junho, o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. A Fundação Telefônica Vivo, parceira da Repórter Brasil no especial Meia Infância, deu início a uma nova etapa da campanha “É da Nossa Conta!”, com eventos focados nas regiões Norte e Nordeste, regiões com os maiores índices de trabalho infantil. Leia na Rede Promenino.

A OIT e o FNTEPI, em conjunto com outras entidades, iniciaram a campanha “Tem criança que nunca pode ser criança”, que pode ser conferida clicando aqui.

Já o MPT lançou a campanha “Trabalho infantil não é legal”, com inserções nos meios de comunicação (veja vídeo abaixo). O órgão também preparou atividades no Amazonas, Maranhão, Paraná, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Ceará (clique para saber mais sobre os eventos e confira o vídeo abaixo).

No Brasil
Apesar de ter ratificado as convenções 182 e 138 da OIT em 2000 e 2001, respectivamente, o país ainda tem 258 mil crianças e adolescentes ocupados em trabalho doméstico. Os dados são do IBGE e foram organizados no relatório do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

De acordo com Rafael Dias Marques, coordenador nacional do programa de combate ao trabalho infantil do Ministério Público do Trabalho (MPT), a pobreza já não é mais a causa essencial no Brasil para a existência de trabalho infantil. Segundo ele, aproximadamente 40% das famílias que exploram esse tipo de mão de obra não está na faixa de extrema pobreza atualmente. “A pobreza está hoje aliada ao desejo de acesso das crianças e adolescentes ao bens de consumo, o que conduz também a uma entrada precoce ao mercado de trabalho”, diz. Ele também defende que o país faça fortes investimentos para atender às crianças e às famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. O coordenador ainda ressalta a importância de campanhas de conscientização como forma de romper com a aceitação social existente em relação ao trabalho infantil.

Os dados do relatório produzido pelo FNPETI mostram que a região que concentra o maior número de crianças e adolescentes em trabalhos domésticos é o Nordeste, com 39,8% do total. Quase todos os jovens são mulheres (93,7%), a grande maioria é de negros (67%) e está em meio urbano (79,3%). Veja mais no infográfico abaixo.

Trabalho perigoso
Quase metade das crianças vítimas de trabalho doméstico estão submetidas a condições que podem afetar sua saúde, segurança ou integridade moral, além de jornadas de trabalho de mais de 43 horas por semana. Outros perigos incluem trabalho noturno e exposição a abusos físicos ou sexuais, mas não existem dados confiáveis sobre isso, segundo o relatório, que também cita um estudo feito no Brasil revelando que as crianças envolvidas em trabalho doméstico têm muito mais chances de sofrer com dores osteomusculares do que as empregadas em outros setores.

A OIT conclui que “a pobreza está invariavelmente por trás da vulnerabilidade de uma criança ao trabalho doméstico” e o “trabalho infantil doméstico não é simplesmente uma preocupação das crianças, suas famílias e comunidades”. Por isso, deve ser combatido com políticas amplas de desenvolvimento e decisões sobre a alocação de recursos orçamentários. Além disso, a entidade aponta ser importante também a criação de leis que estendam aos trabalhadores domésticos os mesmos direitos de outras categorias porque “a proteção a trabalhadores domésticos jovens e o avanço para a eliminação do trabalho infantil doméstico estão interrelacionados e se reforçam mutuamente”.

Leia também:

 

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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“Às vezes, criança: um quase retrato de uma infância” http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/as-vezes-crianca-um-quase-retrato-de-uma-infancia/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/as-vezes-crianca-um-quase-retrato-de-uma-infancia/#comments Thu, 02 May 2013 15:48:50 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=1065 Auditores fiscais publicam livro com fotos e versos para tornar visível a realidade de meninas e meninos que, forçados a trabalhar, aos poucos perdem a infância

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

“Menino que vai pra feira
Vender sua laranja até se acabar
Filho de mãe solteira
Cuja ignorância tem que sustentar
[…]
Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor!”

(“O Menino das Laranjas” – Théo de Barros, música interpretada por Elis Regina)

Elis Regina eternizou o “menino das laranjas”, quando, com sua voz, trouxe à luz a história do garoto que todo dia acorda cedo para vender frutas e ajudar a mãe no sustento do lar. A música, composição de Theo de Barros, narra e repercute, já em 1965, um caso de exploração do trabalho infantil. Passados quase 50 anos, a canção ainda hoje toca nas rádios. Chama a atenção para um problema que, no dia a dia, persiste na cidade e no campo, mesmo despercebido, e sob outras formas: crianças que trabalham, em feiras, inclusive, por todo o Brasil.

Em certos contextos, a arte costuma ser o campo que expressa e reflete as contradições, valores e aspirações de uma sociedade, ao mesmo tempo em que também procura sensibilizar e dar dimensão a certos aspectos da conjuntura social. No caso do trabalho infantil, além de “O Menino das Laranjas”, na voz de Elis, o livro “Às vezes criança: um quase retrato de uma infância roubada”, de autoria dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) Rubervam Du Nascimento e Sérgio Carvalho, respectivamente com 35 anos e 18 anos de atividade profissional, aborda de modo muito parecido a exploração de crianças e adolescentes.

Fotos: Sérgio Carvalho / "Às vezes, criança" / ©

Fotos: Sérgio Carvalho / “Às vezes, criança” / ©

Através de poesias escritas por Rubervam e fotos capturadas por Sérgio, apresentam-se ao longo das páginas retratos da exploração de crianças e adolescentes que se veem compelidos a entrar mais cedo na vida adulta. Para ambos, a obra tenta retirar a invisibilidade e despertar a sensibilidade para o problema. “A ideia é exatamente mostrar que o trabalho infantil é bem visível para toda a sociedade, mas ao mesmo tempo não conseguimos percebê-lo. É uma realidade no dia a dia das pessoas, não só do auditor fiscal. Todo dia você vê crianças trabalhando. Isso virou normal para a sociedade”, afirma à Repórter Brasil o autor das fotografias na publicação.

A ideia é não só ajudar no despertar sobre a questão, mas também colocar o tema de uma forma que não pareça banal, exatamente o contrário de uma terapia de choque sobre a realidade em que não é possível vislumbrar qualquer saída para a situação presente. Abordar o trabalho infantil através da linguagem poética, portanto, é uma forma de reorganizar e transformar a percepção sobre o problema, de acordo com Rubervam. “Não há arma verbal mais poderosa para trabalhar com as subjetividades que nos envolvem no dia a dia do que a poesia”, defende. “É a poesia que, de todas as outras artes, se atreve a mexer com nosso sistema límbico, despertar os nossos sentimentos de dor e revolta adormecidos”.

“Dia a dia do cidadão”
“A grande maioria dessas fotos é feita no dia a dia do cidadão”, lembra Sérgio. Ele explica que as imagens ao longo do livro são na verdade frutos de suas viagens, passeios e andanças pelo país, e não registros da atividade que realiza como auditor fiscal do MTE, ao contrário do que pode parecer em uma primeira leitura. “A gente fez questão de não citar locais para não regionalizar, porque é um problema do país todo”. Essa iniciativa, acredita, vem justamente no sentido de problematizar o trabalho infantil como parte do universo dos brasileiros. “Se você legenda a imagem, parece que é um problema só daquele lugar que foi fotografado”, completa.

asvzscriancascOs retratos da exploração de crianças e adolescentes acompanham, além disso, imagens de meninas e meninos em momentos de brincadeira, como um respiro entre tantas situações de abuso e falta de perspectiva. “No livro, o normal vira a exceção: a quantidade de imagens de crianças trabalhando é muito maior do que a de crianças brincando. Também a ideia é mostrar o que deveria ser sua realidade”, afirma o fotógrafo. Enquanto a maior parte das imagens as mostra em casas de farinha, pedreiras, lixões, estradas e matadouros, uma minoria registra o sorriso delas, sem terem de carregar antecipadamente as preocupações e os riscos da vida adulta.

Para entender a situação que afeta milhões de crianças e adolescentes pelo país – são pelo menos 3,4 milhões de vítimas do trabalho infantil, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Censo de 2010 – de um modo que vai além do possibilitado pelo ofício de fiscal trabalhista, os autores salientam a importância das trocas e conversas que têm com os meninos e meninas. “Procuro sempre fotografar como participante, um tipo de fotografia que chamamos de ‘dialógica’, ao contrário do que chamam de ‘ladrão de imagens’”, conta Sérgio. Das imagens no livro, ele destaca o caso de um menino, na sua cidade natal, que trabalhava em um matadouro (veja box abaixo). “Na verdade, a fotografia é um processo, é uma troca entre o fotógrafo e o fotografado, principalmente para ter esse tipo de imagem”, acrescenta.

“Sempre converso com as crianças e adolescentes que retiro do trabalho irregular. Não é certo acreditar que elas trabalham porque querem. Trabalham porque são obrigadas”, reforça Rubervam. O fiscal do MTE lembra que a exploração de crianças e adolescentes está ligada a outros fatores, como a desigualdade social, o descaso de certos governantes e o silêncio sobre o problema, parte do que classifica como “discurso da miséria cultural secular que nos acompanha”. “O silêncio é uma praga de bico afiado que se enfia com uma força perversa em nosso tecido social. Com o silêncio é que a sociedade tenta embrulhar a realidade que a incomoda”, adverte.

asvzscriancasc2“Bandidos, e não mocinhos” ou preto-e-branco
“As crianças são vítimas do comportamento dos adultos, da incompetência e insensibilidade de gestores públicos que brincam com essa questão”, continua Rubervam, em referência às circunstâncias em que crianças e adolescentes aparecem como culpadas pela violência urbana ou então quando o senso comum insiste que seria melhor ver esses jovens inseridos no mundo do trabalho, quando na verdade deveriam estudar, brincar e seguir somente depois à vida adulta. Ele cobra mais responsabilidade de autoridades e dos próprios cidadãos quanto ao problema. “Nesse filme violento, é bom que assumamos, de uma vez por todas: todos nós somos bandidos, e não mocinhos”.

asvzscriancasc1É dessa realidade dura que o escritor diz buscar a fonte de seu trabalho poético. “A matéria-prima de minha poesia, nos últimos 30 anos de convivência com a escritura, tem a ver com o que consigo apalpar cheirar, devorar, no dia a dia, na tentativa de transformá-lo em objeto de expressão artística”, conta. Questionado por esta reportagem por que preferiu, no livro, fazer o registro em versos, e não em prosa, ele é enfático em defender seu tipo de linguagem. “Meus referenciais são poetas que ousam invadir universos que a maioria julga completos, mas que estão precisando, o tempo todo, ser decifrados, imaginados, provocados, corrigidos.”

Imagem: Reprodução / "Às Vezes

Clique para ampliar. (Imagem: Reprodução / “Às vezes, criança” / ©)

Da mesma forma, Sérgio explica a preferência que tem pelas imagens em preto-e-branco. Segundo entende, a ausência de cores permite mais plasticidade e dramaticidade para os retratos na publicação. Em vez de utilizar a fotografia como forma pura e simples de representação da realidade, deixa “sugerido” ao leitor a percepção daquilo que está acontecendo, procura usar as imagens “como um meio de transformação social”. “O preto-e-branco sugere mais. Quando foge da imagem-realidade, o preto e branco não só mostra como também sugere mais”, diz. No fundo, as imagens também aparecem como um tipo de poesia.

“E a poesia”, explica Rubervam, “é testemunha ímpar de conquistas universais, das histórias de amor e morte dos indivíduos”. Testemunha que, como a música de Elis Regina, permanece por gerações, para que o que passa agora não caia no esquecimento jamais.

asvzscriancasc3Sérgio Carvalho nasceu em Simplício Mendes, no Piauí. Na ocasião de uma das visitas que fez a sua cidade-natal, deparou-se com a situação retratada acima. Ele conta que lá, devido à falta de oportunidades de estudo e inserção social às crianças, o trabalho de carrasco nos matadouros da região aparece como perspectiva a muitas meninas e meninos, inclusive com a conivência do poder público. “Foi na cidade onde eu nasci. Era um ambiente de trabalho muito penoso, em um matadouro público, gerenciado pela própria prefeitura, crianças trabalhando com animais”, descreve. Na imagem, o garoto puxa as correntes onde ficam pendurados os cadáveres de animais mortos.


Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Consumismo, o ‘aliciador’ de trabalho infantil nas cidades http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/consumismo-o-aliciador-de-trabalho-infantil-nas-cidades/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/consumismo-o-aliciador-de-trabalho-infantil-nas-cidades/#comments Thu, 07 Mar 2013 16:44:30 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=948 Por vontade própria e com o apoio dos pais, crianças e adolescentes realizam trabalhos degradantes para poder comprar bens como celulares e videogames

Por Sabrina Duran, da Repórter Brasil

A necessidade de um prato de comida já não é o único motivo a forçar crianças e adolescentes ao trabalho precoce e degradante. Na sociedade do consumo exacerbado e da publicidade ostensiva, outros itens pesam nas suas listas de urgências: celulares, tênis de marca e videogames são alguns deles. A pressão social para a aquisição desses produtos é tão grande que estes deixam de ser somente o bem conquistado e tornam-se os próprios “aliciadores”.

“Eles veem os colegas com celular e procuram trabalho. Muitos jovens são autônomos: compram computador, fazem cópias piratas de CDs e vão vender na rua para ganhar R$ 300, R$ 400 por mês. Hoje não são somente os pais que colocam os filhos para trabalhar. O consumismo atrai muita criança e adolescente”, afirma Luiz Henrique Ramos Lopes, chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). De acordo com ele, desde a divulgação do Censo de 2010 é possível perceber que o trabalho infantil no Brasil não está mais tão ligado à pobreza ou miséria extrema.

Adolescente trabalha em uma borracharia  Foto: SRTE/PE

Fotos:  Divulgação/SRTE-PE

No âmbito urbano, onde a pressão do consumo é generalizada, os adolescentes são as “presas” mais fáceis para os empregadores. Além de estarem mais expostos do que as crianças ao apelo das propagandas, são os que mais trabalham nas cidades. “Os dados da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] mostram que na faixa etária de 5 a 9 anos o trabalho é muito mais rural do que urbano. De 10 a 14, o urbano começa a se sobrepor. De 15 a 17 anos o trabalho infantil é proeminentemente urbano”, informa Lopes.

Entre as atividades em que a exploração da mão de obra de crianças e adolescentes é mais comum, segundo a fiscalização do MTE, estão feiras livres, comércios ambulantes, borracharias, lava-jatos e oficinas mecânicas. Todas essas atividades estão na lista de Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), aprovada como decreto federal em 2008 (veja a primeira parte da reportagem sobre a Lista TIP aqui).

A cidade e seus riscos
Paula Moreira Neves, auditora fiscal do MTE e coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Infantil em Pernambuco, confirma que o consumismo, hoje, é um dos grandes desafios aos que combatem o trabalho infantil, especialmente nas cidades. “Existem crianças e adolescentes que são obrigados a trabalhar pela família ou são cooptados por terceiros nas ruas, mas muitos trabalham porque querem comprar bens que os pais não têm condições de lhes dar. Já que a maioria desses pais começou a trabalhar na infância, eles permitem e até estimulam que seus filhos façam o mesmo”, diz a auditora.

OLYMPUS DIGITAL CAMERASão muitos e graves os riscos para as crianças que desempenham atividades contidas na Lista TIP. No trabalho como vendedoras ambulantes nas ruas e outros logradouros públicos, por exemplo, elas estão sujeitas a violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; e a exposição à radiação solar, chuva, frio, acidentes de trânsito e atropelamento. Nas borracharias, são submetidas a esforços físicos intensos e expostas a produtos químicos, antioxidantes, plastificantes e calor. Na lida dos lava-jatos, crianças e adolescentes estão em constante contato com solventes, neurotóxicos, névoas ácidas e alcalinas. Já os que trabalham como carregadores em feiras livres estão sujeitos a padecer de bursites, tendinites, sinovites, escolioses, lordoses e outras doenças músculo-esqueléticas decorrentes do intenso esforço físico. “Esses pais [que estimulam os filhos a trabalhar] desconhecem os graves prejuízos que o trabalho precoce ocasiona aos seus filhos, como a dificuldade de aprender, a defasagem e a evasão escolar, os danos físicos ao corpo ainda em desenvolvimento e os danos psicológicos”, alerta Paula.

Dificuldades de fiscalização
Em 2012, segundo a auditora, foram fiscalizadas feiras livres em 65 municípios de Pernambuco, além das praias de Boa Viagem, no Recife, e Piedade, em Jaboatão dos Guararapes. Nos casos em que os empregadores foram identificados, todos foram notificados e autuados. No entanto, informa Paula, a maioria das crianças e adolescentes encontrados naqueles locais trabalhava com os pais ou, embora prestasse serviço a um terceiro, estava desacompanhada do empregador e não sabia informar seu endereço.

Não conseguir identificar quem explora a mão de obra infantil nas ruas e outros locais públicos é uma das grandes dificuldades dos fiscais do MTE. Nas feiras livres de municípios do Rio Grande do Norte, a auditora fiscal e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil do estado, Marinalva Cardoso Dantas, relata a mesma dificuldade de Paula. “Às vezes temos de inventar, dizer que não somos do Ministério do Trabalho para poder conversar com as crianças, senão elas correm, mentem para não dizer o nome dos pais.”

trabalhoinfantilPara Paula Neves, a utilização de praias e outros logradouros públicos para o comércio deve ser regulamentada e fiscalizada pelo poder público municipal a fim de prevenir e coibir o uso da mão de obra infantil. “Condicionando, por exemplo, a autorização do uso do espaço público pelos barraqueiros e ambulantes à não utilização de mão de obra infantil”, sugere a auditora. Outras medidas importantes são a busca dessas crianças em situação de trabalho e sua inclusão em programas sociais e a realização de campanhas junto ao público em geral, especialmente com usuários de praias e feiras livres. “Que a sociedade pare de adquirir produtos e serviços das mãos de crianças e adolescentes que trabalham sob sol escaldante, descalços, expostos a riscos e diversos problemas de saúde decorrentes do trabalho precoce”, finaliza.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

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As piores formas de trabalho infantil http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/as-piores-formas-de-trabalho-infantil/ http://meiainfancia.reporterbrasil.org.br/as-piores-formas-de-trabalho-infantil/#comments Thu, 21 Feb 2013 18:47:51 +0000 http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/?p=889 Lista com as atividades profissionais mais degradantes para crianças e adolescentes ainda é ignorada em diversas regiões

Por Sabrina Duran, da Repórter Brasil

Em 2008, um decreto assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva permitiu que o combate ao trabalho infantil no país se tornasse mais abrangente, ampliando as possibilidades de punição contra indivíduos e empresas que o utilizam e, principalmente, protegendo muito mais crianças e adolescentes que todos os dias são submetidos a atividades degradantes no campo e na cidade.

O decreto de número 6.481, assinado em 12 de junho daquele ano, aprovou, em nível federal, a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), que teve suas bases lançadas em 1999 pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Constam da relação 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham. Há ainda outros quatro itens convencionados anteriormente pela OIT e que se referem à exploração sexual, trabalho escravo, trabalhos moralmente degradantes e uso da mão de obra infantil em atividades ilícitas, como o tráfico de entorpecentes. A Lista TIP foi elaborada durante quase três anos por membros da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Fotos: Divulgação/SRTE-MT

Fotos: Divulgação/SRTE-RN

“Antes do decreto, essa lista era aprovada em forma de portaria pelo MTE. Mas nós queríamos que tivesse uma abrangência maior, porque talvez uma atividade de subsistência e o ato de pedir esmola na rua ou fazer malabares não fossem considerados empregos e, por isso, não seria competência do MTE [fiscalizar]. Como foi um documento preparado por vários ministérios juntamente com a Conaeti, centrais sindicais e confederações patronais, optou-se por fazer um decreto, um documento mais forte que o governo inteiro tem de aceitar”, explica o chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do MTE, Luiz Henrique Lopes.

Para ele, além de dar mais peso e abrangência ao combate do trabalho infantil, a Lista TIP desmistifica sensos comuns que, de alguma forma, perpetuam a cultura da exploração de crianças e adolescentes. “Buscamos estudos que comprovassem a periculosidade das atividades, justamente para desmistificar pensamentos como ‘trabalha na carvoaria, então é perigoso; trabalha no âmbito urbano, então não é perigoso’. Não há ‘achismo’ na lista. Colocamos estudos científicos que embasam nossas escolhas.”

Entre 8 e 10 de outubro o Brasil sediará, em Brasília (DF), a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Embora seja um evento mundial, o país tem participação especial porque, segundo Lopes, é referência no combate a esse tipo de exploração. “Não fazemos distinção entre trabalho rural ou urbano, nem de idade ou de gênero. Temos o compromisso de até 2016 acabar com as piores formas de trabalho infantil”, afirma.

Desafios no campo
Embora a criação da Lista TIP e o trabalho de fiscalização tenham ajudado a reduzir o uso de mão de obra infantil, ainda há sérias dificuldades que impedem a erradicação das piores formas de trabalho. E é no âmbito rural que essas dificuldades são mais evidentes. Faltam fiscais e suporte das autoridades locais; sobram ameaças de empregadores e até de figuras políticas a auditores do MTE. No campo, as distâncias a serem percorridas são longas, de difícil acesso e, muitas vezes, o medo da população de oferecer informações dificulta as ações de inteligência do MTE na busca de focos de exploração.

Outro grande entrave é de ordem cultural. Não apenas empregadores, mas os próprios familiares de crianças e adolescentes acreditam estar fazendo um bem ao colocá-las para trabalhar. “O que mais ouvimos é que se a criança não trabalhar vai cair nas drogas. Ou seja: as únicas opções para as crianças são o trabalho ou as drogas. Para mim, essa é uma crença perversa”, diz Roberto Padilha, coordenador do Projeto de Fiscalização do Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Sul (SRTE/RS).

Quando a família é o empregador
Segundo Padilha, um dos principais focos de combate ao trabalho infantil no estado, hoje, está no cultivo de fumo, que consta da Lista TIP. Esforço físico e posturas viciosas; exposição a poeiras orgânicas e seus contaminantes, como fungos e agrotóxicos; acidentes com animais peçonhentos; e exposição, sem proteção adequada, à radiação solar, calor, umidade, chuva, frio e acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes aparecem na lista como prováveis riscos ocupacionais à criança ou adolescente que trabalha na lavoura de fumo. Bursites, tendinites, urticárias, doenças respiratórias, mutilação e câncer são apenas algumas das consequências para a saúde. Um agravante contra o bem-estar das crianças nesse ambiente é a liberação de substâncias tóxicas pela própria planta do fumo.

menina

O cultivo costuma ser feito em pequenas propriedades familiares onde trabalham pais e filhos. “Ainda existe muita resistência a entender as consequências do trabalho infantil”, descreve Roberto Padilha. Na fiscalização dessas lavouras, o trabalho dos auditores do MTE é distinto do realizado em propriedades de empresas. Não há autuação dos empregadores ou afastamento das crianças do trabalho, mas sim orientação e um esforço, por meio da informação e do diálogo, de substituir o trabalho pela educação. “A instrução normativa 77, que regulamenta nossa atuação nas lavouras de economia familiar, diz que nosso trabalho é de orientação às famílias e de articulação com outros órgãos parceiros, como assistência social, Conselho Tutelar, Ministério Público do Trabalho e órgãos de educação”, explica Padilha.

O objetivo dessa parceria é promover atividades de capacitação profissional das famílias e atividades alternativas ao trabalho das crianças no campo, alertar nas escolas sobre o risco do trabalho infantil e estimular a cadeia produtiva a adquirir apenas produtos que não utilizem mão de obra de crianças. “O trabalho infantil não é elemento de desenvolvimento econômico ou social. Ele abala o desenvolvimento físico e provoca evasão escolar. O Brasil carece de mão de obra qualificada para ocupar cargos mais bem remunerados. Nesse sentido, o trabalho infantil é também um elemento de degradação econômica”, completa o coordenador do Projeto de Fiscalização do Trabalho Infantil da SRTE/RS.

“Constituição é bobagem”
Jovens de 13, 14 anos, sentados no chão úmido e sujo, respirando o ar poeirento, manuseando facões e outros instrumentos cortantes. Durante uma manhã inteira eles não se levantam, não bebem água e não vão ao banheiro, para não perderem tempo. Ao fim da jornada, cada um tem como saldo da lida meia tonelada de mandioca descascada sobre as pernas e os problemas crônicos na coluna e nos rins que o trabalho na casa de farinha lhes dá como “paga”, além dos R$ 20 semanais, em média.

Marinalva Cardoso Dantas, auditora fiscal do trabalho e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil do Rio Grande do Norte, é quem descreve a situação de trabalho dos adolescentes nas casas de farinha – atividade que consta na Lista TIP – espalhadas pelas áreas rurais do estado.

Assim como no caso das lavouras de fumo familiares no Rio Grande do Sul, a questão cultural é um dos grandes entraves para a fiscalização do MTE no Nordeste brasileiro. “A cultura local diz que criança deve sempre trabalhar para não virar marginal. A população pensa assim, os vereadores pensam assim, pessoas da prefeitura, comerciantes, até o padre acha normal criança trabalhar”, diz Marinalva.

Na defesa das próprias convicções culturais – e dos benefícios financeiros do uso da mão de obra infantil, que não custa quase nada a quem a explora –, os empregadores e os que concordam com suas ideias chegam a protagonizar situações absurdas, como o episódio vivido há três anos por Marinalva e outras três auditoras em Boa Saúde, cidade com menos de 10 mil habitantes no agreste potiguar.

Após tomarem conhecimento da morte, por choque elétrico, de uma criança numa casa de farinha, elas iniciaram um trabalho de conscientização na cidade e convocaram uma audiência pública na Câmara Municipal local. “Só saímos de lá depois de meia-noite porque fomos obrigadas a ficar ouvindo todos os desaforos dos vereadores, que diziam que a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente são besteira, que não queriam ninguém de fora dizendo como eles deveriam cuidar dos meninos da cidade. A plateia aplaudia tudo o que diziam. Para eles, é normal uma criança morrer de choque elétrico numa casa de farinha. E aquele não tinha sido o primeiro caso.”

Naquela ocasião, as auditoras afastaram onze crianças do trabalho. Mas poderiam ter afastado mais. “Como as casas de farinha são próximas, quando a gente chega na primeira, as pessoas já vão de moto e bicicleta avisar nas outras, e depois não encontramos mais ninguém”, conta a auditora. Depois daquele incidente na Câmara Municipal de Boa Saúde, Marinalva nunca mais voltou à cidade. “Só volto com acompanhamento da polícia e alguém do Ministério Público”, diz.

Matadouros no RN
Com tradição no comércio de carne de sol, o Rio Grande do Norte é pródigo em abatedouros. O trabalho nesse ramo está diretamente relacionado à pecuária, pode ser encontrado no campo ou na cidade e, no que diz respeito ao uso de mão de obra infantil, consta da lista das piores formas de trabalho.

No estado, a erradicação do trabalho de crianças e adolescentes no abate do gado é um grande desafio para o MTE também por causa do traço cultural e familiar da atividade. “Em geral, são filhos de vaqueiros e peões levados pelos próprios pais a trabalhar ali. O trabalho vai passando de pai para filho.” Em seu relato cru, Marinalva diz que já encontrou adolescentes matando boi a marretadas, tirando a pele, fazendo sangria, limpando as vísceras e as fezes. “Já entrevistei um menino que disse que bebia com cachaça o sangue do boi que jorrava do pescoço. Outro disse que treinou matar boi matando gato na rua a pauladas, como vê o pai fazer com o boi. Esses meninos veem gente matando gado, gado matando gente, gente matando gente. A violência, a morte e a vida para eles são algo muito banal”, afirma.

Segundo a auditora, entre os mais de 160 municípios do Rio Grande do Norte, pelo menos cem abrigam locais de abate, muitos pertencentes às prefeituras. Nas cidades de João Câmara, Nova Cruz, Caicó, Acari e Bom Jesus, por exemplo, a fiscalização flagrou trabalho infantil em matadouros públicos. “Há matadouros onde o gado do próprio prefeito é abatido por crianças”, revela Marinalva.

Outro problema para o combate a esse tipo de atividade é o fato de as crianças serem recrutadas por via indireta e, formalmente, não serem empregadas da prefeitura, o que impede os fiscais de autuarem a administração municipal. Uma solução legal, porém, foi encontrada recentemente. “Descobrimos que podíamos fazer um auto de infração onde não é mencionada a palavra ‘empregado’, e sim ‘manter em serviço pessoas com menos de 16 anos’. Com isso, começamos a autuar prefeituras no caso das feiras livres. Isso foi considerado um avanço. Agora, vamos usar esse instrumento nos matadouros porque a situação é a mesma”, explica a auditora.

Ela adianta que o estado prepara uma fiscalização para flagrar trabalho infantil em matadouros clandestinos, cujas condições de insalubridade e exploração são iguais ou piores do que nos matadouros legalizados. Currais Novos, polo de carne de sol do Rio Grande do Norte, será um dos alvos da fiscalização. “Sabemos que estão abatendo animais em sítios. A matança é tão grande que os bois da região não dão conta, e eles trazem gado do Tocantins”. A ação dos auditores nos matadouros clandestinos terá apoio da Polícia Rodoviária Federal e contará com a presença de juízes que solicitaram acompanhar algumas fiscalizações como observadores. “Eles querem sentir a realidade da exploração das crianças. Quando o caso chegar à sala deles, saberão julgar com mais precisão”, informa Marinalva.

Na segunda parte desta reportagem você conhecerá detalhes sobre o combate às piores formas de trabalho infantil no âmbito urbano.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

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