Especialista alerta para o risco à saúde dos trabalhadores de matadouros que funcionam em condições inadequadas e diz que situação é especialmente delicada para crianças
Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*
Atenção: texto e imagens fortes a seguir
Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – Isabel Cristina Lopes Dias é bióloga e veterinária, e estuda as condições de saúde e trabalho em abatedouros nordestinos. Ela é especialista em Saúde, Meio Ambiente e Segurança e em Engenharia Ambiental, além de mestre em Saúde e Ambiente. Em artigos científicos e estudos específicos, Isabel alerta para a frequente ocorrência de zoonoses envolvendo matadouros, e cobra políticas públicas e ações para minimizar o problema. Procurada pela reportagem, a especialista comentou a situação flagrada em Lagoa de Pedras, no Rio Grande do Norte, destacando a gravidade de crianças estarem submetidas às condições encontradas, e detalhou os riscos e doenças a que estão sujeitos todos os envolvidos.
O fato de crianças estarem envolvidas na prática é um agravante? Em termos de sistema imunológico, elas estão mais sujeitas a infecções?
O envolvimento de crianças precocemente no mundo do trabalho (mesmo que não tenha tantos perigos associados) é por si só um grave problema social. No caso específico de abatedouros, onde o trabalho é considerado insalubre, exaustivo e com vários perigos associados, a situação torna-se mais delicada ainda. Dependendo da faixa etária da criança envolvida, os riscos podem ser maiores ou menores, mas, de modo geral, nesse ambiente de trabalho as crianças estão mais vulneráveis tanto às doenças quanto aos acidentes, pois precisam realizar tarefas e manusear instrumentos desconexos de sua capacidade física e psicológica, justamente em uma fase em que são mais imaturas e ingênuas. A curiosidade natural das crianças também pode levá-las a se envolverem mais facilmente em acidentes ou a contraírem doenças. Quanto ao sistema imunológico, as crianças são mais suscetíveis, tanto às doenças mais comuns como gripes e resfriados quanto às doenças infecciosas, pois é nessa fase que a imunidade está sendo construída. Por isso, para fortalecer o desenvolvimento de suas defesas naturais, as crianças devem realizar, durante esse período, hábitos considerados saudáveis, como dormir e se alimentar bem, estudar e brincar, conviver em ambientes tranquilos e livres de agentes estressores, o contrário do que é verificado em abatedouros. Além dessas implicações mais imediatas (impacto no desenvolvimento do sistema imune) o estresse, o barulho e a repetição, típicos do trabalho em abatedouros, podem também ter consequências graves no desenvolvimento geral da criança, principalmente o psíquico.
As pessoas trabalhavam descalças e/ou com chinelos abertos. Trabalhadores caminhavam sobre sangue, fluidos internos e até sobre o conteúdo do intestino dos animais recém-abatidos. Quais problemas de saúde podem acontecer em função dessa prática?
Os principais problemas de saúde dizem respeito às zoonoses, que são doenças transmitidas entre os animais e o homem. Um agente zoonótico pode ser uma bactéria, um vírus, um fungo ou outro agente de doença transmissível, existindo mais de 200 tipos de zoonoses transmissíveis ao homem, segundo dados atuais da Organização Mundial de Saúde. Em abatedouros clandestinos é comum que os animais sejam abatidos sem passar por nenhum tipo de inspeção “ante-mortem”, permitindo que animais doentes sejam encaminhados para o abate com o risco de contaminar os trabalhadores e toda produção com doenças contagiosas, causando danos à saúde e à economia. A desproteção desses trabalhadores e o contato direto e/ou indireto com animais e/ou suas secreções são situações críticas de exposição e transmissão de microrganismos zoonóticos.
Todos, adultos e crianças, manuseavam instrumentos altamente cortantes (machadinhas, facas e cutelos) sem nenhuma proteção para evitar cortes e afins. Muitos relatam acidentes constantes e têm marcas de cortes abertos. Que doenças podem ser transmitidas em função desse comportamento?
Em virtude da exposição a diversos perigos, a atuação na indústria de carnes é considerada internacionalmente como trabalho perigoso. Inúmeros trabalhadores no mundo inteiro se ferem e vários morrem todos os anos devido a acidentes nos locais de trabalho. Problemas ocupacionais importantes estão relacionados a lesões de membros superiores, casos em que a manipulação de material perfuro-cortante (utilizado na maioria das etapas de abate) é o agente de risco de acidente de maior relevância, sendo a faca e afins instrumentos responsáveis por parcela significativa dos acidentes de trabalho registrados nesta ocupação. Como medida preventiva, deveria ser adotado o uso do equipamento de proteção individual – EPI, pois, conforme dispõe a Norma Regulamentadora – 6, do Ministério do Trabalho e Emprego, a empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, EPI adequado ao risco, em perfeito estado de conservação e funcionamento. Apesar da obrigatoriedade, essa situação não se verifica nos locais de abate.
Trabalhadores com lesões e feridas nas mãos devem ser afastados da função e evitar o contato direto com a carne, uma vez que isso pode facilitar tanto a contaminação da carne que está sendo manipulada como a infecção do trabalhador, pela entrada de micro-organismos zoonóticos através das lesões. Alguns problemas relacionados com agentes biológicos zoonóticos podem ser lesões de pele, pelo antraz e vaccinia; febres, ocasionadas por brucelose e Chlamydia spp. no abate de frangos; ocorrência de doenças entéricas como a salmonelose – que além do risco de infecção aguda, também pode causar artrite reativa pós-infecção –, campilobacteriose e yersinose; toxoplasmose ocasionada pelo contato direto com Toxoplasma gondii; tuberculose ocasionada pelo Mycobacterium bovis por inalação de aerossóis ou acometimento cutâneo – contato direto com carcaças contaminadas; surtos de leptospirose e vírus Nipah (essas doenças podem afetar trabalhadores que entram em contato com grandes volumes de urina durante o trabalho nas indústrias de carne).
As diferentes partes dos bois recém-abatidos ficam espalhadas pelo matadouro, que é aberto e sem nenhuma proteção. As fezes armazenadas no intestino são derramadas a não mais do que um metro da carne que será cortada e distribuída para consumo. Qual o risco de contaminação?
A legislação que regulamenta o funcionamento desses estabelecimentos, quer seja a nível federal, estadual ou municipal, requer infraestrutura e procedimentos higiênico-sanitários mínimos. Como exemplos de padrão mínimo exigido para funcionamento, primeiramente, o estabelecimento deve ser afastado dos limites das vias públicas; as vias e pátios internos devem ser pavimentados; pisos e paredes convenientemente impermeabilizados com material adequado, construídos de modo a facilitar a coleta e afastamento das águas residuárias; mesas de aço inoxidável; rede de abastecimento de água e, quando necessário, tratamento de água; câmaras frias segundo a capacidade do estabelecimento, para armazenamento adequado da carne; carros de transporte da carne com sistema de refrigeração, dentre outros. Quando essas medidas mínimas não são respeitadas, o risco de contaminação da carne que está sendo manipulada é elevado, revestindo-se de importância em saúde pública, com perigos para a população consumidora em geral.
Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouros
* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
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