Crianças de 12 anos trabalham com facas afiadas no corte de bois no interior do Rio Grande do Norte. Banalização da violência afeta desenvolvimento, alertam especialistas
Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*
Atenção: texto e imagens fortes a seguir
Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – O boi branco está amarrado pela perna esquerda, com uma corda atada a uma cerca de madeira. São doze homens dentro do matadouro municipal de Lagoa de Pedras, município do interior do Rio Grande do Norte com população estimada em 7.372 pessoas e rebanho de 5.100 bovinos. Duas crianças esperam, trepadas na cerca. O boi hesita. Um dos homens levanta uma marreta e, sem pestanejar, desce ela com toda força na direção da testa do animal.
Uma fração de segundo, o boi desvia a cabeça, a pancada passa a milímetros do seu olho direito. O lugar cheira a sangue e merda. Um dos meninos sorri. Os homens gritam, o boi gira, desesperado, preso à corda. A segunda marretada é precisa. O boi branco cai, tendo espasmos, tentando coices inúteis, morre devagar. O corpo é arrastado para fora, outro boi é trazido para dentro do galpão aberto, sem paredes, sem nenhuma estrutura. Homens jogam água no chão de cimento onde ficou sangue, há mofo na mureta que limita o espaço, o ferro que segura as telhas está todo enferrujado.
Do lado de fora, onde há mais espaço para trabalhar, outros dois meninos de 12 anos com facas pontiagudas e afiadas estão debruçados sobre outro boi recém-morto. Praticamente um em cada três habitantes de Lagoa de Pedras tem menos de 15 anos. Em 2010, a mortalidade infantil do município era de 29,6 para cada mil nascidos vivos, média bem acima da nacional (19,7) e da estadual (16,7). A atividade em matadouros está entre as Piores Formas de Trabalho Infantil estabelecidas pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Assim como os adultos, as duas crianças trabalham de chinelos, ficando descalças em diversos momentos para andar sobre a carne, com o cuidado de se equilibrar para não fazer os órgãos internos romperem.
Apenas um dos trabalhadores usa botas de plástico. Não há nenhum outro equipamento de proteção. Os meninos hesitam ao verem a chegada da equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, para ao lado dos dois. Ao seu lado, a auditora fiscal Virna Soraya Damasceno olha com dificuldade para a cena crua, vermelha. A carne, mesmo com o animal morto, ainda se mexe. São breves espasmos dos músculos, agora já descobertos, sem pele. O pai de uma das crianças, depois de cumprimentar a todos educadamente, dá um grito para um dos meninos. “Vai ficar aí parado? Não tem de ter vergonha, você está trabalhando, não na rua roubando!”.
O mais magricelo volta a se debruçar e trabalhar, e fica praticamente dentro da barriga do boi. O outro ainda titubeia por alguns momentos, antes de abaixar e ajudar o colega. Nenhum dos outros garotos que estavam esperando o outro boi ser morto se aproxima enquanto a fiscalização está presente.
Responsabilidade
A auditora Marinalva Dantas registra a situação com uma câmara fotográfica, identifica as crianças e conversa com elas. As informações servirão de base para um relatório a ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade e para a cobrança de providências da Prefeitura em relação às condições de trabalho no matadouro municipal. A estratégia de autuar e responsabilizar o poder público é a mesma utilizada em ações em outros matadouros públicos e em feiras livres em outras das cidades da caatinga onde o emprego de crianças em tarefas pesadas insalubres é cotidiano, comum.
Em um contexto grave de pobreza e miséria, responsabilizar as famílias pura e simplesmente não basta, explica a auditora. Adultos e crianças trabalham nos abatedouros por comida. Os meninos costumam receber, em troca da limpeza do “fato” do boi, como são chamadas as entranhas do animal, miúdos e tripas de menor valor.
Também é difícil responsabilizar quem se beneficia economicamente do sistema estabelecido. Em Lagoa de Pedras, os bois costumam ser levados ao abatedouro por pequenos produtores locais e são abatidos no domingo, na véspera da feira livre local, onde a carne é vendida, muitas vezes, também por meninos. A cidade é uma das mais carentes do país. Com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0.553 (em um critério que vai de 0 a 1), Lagoa de Pedras ocupava em 2010 a 5.150ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros.
Leia também: Orçamento de meio milhão para novo abatedouro está parado
Banalização
O trabalho infantil é tido como algo normal na região. Fiscalizar a prática não é tarefa fácil e há até quem hostilize os auditores. É fácil ouvir os adultos defenderem, mesmo dentro dos matadouros, que criança tem de trabalhar “para não virar vagabundo”, “para não se envolver com droga” e “para aprender uma profissão”, só para citar alguns dos argumentos repetidos a esmo.
A psicóloga infantil Christiane Sanches, do Centro de Referência às Vítimas da Violência, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, alerta, no entanto, que crianças vítimas de trabalho infantil estão mais sujeitas a problemas, em especial as que se deparam com realidades cruas como a do abate de animais. “Quando a criança se depara diretamente com uma situação de extrema violência, ela rompe uma fase de desenvolvimento. A fantasia é importante, é uma forma de a criança se relacionar com a realidade”, explica, ressaltando que brincar e imaginar são atividades fundamentais para a formação de adultos responsáveis, capazes de manter boas relações sociais, relações afetivas e independência.
Nos abatedouros, a banalização da morte é marcada por episódios de crueldade e o trabalho envolve ações violentas. Entre as atividades que os garotos cumprem estão arrancar toda a pele do animal recém-morto puxando aos poucos e separando o couro com breves golpes e cortar a cabeça e as patas. A noção do que é vida e morte se dilui na mesma medida que o sangue se espalha pelas mãos, pés e pernas desnudas de moleques magrelos. A auditora fiscal Marinalva Dantas conta que em uma das ações flagrou crianças “brincando” de espetar um boi ainda vivo com lâminas.
Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento, a psicóloga Christiane Sanches explica que a frieza e falta de sensibilidade podem ser mecanismos de defesa de crianças que tiveram contato com eventos de extrema agressividade. “A família tem de ter a preocupação em relação a uma profissão, mas dentro de uma faixa de desenvolvimento adequada. É preciso respeitar etapas. O trabalho infantil é uma ruptura do que se espera de determinadas fases. Quanto menor a faixa etária, mais grave a situação”, alerta, destacando que o fato de a atividade ser considerada normal pela comunidade agrava a situação. “Ao fazer o corte, a criança está seguindo o modelo da família, está exercendo um papel dentro da sociedade. Se não aceitar, está excluída, o que provoca desamparo emocional. Não trabalhar vira uma vergonha”, diz.
Estômago aberto, sangue e fezes
Em um canto do abatedouro, um dos cachorros que ronda o local aproxima-se de um pedaço de carne crua sangrando. Com uma machadinha na mão, um dos adultos que trabalha quebrando os ossos da base do peito de um boi morto para ao perceber o avanço, gira o instrumento e dá um golpe com o cabo. O animal dá um ganido, late e se afasta rápido, a tempo de evitar a pancada. A dois passos, outro trabalhador carrega o intestino de um boi.
Ele faz furos com o facão para o ar sair e a pele não romper ao ser erguida, leva com cuidado o órgão até o fundo do terreno e, com um golpe seco, abre o intestino. A merda escorre em um canal aberto junto com sangue e outros dejetos. Um tanto se espalha no chão, o homem caminha descalço sobre a sujeira. O cheiro é insuportável. A menos de dois passos, os garotos trabalham no boi, terminando de separar os pedaços de carne. “A gente se corta às vezes. Eu já fiquei com o pé todo em carne viva”, conta um dos trabalhadores adultos, puxando e ajeitando um pedaço de carne com a faca. “Trabalho com isso desde que eu tinha 9 anos. Aqui todo mundo é assim. E trabalho para viver. Melhor do que roubar, né?”, conta.
Por si só, as condições de trabalho em abatedouros e empresas de processamento de carne já são consideradas problemáticas. Em 2011, de acordo com dados do Ministério da Previdência Social (MPAS), ocorreram 19.453 acidentes de trabalho e 32 mortes envolvendo o setor. Os problemas levaram o Ministério do Trabalho e Emprego a estabelecer em abril de 2013 a Norma Regulamentadora nº 36, que, entre outras medidas, determina adequação e organização de postos de trabalho.
Em Lagoa de Pedra, crianças e adultos que trabalham no matadouro ostentam cortes abertos, marcas de acidentes leves ou profundos. “Trabalhadores com lesões e feridas nas mãos devem ser afastados da função e evitar o contato direto com a carne, uma vez que isso pode facilitar tanto a contaminação da carne que está sendo manipulada como a infecção do trabalhador”, explica a bióloga e veterinária Isabel Cristina Lopes Dias, mestre em Saúde e Ambiente.
“A desproteção desses trabalhadores e o contato direto e/ou indireto com animais e/ou suas secreções são situações críticas de exposição e transmissão de microrganismos zoonóticos. As crianças estão mais vulneráveis tanto às doenças quanto aos acidentes, pois precisam realizar tarefas e manusear instrumentos desconexos de sua capacidade física e psicológica, justamente em uma fase em que são mais imaturas e ingênuas.”
Leia também: Entrevista: “crianças são mais suscetíveis à infecções”
* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
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27 thoughts on “Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro”
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O Povão Brasileiro conhece o ditado Popular:
O trabalho diginfica o homem e o trabalhador, tenho 60 anos e desde 8 anos de idade, sempre ajudei minha mãe a matar porcos para nosso Açougue, meu ficava viajando fazendo compras, neste tempo eu estudava, trabalhava e jogava futebol.
José, com todo o respeito:
O trabalho dignifica O HOMEM.
O trabalho INFANTIL perpetua a MISÉRIA.
Rony, disse tudo. ajudar os pais em trabalhos leves em casa, que não prejudicam a vida psíquica e social é uma coisa, trabalho escravo é outra. E só de ver que estas crianças não recebem nada. Realmente são escravas.
Que idotice! No interior é costume fazer isso. O momento de abater um boi é considerado diversão. Todos se reúnem para ajudar, inclusive as crianças e depois fazem assado dos miúdos e todos comem ou ganham partes para levar pra casa. Já vivi e trabalhei no interior, participei de vários momentos assim. Não tem nada a ver com trabalho escravo. Discordo dessa patrulha do politicamente correto, que quer impor às crianças e adolescentes uma vida fútil de desocupados. É bom ter uma ocupação desde cedo, trabalhar não mata ninguém.
Sabe o que eu acho ? Eu acho é pouco !! USHDUHSUHDSUHD
vc acha pouco????? é pq vc n está lá passando por isso
Diversão? isso é triste e cruel…diversão de gente idiota que acha bonito ver um animal morrer e ser despedaçado…pra mim são todos sádicos e miseráveis.
olha só o trabalho escravo no brasil, que vergonha pra esses brasileiros
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaawww yeeeaahh!!
Espero que a reportagem tenha aproveitado a situação para denunciar, também, as horrorosas condições de higiene deste matadouro público. Sei (?) que 30% da carne comercializada no País é de origem clandestina. Agora, imagino que este matadouro, por ser público, deva estar incluído no número dos outros 70% de onde se sabe de onde vem a carne vendida no Brasil. Olha, se meu raciocínio estiver correto, e este matadouro público estiver dentro dos outros 70%, então, esses números são uma imensa mentira. Só um Deus mesmo, pra proteger essa nação.
Alem da exploração das crianças existe a crueldade com os animais. não precisamos comer animais, seja vegano. Se trabalho glorifica o homem, prostituição, venda de drogas, alcool, cigarro, matar animais, pessoas … também exige trabalho.
Com tanta exploração infantil que infelizmente ainda acontece(e muito), ainda existem pessoas que ignoram, fazem piadinhas. Uma verdadeira falta de respeito ao ser humano. Mostram uma total frieza com o próximo.
O trabalho infantil é proibido, mas ainda faltam autoridades que realmente fiscalizem e tomem uma atitude cabível, a prisão para quem emprega, explora e maltrata uma criança. Infelizmente há crianças que trabalham para ajudar na despesa de casa. Se o ser humano soubesse do poder que ele tem, este país já teria mudado faz tempo. A única coisa que posso fazer, neste momento, é pedir à Deus que abra os olhos deste povo, que lhes dê sabedoria, conhecimento e atitude.
Fica aqui a minha indignação!
Parabéns ao repórter Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*, por ter tido a coragem de mostrar o que muitos ignoram. Nosso país precisa de mais pessoas como você!
eu tenho 45 anos comecei trabalhar com 09 anos sou um homem horado tenho 03 filhas aprendi a dar valor a tudo porque fui educado que o homem tem que viver com o suor do seu rosto trabalho nao prejudica desde que nao atrapalhe na escola
Puxa O Governo não alardeia tanto que esta acabando com a miséria neste pais
Realmente todo trabalho dignifica o homem, desde que não pulemos etapas. Crianças tem que estudar e brincar, ter responsabilidades sim, mas de acordo com sua idade e capacidade.O caráter do homem, vem muito do exemplos dos pais. Se como pais contribuirmos para formação desse caráter e ele tiver em sua personalidade, o bem, a responsabilidade, a honestidade, com certeza vai ser um adulto que fará uma sociedade mais harmoniosa sem tanta violência.
MUiito erradoo iisso’..
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ISSO E UM HORROR PARA O NOSSO PAIS
Que errado mano
isso é um horror! e eu ainda tenha que fazer um trabalho sobre o trabalho infantil.
o governo fala tanto sobre uma questao que eles mesmo sao culpados… se a criança esta trabalhando nao é por fatura dentro de sua casa e sim de uma ajuda que sua familia necessita …
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