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No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, relatórios destacam gravidade do problema. Segundo OIT, essa forma de exploração atinge 15,5 milhões de crianças e adolescentes
Por Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil
No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, celebrado nesta quarta-feira, 12 de junho, organizações da sociedade civil e autoridades se mobilizam para chamar a atenção para o trabalho infantil doméstico. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que publicou relatório destacando a gravidade da exploração de crianças e adolescentes em residências, o problema afeta aproximadamente 15,5 milhões em todo o mundo. São meninos e meninas sujeitos a violência, abusos sexuais e doenças físicas e mentais, e que têm dificuldades e/ou não conseguem acompanhar a escola. O trabalho infantil doméstico também foi tema de relatório publicado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), e de um dos capítulos do relatório “Brasil livre de trabalho infantil”, lançado recentemente pela Repórter Brasil.
Baixe os relatórios:
OIT – Erradicar o trabalho infantil no trabalho doméstico (em inglês, espanhol e francês)
FNPETI – O trabalho infantil doméstico no Brasil
Repórter Brasil – Brasil livre de trabalho infantil
Das 15,5 milhões de vítimas de trabalho infantil no planeta, 5 milhões de crianças e adolescentes são exploradas em países que não proíbem a prática e que, portanto, não ratificaram a Convenção 182 da OIT, que a proíbe de ser desempenhada por menores de 18 anos. Conforme a convenção, a atividade é considerada uma das piores formas de trabalho infantil. O relatório também lembra a Convenção 138, que define a idade mínima para admissão em 15 anos, independentemente da profissão. Apesar de ter sido ratificada por 161 países, quase metade (7,4 milhões) dos 15,5 milhões de trabalhadores domésticos com menos de 18 anos têm entre 5 e 14 anos.
A questão não pode ser entendida “puramente em termos de direitos da criança ou como um problema trabalhista”, lembra o relatório, citando que, de todos os 776 milhões de analfabetos no mundo, dois terços são mulheres. O dado reforça o argumento de que existe uma grande diferença entre as oportunidades de trabalho para mulheres e homens jovens. “A posição de subordinação e marginalização das garotas em muitas sociedades compõe os problemas que elas enfrentam no mercado de trabalho”, diz o estudo. Entre os que têm menos de 18 anos ocupados no trabalho doméstico, 73% são mulheres.
Debates e lançamento de campanha no BrasilUma série de debates, atos e ações foram marcados para a semana de 12 de junho, o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. A Fundação Telefônica Vivo, parceira da Repórter Brasil no especial Meia Infância, deu início a uma nova etapa da campanha “É da Nossa Conta!”, com eventos focados nas regiões Norte e Nordeste, regiões com os maiores índices de trabalho infantil. Leia na Rede Promenino. A OIT e o FNTEPI, em conjunto com outras entidades, iniciaram a campanha “Tem criança que nunca pode ser criança”, que pode ser conferida clicando aqui. Já o MPT lançou a campanha “Trabalho infantil não é legal”, com inserções nos meios de comunicação (veja vídeo abaixo). O órgão também preparou atividades no Amazonas, Maranhão, Paraná, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Ceará (clique para saber mais sobre os eventos e confira o vídeo abaixo). |
No Brasil
Apesar de ter ratificado as convenções 182 e 138 da OIT em 2000 e 2001, respectivamente, o país ainda tem 258 mil crianças e adolescentes ocupados em trabalho doméstico. Os dados são do IBGE e foram organizados no relatório do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).
De acordo com Rafael Dias Marques, coordenador nacional do programa de combate ao trabalho infantil do Ministério Público do Trabalho (MPT), a pobreza já não é mais a causa essencial no Brasil para a existência de trabalho infantil. Segundo ele, aproximadamente 40% das famílias que exploram esse tipo de mão de obra não está na faixa de extrema pobreza atualmente. “A pobreza está hoje aliada ao desejo de acesso das crianças e adolescentes ao bens de consumo, o que conduz também a uma entrada precoce ao mercado de trabalho”, diz. Ele também defende que o país faça fortes investimentos para atender às crianças e às famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. O coordenador ainda ressalta a importância de campanhas de conscientização como forma de romper com a aceitação social existente em relação ao trabalho infantil.
Os dados do relatório produzido pelo FNPETI mostram que a região que concentra o maior número de crianças e adolescentes em trabalhos domésticos é o Nordeste, com 39,8% do total. Quase todos os jovens são mulheres (93,7%), a grande maioria é de negros (67%) e está em meio urbano (79,3%). Veja mais no infográfico abaixo.
Trabalho perigoso
Quase metade das crianças vítimas de trabalho doméstico estão submetidas a condições que podem afetar sua saúde, segurança ou integridade moral, além de jornadas de trabalho de mais de 43 horas por semana. Outros perigos incluem trabalho noturno e exposição a abusos físicos ou sexuais, mas não existem dados confiáveis sobre isso, segundo o relatório, que também cita um estudo feito no Brasil revelando que as crianças envolvidas em trabalho doméstico têm muito mais chances de sofrer com dores osteomusculares do que as empregadas em outros setores.
A OIT conclui que “a pobreza está invariavelmente por trás da vulnerabilidade de uma criança ao trabalho doméstico” e o “trabalho infantil doméstico não é simplesmente uma preocupação das crianças, suas famílias e comunidades”. Por isso, deve ser combatido com políticas amplas de desenvolvimento e decisões sobre a alocação de recursos orçamentários. Além disso, a entidade aponta ser importante também a criação de leis que estendam aos trabalhadores domésticos os mesmos direitos de outras categorias porque “a proteção a trabalhadores domésticos jovens e o avanço para a eliminação do trabalho infantil doméstico estão interrelacionados e se reforçam mutuamente”.
Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
Auditores fiscais publicam livro com fotos e versos para tornar visível a realidade de meninas e meninos que, forçados a trabalhar, aos poucos perdem a infância
Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
“Menino que vai pra feira
Vender sua laranja até se acabar
Filho de mãe solteira
Cuja ignorância tem que sustentar
[…]
Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor!”(“O Menino das Laranjas” – Théo de Barros, música interpretada por Elis Regina)
Elis Regina eternizou o “menino das laranjas”, quando, com sua voz, trouxe à luz a história do garoto que todo dia acorda cedo para vender frutas e ajudar a mãe no sustento do lar. A música, composição de Theo de Barros, narra e repercute, já em 1965, um caso de exploração do trabalho infantil. Passados quase 50 anos, a canção ainda hoje toca nas rádios. Chama a atenção para um problema que, no dia a dia, persiste na cidade e no campo, mesmo despercebido, e sob outras formas: crianças que trabalham, em feiras, inclusive, por todo o Brasil.
Em certos contextos, a arte costuma ser o campo que expressa e reflete as contradições, valores e aspirações de uma sociedade, ao mesmo tempo em que também procura sensibilizar e dar dimensão a certos aspectos da conjuntura social. No caso do trabalho infantil, além de “O Menino das Laranjas”, na voz de Elis, o livro “Às vezes criança: um quase retrato de uma infância roubada”, de autoria dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) Rubervam Du Nascimento e Sérgio Carvalho, respectivamente com 35 anos e 18 anos de atividade profissional, aborda de modo muito parecido a exploração de crianças e adolescentes.
Através de poesias escritas por Rubervam e fotos capturadas por Sérgio, apresentam-se ao longo das páginas retratos da exploração de crianças e adolescentes que se veem compelidos a entrar mais cedo na vida adulta. Para ambos, a obra tenta retirar a invisibilidade e despertar a sensibilidade para o problema. “A ideia é exatamente mostrar que o trabalho infantil é bem visível para toda a sociedade, mas ao mesmo tempo não conseguimos percebê-lo. É uma realidade no dia a dia das pessoas, não só do auditor fiscal. Todo dia você vê crianças trabalhando. Isso virou normal para a sociedade”, afirma à Repórter Brasil o autor das fotografias na publicação.
A ideia é não só ajudar no despertar sobre a questão, mas também colocar o tema de uma forma que não pareça banal, exatamente o contrário de uma terapia de choque sobre a realidade em que não é possível vislumbrar qualquer saída para a situação presente. Abordar o trabalho infantil através da linguagem poética, portanto, é uma forma de reorganizar e transformar a percepção sobre o problema, de acordo com Rubervam. “Não há arma verbal mais poderosa para trabalhar com as subjetividades que nos envolvem no dia a dia do que a poesia”, defende. “É a poesia que, de todas as outras artes, se atreve a mexer com nosso sistema límbico, despertar os nossos sentimentos de dor e revolta adormecidos”.
“Dia a dia do cidadão”
“A grande maioria dessas fotos é feita no dia a dia do cidadão”, lembra Sérgio. Ele explica que as imagens ao longo do livro são na verdade frutos de suas viagens, passeios e andanças pelo país, e não registros da atividade que realiza como auditor fiscal do MTE, ao contrário do que pode parecer em uma primeira leitura. “A gente fez questão de não citar locais para não regionalizar, porque é um problema do país todo”. Essa iniciativa, acredita, vem justamente no sentido de problematizar o trabalho infantil como parte do universo dos brasileiros. “Se você legenda a imagem, parece que é um problema só daquele lugar que foi fotografado”, completa.
Os retratos da exploração de crianças e adolescentes acompanham, além disso, imagens de meninas e meninos em momentos de brincadeira, como um respiro entre tantas situações de abuso e falta de perspectiva. “No livro, o normal vira a exceção: a quantidade de imagens de crianças trabalhando é muito maior do que a de crianças brincando. Também a ideia é mostrar o que deveria ser sua realidade”, afirma o fotógrafo. Enquanto a maior parte das imagens as mostra em casas de farinha, pedreiras, lixões, estradas e matadouros, uma minoria registra o sorriso delas, sem terem de carregar antecipadamente as preocupações e os riscos da vida adulta.
Para entender a situação que afeta milhões de crianças e adolescentes pelo país – são pelo menos 3,4 milhões de vítimas do trabalho infantil, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Censo de 2010 – de um modo que vai além do possibilitado pelo ofício de fiscal trabalhista, os autores salientam a importância das trocas e conversas que têm com os meninos e meninas. “Procuro sempre fotografar como participante, um tipo de fotografia que chamamos de ‘dialógica’, ao contrário do que chamam de ‘ladrão de imagens’”, conta Sérgio. Das imagens no livro, ele destaca o caso de um menino, na sua cidade natal, que trabalhava em um matadouro (veja box abaixo). “Na verdade, a fotografia é um processo, é uma troca entre o fotógrafo e o fotografado, principalmente para ter esse tipo de imagem”, acrescenta.
“Sempre converso com as crianças e adolescentes que retiro do trabalho irregular. Não é certo acreditar que elas trabalham porque querem. Trabalham porque são obrigadas”, reforça Rubervam. O fiscal do MTE lembra que a exploração de crianças e adolescentes está ligada a outros fatores, como a desigualdade social, o descaso de certos governantes e o silêncio sobre o problema, parte do que classifica como “discurso da miséria cultural secular que nos acompanha”. “O silêncio é uma praga de bico afiado que se enfia com uma força perversa em nosso tecido social. Com o silêncio é que a sociedade tenta embrulhar a realidade que a incomoda”, adverte.
“Bandidos, e não mocinhos” ou preto-e-branco
“As crianças são vítimas do comportamento dos adultos, da incompetência e insensibilidade de gestores públicos que brincam com essa questão”, continua Rubervam, em referência às circunstâncias em que crianças e adolescentes aparecem como culpadas pela violência urbana ou então quando o senso comum insiste que seria melhor ver esses jovens inseridos no mundo do trabalho, quando na verdade deveriam estudar, brincar e seguir somente depois à vida adulta. Ele cobra mais responsabilidade de autoridades e dos próprios cidadãos quanto ao problema. “Nesse filme violento, é bom que assumamos, de uma vez por todas: todos nós somos bandidos, e não mocinhos”.
É dessa realidade dura que o escritor diz buscar a fonte de seu trabalho poético. “A matéria-prima de minha poesia, nos últimos 30 anos de convivência com a escritura, tem a ver com o que consigo apalpar cheirar, devorar, no dia a dia, na tentativa de transformá-lo em objeto de expressão artística”, conta. Questionado por esta reportagem por que preferiu, no livro, fazer o registro em versos, e não em prosa, ele é enfático em defender seu tipo de linguagem. “Meus referenciais são poetas que ousam invadir universos que a maioria julga completos, mas que estão precisando, o tempo todo, ser decifrados, imaginados, provocados, corrigidos.”
Da mesma forma, Sérgio explica a preferência que tem pelas imagens em preto-e-branco. Segundo entende, a ausência de cores permite mais plasticidade e dramaticidade para os retratos na publicação. Em vez de utilizar a fotografia como forma pura e simples de representação da realidade, deixa “sugerido” ao leitor a percepção daquilo que está acontecendo, procura usar as imagens “como um meio de transformação social”. “O preto-e-branco sugere mais. Quando foge da imagem-realidade, o preto e branco não só mostra como também sugere mais”, diz. No fundo, as imagens também aparecem como um tipo de poesia.
“E a poesia”, explica Rubervam, “é testemunha ímpar de conquistas universais, das histórias de amor e morte dos indivíduos”. Testemunha que, como a música de Elis Regina, permanece por gerações, para que o que passa agora não caia no esquecimento jamais.
Sérgio Carvalho nasceu em Simplício Mendes, no Piauí. Na ocasião de uma das visitas que fez a sua cidade-natal, deparou-se com a situação retratada acima. Ele conta que lá, devido à falta de oportunidades de estudo e inserção social às crianças, o trabalho de carrasco nos matadouros da região aparece como perspectiva a muitas meninas e meninos, inclusive com a conivência do poder público. “Foi na cidade onde eu nasci. Era um ambiente de trabalho muito penoso, em um matadouro público, gerenciado pela própria prefeitura, crianças trabalhando com animais”, descreve. Na imagem, o garoto puxa as correntes onde ficam pendurados os cadáveres de animais mortos.
Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
Por vontade própria e com o apoio dos pais, crianças e adolescentes realizam trabalhos degradantes para poder comprar bens como celulares e videogames
Por Sabrina Duran, da Repórter Brasil
A necessidade de um prato de comida já não é o único motivo a forçar crianças e adolescentes ao trabalho precoce e degradante. Na sociedade do consumo exacerbado e da publicidade ostensiva, outros itens pesam nas suas listas de urgências: celulares, tênis de marca e videogames são alguns deles. A pressão social para a aquisição desses produtos é tão grande que estes deixam de ser somente o bem conquistado e tornam-se os próprios “aliciadores”.
“Eles veem os colegas com celular e procuram trabalho. Muitos jovens são autônomos: compram computador, fazem cópias piratas de CDs e vão vender na rua para ganhar R$ 300, R$ 400 por mês. Hoje não são somente os pais que colocam os filhos para trabalhar. O consumismo atrai muita criança e adolescente”, afirma Luiz Henrique Ramos Lopes, chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). De acordo com ele, desde a divulgação do Censo de 2010 é possível perceber que o trabalho infantil no Brasil não está mais tão ligado à pobreza ou miséria extrema.
No âmbito urbano, onde a pressão do consumo é generalizada, os adolescentes são as “presas” mais fáceis para os empregadores. Além de estarem mais expostos do que as crianças ao apelo das propagandas, são os que mais trabalham nas cidades. “Os dados da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] mostram que na faixa etária de 5 a 9 anos o trabalho é muito mais rural do que urbano. De 10 a 14, o urbano começa a se sobrepor. De 15 a 17 anos o trabalho infantil é proeminentemente urbano”, informa Lopes.
Entre as atividades em que a exploração da mão de obra de crianças e adolescentes é mais comum, segundo a fiscalização do MTE, estão feiras livres, comércios ambulantes, borracharias, lava-jatos e oficinas mecânicas. Todas essas atividades estão na lista de Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), aprovada como decreto federal em 2008 (veja a primeira parte da reportagem sobre a Lista TIP aqui).
A cidade e seus riscos
Paula Moreira Neves, auditora fiscal do MTE e coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Infantil em Pernambuco, confirma que o consumismo, hoje, é um dos grandes desafios aos que combatem o trabalho infantil, especialmente nas cidades. “Existem crianças e adolescentes que são obrigados a trabalhar pela família ou são cooptados por terceiros nas ruas, mas muitos trabalham porque querem comprar bens que os pais não têm condições de lhes dar. Já que a maioria desses pais começou a trabalhar na infância, eles permitem e até estimulam que seus filhos façam o mesmo”, diz a auditora.
São muitos e graves os riscos para as crianças que desempenham atividades contidas na Lista TIP. No trabalho como vendedoras ambulantes nas ruas e outros logradouros públicos, por exemplo, elas estão sujeitas a violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; e a exposição à radiação solar, chuva, frio, acidentes de trânsito e atropelamento. Nas borracharias, são submetidas a esforços físicos intensos e expostas a produtos químicos, antioxidantes, plastificantes e calor. Na lida dos lava-jatos, crianças e adolescentes estão em constante contato com solventes, neurotóxicos, névoas ácidas e alcalinas. Já os que trabalham como carregadores em feiras livres estão sujeitos a padecer de bursites, tendinites, sinovites, escolioses, lordoses e outras doenças músculo-esqueléticas decorrentes do intenso esforço físico. “Esses pais [que estimulam os filhos a trabalhar] desconhecem os graves prejuízos que o trabalho precoce ocasiona aos seus filhos, como a dificuldade de aprender, a defasagem e a evasão escolar, os danos físicos ao corpo ainda em desenvolvimento e os danos psicológicos”, alerta Paula.
Dificuldades de fiscalização
Em 2012, segundo a auditora, foram fiscalizadas feiras livres em 65 municípios de Pernambuco, além das praias de Boa Viagem, no Recife, e Piedade, em Jaboatão dos Guararapes. Nos casos em que os empregadores foram identificados, todos foram notificados e autuados. No entanto, informa Paula, a maioria das crianças e adolescentes encontrados naqueles locais trabalhava com os pais ou, embora prestasse serviço a um terceiro, estava desacompanhada do empregador e não sabia informar seu endereço.
Não conseguir identificar quem explora a mão de obra infantil nas ruas e outros locais públicos é uma das grandes dificuldades dos fiscais do MTE. Nas feiras livres de municípios do Rio Grande do Norte, a auditora fiscal e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil do estado, Marinalva Cardoso Dantas, relata a mesma dificuldade de Paula. “Às vezes temos de inventar, dizer que não somos do Ministério do Trabalho para poder conversar com as crianças, senão elas correm, mentem para não dizer o nome dos pais.”
Para Paula Neves, a utilização de praias e outros logradouros públicos para o comércio deve ser regulamentada e fiscalizada pelo poder público municipal a fim de prevenir e coibir o uso da mão de obra infantil. “Condicionando, por exemplo, a autorização do uso do espaço público pelos barraqueiros e ambulantes à não utilização de mão de obra infantil”, sugere a auditora. Outras medidas importantes são a busca dessas crianças em situação de trabalho e sua inclusão em programas sociais e a realização de campanhas junto ao público em geral, especialmente com usuários de praias e feiras livres. “Que a sociedade pare de adquirir produtos e serviços das mãos de crianças e adolescentes que trabalham sob sol escaldante, descalços, expostos a riscos e diversos problemas de saúde decorrentes do trabalho precoce”, finaliza.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente
Lista com as atividades profissionais mais degradantes para crianças e adolescentes ainda é ignorada em diversas regiões
Por Sabrina Duran, da Repórter Brasil
Em 2008, um decreto assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva permitiu que o combate ao trabalho infantil no país se tornasse mais abrangente, ampliando as possibilidades de punição contra indivíduos e empresas que o utilizam e, principalmente, protegendo muito mais crianças e adolescentes que todos os dias são submetidos a atividades degradantes no campo e na cidade.
O decreto de número 6.481, assinado em 12 de junho daquele ano, aprovou, em nível federal, a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), que teve suas bases lançadas em 1999 pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Constam da relação 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham. Há ainda outros quatro itens convencionados anteriormente pela OIT e que se referem à exploração sexual, trabalho escravo, trabalhos moralmente degradantes e uso da mão de obra infantil em atividades ilícitas, como o tráfico de entorpecentes. A Lista TIP foi elaborada durante quase três anos por membros da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
“Antes do decreto, essa lista era aprovada em forma de portaria pelo MTE. Mas nós queríamos que tivesse uma abrangência maior, porque talvez uma atividade de subsistência e o ato de pedir esmola na rua ou fazer malabares não fossem considerados empregos e, por isso, não seria competência do MTE [fiscalizar]. Como foi um documento preparado por vários ministérios juntamente com a Conaeti, centrais sindicais e confederações patronais, optou-se por fazer um decreto, um documento mais forte que o governo inteiro tem de aceitar”, explica o chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do MTE, Luiz Henrique Lopes.
Para ele, além de dar mais peso e abrangência ao combate do trabalho infantil, a Lista TIP desmistifica sensos comuns que, de alguma forma, perpetuam a cultura da exploração de crianças e adolescentes. “Buscamos estudos que comprovassem a periculosidade das atividades, justamente para desmistificar pensamentos como ‘trabalha na carvoaria, então é perigoso; trabalha no âmbito urbano, então não é perigoso’. Não há ‘achismo’ na lista. Colocamos estudos científicos que embasam nossas escolhas.”
Entre 8 e 10 de outubro o Brasil sediará, em Brasília (DF), a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Embora seja um evento mundial, o país tem participação especial porque, segundo Lopes, é referência no combate a esse tipo de exploração. “Não fazemos distinção entre trabalho rural ou urbano, nem de idade ou de gênero. Temos o compromisso de até 2016 acabar com as piores formas de trabalho infantil”, afirma.
Desafios no campo
Embora a criação da Lista TIP e o trabalho de fiscalização tenham ajudado a reduzir o uso de mão de obra infantil, ainda há sérias dificuldades que impedem a erradicação das piores formas de trabalho. E é no âmbito rural que essas dificuldades são mais evidentes. Faltam fiscais e suporte das autoridades locais; sobram ameaças de empregadores e até de figuras políticas a auditores do MTE. No campo, as distâncias a serem percorridas são longas, de difícil acesso e, muitas vezes, o medo da população de oferecer informações dificulta as ações de inteligência do MTE na busca de focos de exploração.
Outro grande entrave é de ordem cultural. Não apenas empregadores, mas os próprios familiares de crianças e adolescentes acreditam estar fazendo um bem ao colocá-las para trabalhar. “O que mais ouvimos é que se a criança não trabalhar vai cair nas drogas. Ou seja: as únicas opções para as crianças são o trabalho ou as drogas. Para mim, essa é uma crença perversa”, diz Roberto Padilha, coordenador do Projeto de Fiscalização do Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Sul (SRTE/RS).
Quando a família é o empregador
Segundo Padilha, um dos principais focos de combate ao trabalho infantil no estado, hoje, está no cultivo de fumo, que consta da Lista TIP. Esforço físico e posturas viciosas; exposição a poeiras orgânicas e seus contaminantes, como fungos e agrotóxicos; acidentes com animais peçonhentos; e exposição, sem proteção adequada, à radiação solar, calor, umidade, chuva, frio e acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes aparecem na lista como prováveis riscos ocupacionais à criança ou adolescente que trabalha na lavoura de fumo. Bursites, tendinites, urticárias, doenças respiratórias, mutilação e câncer são apenas algumas das consequências para a saúde. Um agravante contra o bem-estar das crianças nesse ambiente é a liberação de substâncias tóxicas pela própria planta do fumo.
O cultivo costuma ser feito em pequenas propriedades familiares onde trabalham pais e filhos. “Ainda existe muita resistência a entender as consequências do trabalho infantil”, descreve Roberto Padilha. Na fiscalização dessas lavouras, o trabalho dos auditores do MTE é distinto do realizado em propriedades de empresas. Não há autuação dos empregadores ou afastamento das crianças do trabalho, mas sim orientação e um esforço, por meio da informação e do diálogo, de substituir o trabalho pela educação. “A instrução normativa 77, que regulamenta nossa atuação nas lavouras de economia familiar, diz que nosso trabalho é de orientação às famílias e de articulação com outros órgãos parceiros, como assistência social, Conselho Tutelar, Ministério Público do Trabalho e órgãos de educação”, explica Padilha.
O objetivo dessa parceria é promover atividades de capacitação profissional das famílias e atividades alternativas ao trabalho das crianças no campo, alertar nas escolas sobre o risco do trabalho infantil e estimular a cadeia produtiva a adquirir apenas produtos que não utilizem mão de obra de crianças. “O trabalho infantil não é elemento de desenvolvimento econômico ou social. Ele abala o desenvolvimento físico e provoca evasão escolar. O Brasil carece de mão de obra qualificada para ocupar cargos mais bem remunerados. Nesse sentido, o trabalho infantil é também um elemento de degradação econômica”, completa o coordenador do Projeto de Fiscalização do Trabalho Infantil da SRTE/RS.
“Constituição é bobagem”
Jovens de 13, 14 anos, sentados no chão úmido e sujo, respirando o ar poeirento, manuseando facões e outros instrumentos cortantes. Durante uma manhã inteira eles não se levantam, não bebem água e não vão ao banheiro, para não perderem tempo. Ao fim da jornada, cada um tem como saldo da lida meia tonelada de mandioca descascada sobre as pernas e os problemas crônicos na coluna e nos rins que o trabalho na casa de farinha lhes dá como “paga”, além dos R$ 20 semanais, em média.
Marinalva Cardoso Dantas, auditora fiscal do trabalho e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil do Rio Grande do Norte, é quem descreve a situação de trabalho dos adolescentes nas casas de farinha – atividade que consta na Lista TIP – espalhadas pelas áreas rurais do estado.
Assim como no caso das lavouras de fumo familiares no Rio Grande do Sul, a questão cultural é um dos grandes entraves para a fiscalização do MTE no Nordeste brasileiro. “A cultura local diz que criança deve sempre trabalhar para não virar marginal. A população pensa assim, os vereadores pensam assim, pessoas da prefeitura, comerciantes, até o padre acha normal criança trabalhar”, diz Marinalva.
Na defesa das próprias convicções culturais – e dos benefícios financeiros do uso da mão de obra infantil, que não custa quase nada a quem a explora –, os empregadores e os que concordam com suas ideias chegam a protagonizar situações absurdas, como o episódio vivido há três anos por Marinalva e outras três auditoras em Boa Saúde, cidade com menos de 10 mil habitantes no agreste potiguar.
Após tomarem conhecimento da morte, por choque elétrico, de uma criança numa casa de farinha, elas iniciaram um trabalho de conscientização na cidade e convocaram uma audiência pública na Câmara Municipal local. “Só saímos de lá depois de meia-noite porque fomos obrigadas a ficar ouvindo todos os desaforos dos vereadores, que diziam que a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente são besteira, que não queriam ninguém de fora dizendo como eles deveriam cuidar dos meninos da cidade. A plateia aplaudia tudo o que diziam. Para eles, é normal uma criança morrer de choque elétrico numa casa de farinha. E aquele não tinha sido o primeiro caso.”
Naquela ocasião, as auditoras afastaram onze crianças do trabalho. Mas poderiam ter afastado mais. “Como as casas de farinha são próximas, quando a gente chega na primeira, as pessoas já vão de moto e bicicleta avisar nas outras, e depois não encontramos mais ninguém”, conta a auditora. Depois daquele incidente na Câmara Municipal de Boa Saúde, Marinalva nunca mais voltou à cidade. “Só volto com acompanhamento da polícia e alguém do Ministério Público”, diz.
Matadouros no RN
Com tradição no comércio de carne de sol, o Rio Grande do Norte é pródigo em abatedouros. O trabalho nesse ramo está diretamente relacionado à pecuária, pode ser encontrado no campo ou na cidade e, no que diz respeito ao uso de mão de obra infantil, consta da lista das piores formas de trabalho.
No estado, a erradicação do trabalho de crianças e adolescentes no abate do gado é um grande desafio para o MTE também por causa do traço cultural e familiar da atividade. “Em geral, são filhos de vaqueiros e peões levados pelos próprios pais a trabalhar ali. O trabalho vai passando de pai para filho.” Em seu relato cru, Marinalva diz que já encontrou adolescentes matando boi a marretadas, tirando a pele, fazendo sangria, limpando as vísceras e as fezes. “Já entrevistei um menino que disse que bebia com cachaça o sangue do boi que jorrava do pescoço. Outro disse que treinou matar boi matando gato na rua a pauladas, como vê o pai fazer com o boi. Esses meninos veem gente matando gado, gado matando gente, gente matando gente. A violência, a morte e a vida para eles são algo muito banal”, afirma.
Segundo a auditora, entre os mais de 160 municípios do Rio Grande do Norte, pelo menos cem abrigam locais de abate, muitos pertencentes às prefeituras. Nas cidades de João Câmara, Nova Cruz, Caicó, Acari e Bom Jesus, por exemplo, a fiscalização flagrou trabalho infantil em matadouros públicos. “Há matadouros onde o gado do próprio prefeito é abatido por crianças”, revela Marinalva.
Outro problema para o combate a esse tipo de atividade é o fato de as crianças serem recrutadas por via indireta e, formalmente, não serem empregadas da prefeitura, o que impede os fiscais de autuarem a administração municipal. Uma solução legal, porém, foi encontrada recentemente. “Descobrimos que podíamos fazer um auto de infração onde não é mencionada a palavra ‘empregado’, e sim ‘manter em serviço pessoas com menos de 16 anos’. Com isso, começamos a autuar prefeituras no caso das feiras livres. Isso foi considerado um avanço. Agora, vamos usar esse instrumento nos matadouros porque a situação é a mesma”, explica a auditora.
Ela adianta que o estado prepara uma fiscalização para flagrar trabalho infantil em matadouros clandestinos, cujas condições de insalubridade e exploração são iguais ou piores do que nos matadouros legalizados. Currais Novos, polo de carne de sol do Rio Grande do Norte, será um dos alvos da fiscalização. “Sabemos que estão abatendo animais em sítios. A matança é tão grande que os bois da região não dão conta, e eles trazem gado do Tocantins”. A ação dos auditores nos matadouros clandestinos terá apoio da Polícia Rodoviária Federal e contará com a presença de juízes que solicitaram acompanhar algumas fiscalizações como observadores. “Eles querem sentir a realidade da exploração das crianças. Quando o caso chegar à sala deles, saberão julgar com mais precisão”, informa Marinalva.
Na segunda parte desta reportagem você conhecerá detalhes sobre o combate às piores formas de trabalho infantil no âmbito urbano.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente
Velho problema, novos desafios: Redução da pobreza inaugura segunda fase do combate ao trabalho infantil
O Brasil cresce e tira famílias da pobreza, mas o trabalho de crianças e adolescentes persiste como marca da nossa sociedade. Agora, ele avança para as classes médias e atividades urbanas
Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil
Em dez anos, o Brasil tirou quase 530 mil crianças e adolescentes de situações de trabalho e os devolveu às suas atividades de direito: estudar, brincar e se desenvolver. Outros 3,4 milhões de crianças e adolescentes de 10 a 17 anos ainda trabalham no país, segundo a última análise do IBGE, baseada no Censo de 2010.
Em estimativa mais abrangente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, no ano de 2011, são 3,6 milhões de crianças de 5 a 17 anos trabalhando – ou 8,6% da população nessa faixa de idade.*
A modesta redução de 13,4% no número de crianças e adolescentes trabalhando apontada pelo Censo entre 2000 e 2010 poderia ser um alento, não fossem alguns poréns. Justamente na faixa mais vulnerável dessa população – as crianças de 10 a 13 anos, para quem qualquer tipo de trabalho é proibido –, a ocorrência do problema chegou a aumentar 1,5% (são 710 mil crianças nessa idade, quase 11 mil a mais que em 2000).
No levantamento da PNAD, em todo o Brasil havia 89 mil crianças de 5 a 9 anos e 615 mil de 10 a 13 anos trabalhando na semana da pesquisa – mais de 700 mil crianças no total, o que equivale a pouco menos que a população da cidade de João Pessoa.
A mão de obra de quase 2,7 milhões de jovens entre 14 e 17 anos, apesar de menos freqüente que há dez anos (os adolescentes que trabalhavam eram então 3,2 milhões), é empregada de maneira irregular e em atividades perigosas. Segundo a legislação brasileira, jovens de 14 e 15 anos só podem trabalhar na condição de aprendizes; os de 16 e 17 anos, em atividades que não sejam perigosas ou degradantes, protegidos por uma série de condições.
Novo perfil do trabalho infantil
Se comparada a condição atual à do início dos anos 90, quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT) começou a monitorar a questão no Brasil, o trabalho infantil hoje é mais urbano e menos rural e atinge, na média, crianças mais velhas que há 20 anos. Essas crianças enfrentam, em sua maioria, uma dupla jornada de escola e trabalho com a própria família, que nem sempre está em situação de pobreza.
“Se anteriormente a pobreza era um dos determinantes do trabalho infantil, hoje esta relação está menos clara”, analisa Renato Mendes, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da OIT no Brasil. “Quase 40% das crianças e jovens que trabalham não estão em famílias que vivem abaixo da linha de pobreza.”
Isso denota, na opinião de Renato, uma mudança de motivação, principalmente por parte dos adolescentes. “Antes o jovem trabalhava para complementar a renda básica da família, hoje trabalha para ter acesso aos bens resultantes do desenvolvimento, como um celular ou uma roupa de marcar. Muitas vezes o trabalho infantil e juvenil está mais ligado à necessidade de inclusão social e menos à sobrevivência”, afirma.
A posse de bens de consumo e o trabalho precoce vistos como forma de inclusão social evidenciam que falta oferta de atividades socioculturais para crianças e jovens. Parte desse vazio poderia ser preenchido com acesso a escola de qualidade e à convivência com outras crianças em espaços de cultura, lazer e esporte – modelo que se convencionou chamar de “educação em tempo integral”.
“Existe uma visão equivocada de que crianças e adolescentes têm que trabalhar. Uma frase que ouvimos muito é: ‘Melhor a criança trabalhar do que roubar’, como se não houvesse uma terceira opção”, diz o promotor Carlos Martheo Guanaes, membro auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), organizador do último seminário no Judiciário para debater o tema, em agosto deste ano. A abordagem da educação em tempo integral nas futuras políticas públicas para as famílias seriam a principal aposta para processar essa mudança cultural.
“Houve no Brasil, nos últimos cinco ou seis anos, uma perda de foco no combate ao trabalho infantil. Até pouco tempo se acreditava que o problema todo era reduzir a pobreza, que a transferência de renda bastaria”, avalia Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fundo Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). Hoje se sabe, segundo ela, que o problema é mais complexo que a pobreza material.
Embora reconheçam que a melhoria da renda dos brasileiros, em grande parte como consequência da ampliação do programa Bolsa Família, tenha impactado positivamente na redução do trabalho infantil, a estratégia dada hoje como mais efetiva envolve o tripé transferência de renda, escola de qualidade e oferta de políticas educacionais, culturais e esportivas para crianças e adolescentes.
“É preciso empoderar as famílias para que elas cumpram suas obrigações com as crianças. Os programas de transferência de renda são um marco positivo da última década, expressivo num primeiro momento. Mas é preciso também oferecer a educação integral, para convencer os pais de que as crianças estarão em segurança, em atividades adequadas para sua idade, enquanto eles trabalham”, resume Isa Maria.
Realidades regionais
Estudo dos microdados dos censos do IBGE de 2000 e de 2010 feito pela OIT permitiu identificar em quais regiões do país a atual política de redução do trabalho infantil surtiu mais efeito.
A única região onde todos os Estados registraram redução do número de crianças de 10 a 13 anos trabalhando foi o Nordeste – queda de 14,96% nessa faixa de idade, e de 23,28% entre crianças e adolescentes de 10 a 17 anos.
“O desempenho do Nordeste mostrou a eficácia da política pública de transferência de renda, já que é a região onde ela foi melhor implementada. Isso explica também porque, hoje, não há crianças trabalhando na maioria das famílias pobres do Brasil”, afirma Renato, da OIT. Ainda assim, a região concentra cerca de 30% das crianças e adolescentes que trabalham no Brasil, grande parte deles na agricultura familiar ou em serviços domésticos. “O Nordeste era a região onde o problema era mais crítico, daí também a relevância dos resultados positivos”, completa Isa Maria.
Em todas as outras regiões do Brasil, o número de crianças entre 10 e 13 anos trabalhando aumentou. Nos Estados do Norte e do Centro-Oeste, esse aumento é de mais de 25%.
Com exceção de Rondônia, todos os Estados da região Norte viram o número de crianças e adolescentes que trabalham aumentar entre 2000 e 2010. “O Norte é uma região em que ainda há dificuldade de acesso dos instrumentos da política pública federal, com municípios longínquos, escolas mais distantes dos domicílios, períodos de chuva, transporte difícil. Nessa região, a política pública precisa de uma contextualização melhor”, analisa Renato. Predominam nesta região, segundo ele, o trabalho de crianças no extrativismo, agricultura e no trabalho doméstico.
Nas regiões Centro-Oeste e Sul, onde a agroindústria se desenvolve,o que preocupa é principalmente o emprego de adolescentes nas fazendas em atividades perigosas, listadas entre as piores formas de trabalho infantil reconhecidas pelo Brasil em 2008 – como a operação de máquinas e veículos agrícolas, manuseio de defensivos químicos ou a extração e colheita de culturas que desprendem resíduos nocivos à saúde.
“A taxa de ocupação de adolescentes no Centro-Oeste e no Sul é altíssima, e caiu pouco em comparação com outras regiões do país”, avalia Renato. Isa Maria concorda: o trabalho infantil na agricultura familiar, típico da cultura dos imigrantes, persiste e migrou para o agronegócio. “O trabalho desprotegido desses jovens cria um desenvolvimento irresponsável na região”, diz ela.
Na região Sudeste, de maior concentração urbana, e nas regiões metropolitanas do país, crianças e adolescentes trabalham principalmente no setor de comércio e serviços informais – como ambulantes, no trabalho doméstico, no setor de transportes, confecção, manutenção e outras atividades terceirizadas. Daí a importância, alertam os especialistas, de as empresas conhecerem sua cadeia produtiva e não pactuarem com a violação dos direitos expressos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
“Na década de 90, as regiões Sul e Sudeste foram as que registraram melhor desempenho no combate ao trabalho infantil, mas na década seguinte foram as que menos municipalizaram os instrumentos da política pública federal. Por isso, o índice voltou a crescer em algumas faixas de idade ou não diminuiu tanto quanto o esperado”, diz Renato. De acordo com ele, o retrocesso da questão no Sudeste – onde aumentou mais de 15%, entre 2000 e 2010, o número de crianças de 10 a 13 anos que trabalham – deve-se à omissão dos governos locais em implementar os programas federais direcionados, como o Bolsa Família e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), ou em elaborar uma política regional para substituí-los.
Na avaliação de Renato, Isa Maria e do promotor Carlos Martheo, o Brasil se encontra num momento decisivo para repensar as políticas de combate ao trabalho infantil e atacar o problema em toda a sua complexidade.
Campanha lançada pela OIT Brasil e pelo FNPETI no último dia 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, busca convencer famílias e empresários de que explorar ou conviver com o trabalho infantil é uma violação dos direitos humanos. “Não é possível que, em plena fase de desenvolvimento, com o Brasil entre as oito maiores economias do mundo, o problema persista. É uma situação epidêmica, que demanda ação imediata”, conclui Renato.
* Enquanto a PNAD é uma pesquisa feita anualmente por amostragem (em domicílios de 1.100 municípios brasileiros, no ano de 2011), o Censo tenta se aproximar do universo total de famílias entrevistando um número consideravelmente maior de pessoas, em todas as cidades brasileiras.
Apesar de o Censo não considerar o trabalho de crianças menores de 10 anos,de fora da População Economicamente Ativa (PEA), é um instrumento importante de análise das políticas sociais por retratar o quadro do mercado de trabalho brasileiro com mais precisão.
Sempre que não for mencionada a PNAD no texto, os dados se referem ao Censo.
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