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Justiça do Trabalho determina que unidade da rede de supermercados em Ribeirão Preto (SP) deixe de praticar irregularidades trabalhistas, entre as quais a submissão de jovens aprendizes a desvios de função
Por Igor Ojeda
O supermercado Pão de Açúcar é “lugar de gente feliz”, diz o comercial na TV. Clientes felizes e ecologicamente sustentáveis encontram, em qualquer loja da rede, funcionários igualmente felizes e ecologicamente sustentáveis sempre dispostos a atendê-los.
De acordo com a juíza Francieli Pissoli, da 5ª Vara do Trabalho de Ribeirão Preto (SP), no entanto, a realidade é um pouco diferente. Em decisão de novembro deste ano, ela concedeu liminar favorável ao Ministério Público do Trabalho (MPT) determinando ao Grupo Pão de Açúcar (GPA) que deixe de praticar uma série de irregularidades trabalhistas, entre estas, a submissão de jovens aprendizes a desvios de função e de seus funcionários em geral a jornadas excessivas.
As violações foram flagradas por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na loja do grupo localizada na avenida João Fiúsa, na Zona Sul de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Segundo a fiscalização, a gerência da unidade obrigava os adolescentes contratados pelo programa de aprendizagem a trabalhar como caixas e empacotadores, em períodos noturnos e em regime de compensação de jornada, condições não permitidas pela legislação brasileira. Além disso, a empresa não cumpria o número mínimo de 5% de aprendizes em relação ao total do quadro de empregados.
De acordo com a fiscalização do MTE, além de desrespeitar as violações dos direitos dos adolescentes aprendizes, o Pão de Açúcar Fiúsa, como a unidade era conhecida, não cumpria com algumas obrigações trabalhistas dos funcionários adultos. Extensão de jornadas acima do permitido, ausência de intervalos regulares e descanso semanal, e falta de registro de horário de entrada e saída dos empregados foram algumas das práticas flagradas.
Em nota enviada à reportagem, o Grupo Pão de Açúcar afirma que cumpre a legislação trabalhista e “repudia qualquer situação de violação aos seus preceitos”. Sobre os adolescentes, a rede garante que seu programa direcionado a aprendizes possui diretrizes “orientadas pelas leis vigentes”, o objetivo de “possibilitar a entrada desses jovens no mercado de trabalho” e a premissa do “desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional dos participantes da iniciativa”.
A Ação Civil Pública (ACP) havia sido ajuizada pelo procurador Henrique Lima Correia, da Procuradoria do Trabalho do Município de Ribeirão Preto, após o Pão de Açúcar ter se negado a firmar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) proposto por Correia. “As denúncias de irregularidades chegaram a nós através do site da Procuradoria. Chamei o Pão de Açúcar para se manifestar sobre elas. Se fossem verdadeiras, que firmássemos um acordo extrajudicial, um TAC. A empresa negou que houvesse irregularidades e não aceitou firmar o TAC. Então requisitei uma fiscalização junto aos fiscais do trabalho. Esta foi feita e foram constatadas várias irregularidades”, explica o procurador à Repórter Brasil.
Uma vez flagradas as violações, e como a rede de supermercados já havia se recusado a firmar qualquer acordo extrajudicial, Correia decidiu entrar com a ação solicitando, por meio de antecipação de tutela, que a empresa imediatamente cessasse de realizar tais práticas irregulares. “Em razão das graves irregularidades, além de pedir para que fosse regularizado tudo isso, solicitei à Justiça a condenação, por danos morais coletivos, ao pagamento de R$ 400 mil”, esclarece o procurador. Caso o Judiciário condene o Pão de Açúcar, esse valor será revertido ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
A inspeção à unidade do Pão de Açúcar na Zona Sul de Ribeirão Preto, realizada pela Gerência Regional do Trabalho e Emprego (GRTE) do município, teve como resultado 11 autos de infração. Foram encontrados jovens aprendizes em jornadas abusivas e trabalhando em horários noturnos – depois das 22 horas. Além disso, os auditores verificaram que adolescentes estavam incluídos em banco de horas, que controlava a realização de horas-extras e a concessão de folga compensatória. “Registre-se que a situação ora autuada contraria o disposto no artigo 432, caput, da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], que assim dispõe: ‘A duração do trabalho do aprendiz não excederá de seis horas diárias, sendo vedadas a prorrogação e a compensação de jornada’”, argumenta a ação ajuizada pelo procurador Henrique Lima Correia.
Trabalho infanto-juvenil
A psicóloga Fabrícia Rodrigues Amorim Aride, estudiosa da questão do trabalho adolescente, lamenta que o caso do Pão de Açúcar não seja isolado. Segundo ela, há no Brasil uma cultura de valorização do labor de crianças e adolescentes como um meio de afastá-los da ociosidade e da possível delinquência, e, quando vinculado às tradições familiares de organização econômica, fazê-los aprender um ofício e auxiliar na mão de obra familiar. “Em contrapartida, pode ocorrer a exploração da mão de obra infanto-juvenil, legitimada pelo governo, que muitas vezes é a única forma de sustento formal da família”, pondera.
De acordo com a psicóloga, apesar de trazer um retorno imediato, o trabalho nessa idade pode ter consequências de longo prazo. “Por exemplo, abandono escolar e diminuição da interação social devido ao cansaço físico, afastamento de amigos que passam a ver esse jovem de uma forma diferente (e ele também pode passar a se ver dessa maneira) e, entre outras questões, inserção precoce nas angústias características dos trabalhadores.” Além disso, segundo ela, a entrada dos jovens no mercado de trabalho geralmente não traz a possibilidade de ascensão social, perpetuando, desse modo, a pobreza e a desigualdade social. “Infelizmente, pode-se dizer que os jovens de baixa renda sofrem mais impactos negativos do que os jovens de classes mais privilegiadas, visto que aos segundos são dadas possibilidades de aprendizagens bem diferenciadas, como por exemplo, cursos, intercâmbios, viagens, enquanto aos primeiros, as atividades profissionalizantes que funcionam sob a égide ‘mente vazia é oficina do Diabo’”, analisa Fabrícia.
Aprendizagem
De acordo com a legislação brasileira, não é permitido empregar jovens de idade inferior a 18 anos em trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres. Adolescentes de 16 anos ou menos não podem ser contratados para nenhum trabalho, salvo na condição de aprendiz, permitida a partir dos 14 anos. Segundo o MTE, “aprendiz é o empregado com um contrato de trabalho especial e com direitos trabalhistas e previdenciários garantidos. Parte do seu tempo de trabalho é dedicada a um curso de aprendizagem profissional e outra é dedicada a aprender e praticar no local de trabalho aquilo que foi ensinado nesse curso”.
A aprendizagem foi estabelecida oficialmente no Brasil pela Lei 10.097/2000 e regulamentada pelo Decreto 5.598/2005. Lei e decreto determinam que qualquer empresa de médio e grande porte é obrigada a contratar adolescentes e jovens entre 14 e 24 anos, cujo contrato terá, no máximo, dois anos de duração. Ao mesmo tempo, estes devem ser matriculados em cursos de aprendizagem ministrados por instituições qualificadoras reconhecidas, que serão as responsáveis pela certificação – por exemplo, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), escolas técnicas e entidades sem fins lucrativos que tenha como objetivo a educação profissional. A carga horária máxima é de seis horas diárias, podendo chegar a oito caso estejam incluídos os períodos dedicados ao aprendizado teórico. “A aprendizagem deve ter caráter mais pedagógico do que de trabalho. As funções que os adolescentes estavam ocupando na loja do Pão de Açúcar de Ribeirão Preto não eram condizentes com a aprendizagem”, explica o procurador do trabalho responsável pela ação.
Para Fabrícia, a regulamentação da aprendizagem pelo governo federal foi uma iniciativa importante, que propiciou a legalização e o reconhecimento dos direitos dos adolescentes, uma vez que, segundo ela, o trabalho é uma atividade estruturante da vida e tem importância fundamental na construção da identidade do jovem. “Entretanto, não há uma lei que defina o que de fato seja o trabalho educativo e imponha limites a ele. Observamos, por exemplo, jovens universitários trabalhando em organizações sem ligação nenhuma com sua futura formação profissional, e acobertando um problema ainda mais amplo: a ausência de contratações efetivas pelas instituições. Portanto, essa é uma questão que não se restringe apenas aos jovens do programa”, alerta.
Pão de Açúcar
De acordo com sua própria página na internet, o Grupo Pão de Açúcar – empresa do Grupo Casino, de origem francesa – é um dos líderes mundiais no varejo de alimentos. É a maior companhia da América Latina no setor, com quase 2 mil pontos de venda e mais de 155 mil funcionários. Controla ainda estabelecimentos como Extra, Casas Bahia e Ponto Frio. Em 2012, registrou lucro recorde: R$ 1,1 bilhão, crescimento de 60,7% em relação ao ano anterior. Em 2013, os primeiros nove meses já renderam R$ 709 milhões, alta de 14,8% em comparação ao mesmo período do ano passado.
No tópico “Missão, visão e pilares” de seu site, o grupo chama seus trabalhadores de “nossa gente”, que são, de acordo com o site, “profissionais com excelência técnica, bem preparados e motivados para assumir desafios, riscos e atitudes inovadoras. Pessoas que gostem de servir, que valorizem o respeito em suas relações internas com o cliente, fornecedores e parceiros”. Entre os princípios da empresa, figuram, entre outros, a garantia de que “nossa gente é gente que faz a diferença” e o compromisso “com o crescimento de uma sociedade justa, humana e saudável”. Sobre o Instituto Pão de Açúcar, voltado à responsabilidade social, o GPA diz que “acredita e sempre trabalhou com foco no potencial humano, acreditando que, quando estimulada, sua força latente se revela e dá novos sentidos a vida”.
Já a unidade Fiúsa, de Ribeirão Preto, foi inaugurada em novembro de 2009. De acordo com informações da imprensa da época, foi a segunda do grupo na cidade e o primeiro “supermercado Verde” local: foram investidos R$ 11 milhões para que todas as etapas da implementação da loja fossem concebidas sob critérios de responsabilidade socioambiental, segundo a empresa.
“O GPA esclarece que cumpre a legislação trabalhista e que repudia qualquer situação de violação aos seus preceitos. A companhia mantém um programa de desenvolvimento e capacitação de Jovens Aprendizes, cujas diretrizes são orientadas pelas leis vigentes e tem como objetivo possibilitar a entrada desses jovens no mercado de trabalho e como premissa o desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional dos participantes da iniciativa. Sobre a liminar citada, a companhia esclarece que não foi notificada oficialmente e que apresentará sua posição em juízo assim que tal fato ocorrer.”
Fiscalização falha dificulta combate ao trabalho infantil nos municípios de fronteira dos extremos Norte e Sul do Brasil
Por Stefano Wrobleski, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*
Mais de 4 mil quilômetros separam o município amapaense de Oiapoque, no extremo Norte do Brasil, do Chuí, município gaúcho no extremo Sul. Os dois estão nos limites territoriais brasileiros: enquanto no Oiapoque um rio separa a população da Guiana Francesa, os habitantes do Chuí estão a uma rua de distância da vizinha uruguaia, que tem quase o mesmo nome: Chuy. Além de serem pontos extremos do país, o trabalho infantil e a falta de fiscalização – sempre mais eficiente do lado de lá da fronteira – são realidades que aproximam locais tão distantes.
No Chuí, uma força-tarefa realizada no início de novembro pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) detectou diversas irregularidades trabalhistas, além de crianças e adolescentes trabalhando com o empacotamento dos produtos comprados pelos clientes nos supermercados da cidade. O Conselho Tutelar do município contabilizou, na época, que quase todos os cerca de 50 jovens trabalhando no Chuí “faziam caixinha”, como é conhecida a atividade pela qual os consumidores pagam com esmolas. A presidenta do Conselho Tutelar, Sonia Caetano, explica que há uma naturalização do trabalho infantil: “As pessoas acham que é melhor estar trabalhando do que fazendo outra coisa, porque pensam que as crianças estariam nas ruas se não fosse isso”. Ela conta do caso de um homem que buscava emprego na cidade acompanhado de seu filho, de oito anos: “O dono [de um supermercado] disse a ele: ‘pra ti eu não tenho, mas tu deixas o teu filho aqui que ele pode fazer caixinha’”.
Alexandre Marin Ragagnin, procurador do MPT que acompanhou a operação, é categórico: “No lado brasileiro não tem fiscalização”. A unidade do MTE mais próxima fica a 200 quilômetros, o que dificulta os trabalhos. Ele explica que, como é mais difícil trabalhar no lado uruguaio, as crianças e adolescentes vêm para o Brasil. Alexandre conta também que encontrou, na operação, um menino de 12 anos que trabalhava desde os nove embalando compras em um supermercado: “Quando a fiscalização chegou, ele entrou na loja e saiu com uma compra, se misturando aos demais consumidores, o que não nos permitiu alcançá-lo”. Outra dificuldade é que, por ser uma fronteira seca, muitas vezes os pais das crianças flagradas são uruguaios, o que impede a ação dos fiscais.
A solução foi notificar cerca de 70 das principais lojas do município, que tem cerca de 5 mil habitantes no lado brasileiro, para que não empreguem crianças e adolescentes em seus estabelecimentos. Em dezembro, o MPT e o MTE devem voltar ao Chuí para uma audiência pública que conscientize empresários e o poder público local dos problemas e infrações legais quanto ao trabalho infantil.
Quatro mil quilômetros ao norte, o Ministério Público do Estado do Amapá (MP-AP) é uma das entidades que promove a Caravana Contra o Trabalho Infantil no Estado. O pequeno número de municípios do Amapá (16) tornou possível a realização da atividade em todos eles. Com oficinas, palestras e audiências públicas, o objetivo é unir esforços das esferas federal, estadual e municipal contra o problema, além de conscientizar as instituições governamentais competentes.
No Oiapoque, no entanto, isso não foi totalmente possível, de acordo com Marcos dos Santos Marinho, auditor fiscal do MTE que participou da atividade. Para que pudessem comparecer à audiência que discutiu o enfrentamento ao trabalho infantil no município, a administração dispensou os servidores dos departamentos que devem dar atenção a crianças e adolescentes vulneráveis, como o Conselho Tutelar e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Apesar da dispensa, Marcos conta que foram poucos os servidores que compareceram. Além disso, ele disse à Repórter Brasil que “no dia, a sede do Creas estava fechada quando fomos lá”.
O município de 20 mil habitantes não está isento de problemas. Há dois anos a prefeitura de Oiapoque firmou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o MPT se comprometendo a tomar medidas para combater o trabalho infantil. Mesmo sendo um local de fronteira, o auditor fiscal conta que “Oiapoque não tem controle sobre as atividades dos estrangeiros”. Ele revela que a equipe que conduziu a Caravana Contra o Trabalho Infantil na cidade ouviu diversos relatos sobre meninas que cruzam o rio que separa o município do seu correspondente franco-guianense, São Jorge do Oiapoque, para se prostituir.
Além disso, Marcos explica que fez uma fiscalização recentemente na cidade e flagrou três adolescentes trabalhando em um lava-rápido – deles, dois têm 16 e um tem 17 anos. Apesar da idade, que permite o trabalho em certas circunstâncias, essa atividade é proibida a eles por causa do contato com substâncias químicas perigosas e faz parte da Lista TIP, que contém as piores formas de trabalho infantil. O auditor fiscal explica que o dono do lava-rápido chegou a consultar o Conselho Tutelar de Oiapoque e o servidor que o atendeu autorizou o trabalho. Quando procurado pela fiscalização, o funcionário do Conselho Tutelar afirmou desconhecer a Lista TIP.
Apesar de estar em vigor desde 2008, a lista também não era conhecida no Chuí. De acordo com Alexandre, o procurador do MPT que acompanhou a força-tarefa do início de novembro, “havia uma orientação equivocada de que crianças de 14 anos poderiam trabalhar”. Segundo a legislação vigente, nenhuma criança com menos de 14 anos pode trabalhar. Os jovens entre 14 e 15 anos só podem fazê-lo na condição de aprendiz – o que exige o acompanhamento de um empregado monitor – em atividade que não esteja na lista das piores formas de trabalho infantil.
A Repórter Brasil não conseguiu localizar nenhuma autoridade do município de Oiapoque para comentar as denúncias do auditor fiscal Marcos dos Santos Marinho.
(Foto da capa: Gijlmar/Flickr)
* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
Enquanto o luxo predomina no lado de dentro de um dos estádios da Copa do Mundo, no lado de fora o trabalho infantil é comum na venda de cerveja, nas barraquinhas de churrasco e na coleta de latas de alumínio, entre outras atividades
Por André Uzêda, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*
Salvador (BA) – Em uma sintomática contradição biológica, a Arena Fonte Nova, estádio baiano erguido para a Copa do Mundo de 2014, tem exposto suas vísceras do lado externo da arquitetura que emoldura sua construção. Divididas entre brasas incandescentes, bandejas mal equilibradas e servindo latinhas de cerveja, um batalhão de crianças executa atividades profissionais sob olhares pouco desconfiados dos que ali transitam.
É um domingo, 27 de outubro, e os torcedores se aglomeram nos arredores do estádio para acompanhar o embate entre Bahia x Atlético-PR, em Salvador, pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2013.
As crianças e jovens que compõem esse cenário da exploração aparentam idade entre 8 e 17 anos e se agrupelham entre as mais diversas atividades informais ofertadas no espaço. Tal qual uma ciranda desencontrada, algumas vendem cervejas acompanhadas dos pais, enquanto outras recolhem latas de alumínio abandonadas no chão. Há ainda as que, próximas ao braseiro, onde são assadas carnes para serem comercializadas, ignoram os perigos da inalação da fumaça ou riscos de queimaduras com a imprudência própria da idade. A brutalidade envolve a atmosfera do lugar, sob olhares embrutecidos de quem enxerga aquilo como cenário habitué.
O barulho ambiente, exagerado a ponto de extrapolar as cercanias do lugar, parece sufocar a presença da pequena Vanessa**, de apenas 9 anos. A garota, apenas mais uma entre tantas outras crianças submetidas ao trabalho infantil naquele espaço, mantém o olhar em um ponto fixo, evasivo.
A menina carrega um curativo acima do olho direito, fruto de uma traquinagem infantil, enquanto apostava corrida durante o recreio escolar. Quando perguntada pela reportagem por que, mesmo tão nova, precisa ir trabalhar, sorri timidamente: “Fala com minha mãe, moço”.
“Melhor do que ficar na rua”
Há 20 anos, a senhora de 52 anos estabeleceu seu ponto de venda de cerveja em jogos do Bahia. A bebida é armazenada em um isopor largo, equilibrado em um carrinho de mão. Ela é mãe da pequena desconfiada, embora também acumule a função de chefia nessa relação familiar. “Tem pouco tempo que comecei a levá-la para me acompanhar. Vanessa fica mais aqui para cuidar das coisas enquanto eu vou ao banheiro ou preciso trocar um dinheiro. Não posso deixar o lugar vazio”, pontua a matriarca.
Em média, estima a ambulante, em um dia de jogo é possível arrecadar até R$ 400 com a venda de bebidas alcoólicas (proibidas no interior do estádio por resolução da CBF). Com o marido encostado pelo INSS, após cirurgia delicada, ela virou responsável por sustentar a casa ao mesmo tempo que cuida da sua prole. “Essa é outra razão pela qual levo Vanessa comigo. É melhor do que ela ficar na rua, sem ter o que fazer, desocupada…”, argumenta.
Explicação comum
De acordo com a socióloga baiana Inaiá Carvalho, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), dois elementos na fala dessa vendedora resumem a condição do trabalho infantil em território brasileiro. “Esse problema [trabalho infantil] ainda é visto pelos pais como um fator educacional. Na falta de uma escola em tempo integral, eles acham que, muitas vezes, é melhor ter o filho por perto, mantendo-o longe da rua, do crime e de tantos outros problemas”, diz a pesquisadora, que emenda: “A outra condição é estritamente social. O trabalho na infância está ligado à criança pobre, estritamente. Não se fala dessa questão entre jovens e crianças de classe média, por exemplo”, afirma. Especialistas na questão costumam defender que em vez de se criminalizar os pais, é necessário realizar um trabalho de conscientização e de fornecimento de garantias sociais.
A socióloga, porém, diz enxergar avanços consistentes nos últimos anos em relação ao combate ao trabalho infantil no Brasil. “Desde a década de 1990, os governos vêm sistematicamente trabalhando contra essa chaga social. A própria sociedade despertou de uma postura de passiva naturalidade para uma de horror escandalizado diante do trabalho infantil, sobretudo aquele mais pesado, na extração do sisal, carvoarias e plantação de cana-de-açúcar. Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, sancionada em 1990), os números de casos estão diminuindo”, afirma.
Sem escola em tempo integral
Apesar da redução de 13,44% na última década, entre jovens que trabalham dos 10 aos 17 anos, segundos dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), os números apontam estagnação da exploração infantil como mão de obra na zona rural e no setor informal da economia, como é o caso das crianças que trabalham ao redor da Fonte Nova. “São duas vertentes que tiveram baixas importantes, mas estagnaram. Chegamos a um ponto em que a única forma de resolver essa questão é com a redução drástica da pobreza e com escolas com acompanhamento integral para os jovens”, afirma a professora Inaiá Carvalho.
A ausência de uma instituição de ensino que prolongue suas atividades em mais de um período é a principal causa, por exemplo, para Gilvan**, de 14 anos, acompanhar uma senhora de 60 anos na sua rotina de trabalho. O garoto, que recolhe dinheiro enquanto ela assa espetos de carne, não possui qualquer relação de parentesco com a vendedora.
A reportagem encontrou o adolescente trabalhando nos arredores da Arena Fonte Nova em uma quinta-feira à noite, dia 24 de outubro, momentos antes da partida Bahia x Nacional de Medellín (Colômbia), pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana. “Ele é meu vizinho, lá do subúrbio ferroviário. A mãe dele sai para trabalhar e passa o dia todo na rua, só volta de noite. Ela que me pede para levá-lo para o trabalho, porque ele pode juntar um dinheiro e também fica mais seguro”, diz a churrasqueira.
Copa do Mundo
O olhar de Vanessa, perdido no horizonte, em algum momento talvez se depare com a suntuosidade da Arena Fonte Nova. A praça esportiva seria levantada ao custo inicial de R$ 591,7 milhões, celebrados por um contrato de PPP (Parceria Público Privada) entre governo do estado e as construtoras OAS e Odebrecht. Entretanto, um aditivo contratual de R$ 97,7 milhões elevou o valor final do empreendimento para R$ 688,7 milhões, no total. A serem pagos nos próximos 15 anos.
Tal grandeza numérica, traduzida em conforto, rótulos de sustentabilidade e embalagem de segurança para o mundial brasileiro, ainda que fisicamente próximos parecem léguas de distância da realidade da pequena Ana Carolina. “Nunca entrei lá não”, confidencia a garota, em referência ao luxuosíssimo estádio.
Enquanto embala sonhos do lado de dentro, fora o estádio expõe suas vísceras.
* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
No primeiro trimestre, fiscalização flagrou exploração de 123 crianças e adolescentes em Goiás, algumas submetidas a trabalhos degradantes, perigosos e insalubres
Por Daniel Santini, da Repórter Brasil
Crianças servindo cerveja e outras bebidas em bares durante a madrugada. Adolescentes operando máquinas e produtos químicos sem nenhuma proteção. Meninos de até 10 anos cumprindo longas jornadas para ganhar menos do que um salário mínimo, sem tempo para estudar ou descansar. Essas são algumas das histórias por trás do crescimento do número de flagrantes de exploração de crianças e adolescentes, identificado no primeiro trimestre de 2013 em Goiás.
Levantamento divulgado nesta semana pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE/GO) indica que o trabalho infantil aumentou significativamente no estado este ano. De 1º de janeiro até 10 de abril, foram identificadas 123 vítimas, sendo 79 delas com idades entre 10 e 15 anos. Se a proporção se mantiver ao longo do ano, o número de flagrantes deve superar ainda no primeiro semestre o total de 2012, quando foram encontradas 219 crianças e adolescentes exploradas, e chegar a uma quantidade tão significativa quanto a de 2011, quando foram identificados 571 casos. Para comparação, em 2009 foram 93 e, em 2010, 203.
De acordo com Arquivaldo Bites, superintendente regional do Ministério do Trabalho e Emprego em Goiás, não aconteceram operações especiais ou ações específicas que justifiquem aumento tão significativo. Neste vídeo, produzido a partir de imagens da SRTE/GO, é possível ter uma ideia das condições em que os flagrantes aconteceram:
Imagens: SRTE/GO – Edição: Anali Dupré
“Nas cidades pequenas, tendo em vista a dificuldade de fazer fiscalizações constantes, muitos empresários pensam que não precisam observar a lei e temos constatado irregularidades constantes”, explica, ressaltando que o número é um indicativo da gravidade da situação. As fiscalizações em questão aconteceram em áreas urbanas em atividades tão diferentes quanto restaurantes, mecânicas, bares, confecção de tapeçarias e lavanderias. “São crianças trabalhando em condições insalubres, em serviços noturnos, de periculosidade, carregando peso”, afirma.
Perfil das vítimas
No Brasil, não é permitido nenhuma forma de trabalho infantil para crianças com idade até 14 anos. Adolescentes com mais de 14 anos podem trabalhar na condição de aprendiz. “É comum a ideia de que se o jovem não trabalha vai virar vagabundo. Nós não concordamos com essa assertiva, é uma ideia ultrapassada”, afirma o superintendente. “A criança que trabalha em muitos casos acaba tendo o crescimento emocional, educacional e pessoal comprometido. Lugar de criança é na escola ou no prazer”, completa.
“Estamos falando de exploração para fins comerciais. Antigamente, crianças trabalhavam em serviços familiares, acompanhando os pais na zona rural, sem fins lucrativos em atividades de subsistência. Nenhum dos flagrantes foi assim, todos tinham um fundo empresarial. Lugar de criança não é no trabalho, ainda mais na situação de explorado. Nenhum dos garotos tinha carteira profissional, registro de aprendiz, direito de estudar ou descansar. Todos estavam com carga horária excessiva, muitos em locais insalubres e perigosos”, ressalta.
Diante desse problema, as autoridades do estado estão articulando o Fórum Goiano para Erradicação do Trabalho Infantil, frente que deve reunir representantes de diferentes pastas do governo estadual, prefeituras e Ministério Público, além de empresários e integrantes da sociedade civil.
Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
Por vontade própria e com o apoio dos pais, crianças e adolescentes realizam trabalhos degradantes para poder comprar bens como celulares e videogames
Por Sabrina Duran, da Repórter Brasil
A necessidade de um prato de comida já não é o único motivo a forçar crianças e adolescentes ao trabalho precoce e degradante. Na sociedade do consumo exacerbado e da publicidade ostensiva, outros itens pesam nas suas listas de urgências: celulares, tênis de marca e videogames são alguns deles. A pressão social para a aquisição desses produtos é tão grande que estes deixam de ser somente o bem conquistado e tornam-se os próprios “aliciadores”.
“Eles veem os colegas com celular e procuram trabalho. Muitos jovens são autônomos: compram computador, fazem cópias piratas de CDs e vão vender na rua para ganhar R$ 300, R$ 400 por mês. Hoje não são somente os pais que colocam os filhos para trabalhar. O consumismo atrai muita criança e adolescente”, afirma Luiz Henrique Ramos Lopes, chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). De acordo com ele, desde a divulgação do Censo de 2010 é possível perceber que o trabalho infantil no Brasil não está mais tão ligado à pobreza ou miséria extrema.
No âmbito urbano, onde a pressão do consumo é generalizada, os adolescentes são as “presas” mais fáceis para os empregadores. Além de estarem mais expostos do que as crianças ao apelo das propagandas, são os que mais trabalham nas cidades. “Os dados da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] mostram que na faixa etária de 5 a 9 anos o trabalho é muito mais rural do que urbano. De 10 a 14, o urbano começa a se sobrepor. De 15 a 17 anos o trabalho infantil é proeminentemente urbano”, informa Lopes.
Entre as atividades em que a exploração da mão de obra de crianças e adolescentes é mais comum, segundo a fiscalização do MTE, estão feiras livres, comércios ambulantes, borracharias, lava-jatos e oficinas mecânicas. Todas essas atividades estão na lista de Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), aprovada como decreto federal em 2008 (veja a primeira parte da reportagem sobre a Lista TIP aqui).
A cidade e seus riscos
Paula Moreira Neves, auditora fiscal do MTE e coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Infantil em Pernambuco, confirma que o consumismo, hoje, é um dos grandes desafios aos que combatem o trabalho infantil, especialmente nas cidades. “Existem crianças e adolescentes que são obrigados a trabalhar pela família ou são cooptados por terceiros nas ruas, mas muitos trabalham porque querem comprar bens que os pais não têm condições de lhes dar. Já que a maioria desses pais começou a trabalhar na infância, eles permitem e até estimulam que seus filhos façam o mesmo”, diz a auditora.
São muitos e graves os riscos para as crianças que desempenham atividades contidas na Lista TIP. No trabalho como vendedoras ambulantes nas ruas e outros logradouros públicos, por exemplo, elas estão sujeitas a violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; e a exposição à radiação solar, chuva, frio, acidentes de trânsito e atropelamento. Nas borracharias, são submetidas a esforços físicos intensos e expostas a produtos químicos, antioxidantes, plastificantes e calor. Na lida dos lava-jatos, crianças e adolescentes estão em constante contato com solventes, neurotóxicos, névoas ácidas e alcalinas. Já os que trabalham como carregadores em feiras livres estão sujeitos a padecer de bursites, tendinites, sinovites, escolioses, lordoses e outras doenças músculo-esqueléticas decorrentes do intenso esforço físico. “Esses pais [que estimulam os filhos a trabalhar] desconhecem os graves prejuízos que o trabalho precoce ocasiona aos seus filhos, como a dificuldade de aprender, a defasagem e a evasão escolar, os danos físicos ao corpo ainda em desenvolvimento e os danos psicológicos”, alerta Paula.
Dificuldades de fiscalização
Em 2012, segundo a auditora, foram fiscalizadas feiras livres em 65 municípios de Pernambuco, além das praias de Boa Viagem, no Recife, e Piedade, em Jaboatão dos Guararapes. Nos casos em que os empregadores foram identificados, todos foram notificados e autuados. No entanto, informa Paula, a maioria das crianças e adolescentes encontrados naqueles locais trabalhava com os pais ou, embora prestasse serviço a um terceiro, estava desacompanhada do empregador e não sabia informar seu endereço.
Não conseguir identificar quem explora a mão de obra infantil nas ruas e outros locais públicos é uma das grandes dificuldades dos fiscais do MTE. Nas feiras livres de municípios do Rio Grande do Norte, a auditora fiscal e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil do estado, Marinalva Cardoso Dantas, relata a mesma dificuldade de Paula. “Às vezes temos de inventar, dizer que não somos do Ministério do Trabalho para poder conversar com as crianças, senão elas correm, mentem para não dizer o nome dos pais.”
Para Paula Neves, a utilização de praias e outros logradouros públicos para o comércio deve ser regulamentada e fiscalizada pelo poder público municipal a fim de prevenir e coibir o uso da mão de obra infantil. “Condicionando, por exemplo, a autorização do uso do espaço público pelos barraqueiros e ambulantes à não utilização de mão de obra infantil”, sugere a auditora. Outras medidas importantes são a busca dessas crianças em situação de trabalho e sua inclusão em programas sociais e a realização de campanhas junto ao público em geral, especialmente com usuários de praias e feiras livres. “Que a sociedade pare de adquirir produtos e serviços das mãos de crianças e adolescentes que trabalham sob sol escaldante, descalços, expostos a riscos e diversos problemas de saúde decorrentes do trabalho precoce”, finaliza.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente
Famoso por ser uma das maiores celebrações populares do Brasil, carnaval de Salvador mascara exploração de crianças
Por Ana Maria Amorim e Lucas Ribeiro Prado
Foto de abertura: Adenilson Nunes/AGECOM
O carnaval de Salvador mobiliza anualmente 2 milhões de pessoas, sendo 600 mil turistas, segundo dados da Secretaria de Turismo da Bahia (Setur). A demanda por mão de obra é expressiva e as atividades vão de ocupações gerenciais ao trabalho informal. Cerca de 93 mil pessoas trabalham durante os festejos, conforme levantamento realizado em 2010 pela Secretaria de Cultura. Destes, 17% trabalham com comércio ambulante. Há jornalistas, cordeiros, profissionais de saúde e seguranças; e há crianças e adolescentes sendo explorados também.
O trabalho é irregular para cerca de 60% dos trabalhadores dessa época. Uma parcela considerável da mão de obra do carnaval é jovem, sendo 19,4% entre a faixa etária de 10 a 24 anos. A pesquisa mostra ainda que o perfil majoritário é masculino, de cor negra, acima de 25 anos e não migrante.
A preocupação com o trabalho infantil durante a maior festa popular do país motiva ações de diversas entidades desde pelo menos 1995. Uma dessas ações é o projeto Blitz Social, da Secretaria Municipal do Trabalho, Assistência Social e Direitos do Cidadão (Setad) de Salvador. Em 2011, a Blitz cadastrou 312 crianças e adolescentes que estavam trabalhando nos circuitos de carnaval na cidade.
Já em 2012, o número subiu para 521. Isso, entretanto, não significa necessariamente um aumento da incidência de trabalho infantil durante essa época do ano. Como não há uma clara sistematização e acompanhamento desses dados, eles podem ser interpretados como resultado de uma ampliação dos programas, que estariam alcançando mais crianças e adolescentes.
Combate
“O carnaval é um momento de trabalho”, afirmou a ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR) Maria do Rosário, que participou da cerimônia de lançamento da campanha “Solte a Voz no Carnaval”, em Salvador (BA). Com foco no combate à violência sexual e ao trabalho infantil, a iniciativa é desenvolvida em conjunto com entidades estaduais e municipais da Bahia.
Uma das intenções da mobilização é unir as ações realizadas por diversas organizações e criar um observatório que acompanhe os dados de trabalho infantil e exploração sexual durante a festa. Para a secretária de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza do Estado da Bahia, Mara Moraes de Carvalho, a iniciativa deve integrar autoridades, sociedade e famílias. “A campanha tem dois eixos: o preventivo e protetivo, integrando ações de conscientização e acolhimento para aqueles que precisam trabalhar no carnaval, como os ambulantes, e as crianças encontradas em estado de violação de direitos”, explica.
No caso da Bahia, a campanha enfrenta um desafio maior. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), em 2011 o estado registrou, na semana do levantamento, 363 mil pessoas na faixa etária dos 5 aos 17 anos exercendo algum tipo de trabalho (clique aqui para ver infográfico sobre a incidência de trabalho infantil nas diferentes regiões do Brasil). “A Bahia ainda é, da região Nordeste, o estado que tem os piores índices de trabalho infantil e registro de crianças em situação de risco. Muitas vezes a criança deixa de estudar para trabalhar e compor a renda familiar. Essa cultura ainda é muito forte aqui no Nordeste”, diz a promotora do Ministério Público do Estado da Bahia, Eliana Bloisi.
A criança como sujeito da festa
Na avenida, dentre os tantos blocos que fazem o carnaval de Salvador, está o tradicional bloco afro Ilê Aiyê, que atua na valorização da cultura afro na cidade e promove atividades de inclusão social. Participam crianças que saíram da situação de trabalho infantil para desenvolver atividades socioculturais no próprio carnaval. “Já trabalhei de vendedor de cerveja e de várias outras coisas com minha mãe, meu pai e minha irmã. Depois que entrei para o Ilê, eu nunca mais trabalhei no carnaval. O trabalho da criança tinha de acabar, elas tinham de ter uma oportunidade valiosa”, diz um dos integrantes, de 11 anos. “Eu achava o trabalho valioso, porque, se não trabalhar, não come”.
A atuação do Ilê com jovens e adolescentes envolve 120 crianças. “Um dos pré-requisitos é estar estudando, dedicando um turno à escola e outro às atividades do bloco. O turno integral ajuda a ocupar as crianças com outras atividades que não o trabalho degradante”, explica a coordenadora da Banda Mirim do Ilê Aiyê Jaciara Ferreira.
As lembranças de quando trabalhavam no carnaval expõem a desigualdade no acesso à festa. Outra criança, uma menina de 12 anos, associava a brincadeira na avenida como um benefício do trabalho que fazia antes de entrar para o bloco. “Minhas amigas acham muito divertido trabalhar no carnaval, porque, quando acaba a festa, elas podem subir no palco”, diz.
O relato evidencia que o trabalho infantil compõe a questão central da desigualdade econômica do país, que se reflete em todas as esferas, inclusive no reinado de Momo. O acesso ao lazer chega, antemão, como um anúncio do uso de sua mão de obra, e não como um direito fundamental. Ainda assim, ações como a do bloco Ilê, também realizada por outras entidades carnavalescas, tentam socializar o carnaval com essas crianças, que reconhecem a entrada no bloco como um momento crucial.
Erradicação do trabalho infantil
Segundo especialistas em trabalho infantil, a busca pela erradicação deve envolver diversas esferas da sociedade, pois o problema é decorrente das variadas situações de restrição nas quais as crianças são colocadas: falta de acesso à educação, saúde, lazer etc. O pano de fundo do trabalho infantil, portanto, é a sociedade em que a criança se encontra. “É preciso combater a miséria para se combater o trabalho infantil, pois o trabalho infantil está no centro da miséria. Criança não é mercadoria para ser vendida”, detalha a ministra Maria do Rosário.
Um dos objetivos da iniciativa é justamente desmistificar os argumentos que o senso comum usa para justificar o trabalho infantil, que impõe o conceito “trabalho versus marginalidade” para a trajetória da infância. “É preciso quebrar o mito de que criança tem de trabalhar para não ser ladrão e mostrar que o fato de trabalhar na infância não garante a construção do sujeito no positivo social. A criança deve começar a trabalhar na idade adequada”, defende Maria Moraes.
Educadas sob essa visão, as próprias crianças justificariam o trabalho como algo produtivo, em um contexto em que foram cerceadas do direito à educação, moradia digna e/ou lazer, garantias prescritas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Fazer valer esses direitos é um dos horizontes da nova campanha do estado da Bahia, que pretende trabalhar as ações em conjunto com algumas secretarias, órgãos públicos e organizações não governamentais. Outra medida destacada é o Disque 100, que recebe denúncias de trabalho infantil e exploração sexual durante todo o ano – somente em 2012, registrou 16 mil queixas. A intenção da iniciativa é ampliar a divulgação desse método.
A dificuldade encontrada por quem combate o trabalho infantil é sua invisibilidade. No carnaval, por exemplo, é possível contabilizar as crianças que estão nos circuitos – como vendedoras ambulantes e catadoras de material reciclável –, mas a organização da festa envolve diversas etapas não visíveis ao público, como a confecção de abadás e montagens de barracas, atividades não incluídas nos atuais estudos e levantamentos.
“O trabalho infantil está cada vez mais difícil de ser erradicado. Sua redução está cada vez mais lenta, porque está cada vez mais velado. É preciso criar novas formas de enfrentar o problema”, destaca Paula Fonseca, responsável pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da Organização do Internacional do Trabalho (Peti-OIT).
Para a menina ouvida pela reportagem, o problema não parece tão difícil de ser resolvido: “primeiro os grandes têm de trabalhar para depois a gente trabalhar quando crescer”.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente