Orçamento de meio milhão para novo matadouro está parado

Prefeito promete providências para acabar com trabalho infantil e alega que licenciamento atrasou novo matadouro municipal. Órgão responsável diz que não há registros de pedido 

Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Atenção: texto e imagens fortes a seguir

Enviado a Lagoa de Pedras (RN) – Desde 21 de janeiro de 2013, a Prefeitura de Lagoa de Pedras, cidade do interior do Rio Grande do Norte onde crianças trabalham no matadouro municipal, conta com um orçamento de R$ 502,125,00 para a construção de um novo abatedouro graças a convênio com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O projeto prevê a construção de instalações sanitárias adequadas, estação de tratamento de água e capacidade para 60 abates por semana (atualmente, segundo o informado pela Prefeitura ao Governo Federal, em média 42 animais são mortos todos os domingos). O dinheiro, no entanto, está parado.

O prefeito Raniere Cesar Amâncio da Silva (DEM) afirma que a demora deve-se ao processo de licenciamento ambiental, que, segundo ele, está sendo feito em conjunto com o Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (Emater). A reportagem entrou em contato com o departamento responsável pelo licenciamento de abatedouros do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte, que informou que não há registro de entrada de pedido de licenciamento para a obra, nem diretamente, nem em parceria com a Emater.

Questionado sobre o número de protocolo do pedido de licenciamento, o prefeito afirmou que, por estar em Natal, não tinha essa informação, mas garantiu que o pedido foi feito e que o novo matadouro ficará pronto até setembro de 2014. “O matadouro atual está realmente em péssimas condições, e temos de reconhecer que houve um erro [em relação ao trabalho infantil]. Vamos tomar providências imediatamente. Já aconteceu outras vezes, proibimos o pessoal, mas qualquer vacilo que a administração dá e os meninos voltam. É igual criança de rua, a gente tira, mas eles voltam”, diz o prefeito, que afirma que, além de reprimir, a prefeitura oferece programas sociais, com psicólogos e assistentes sociais.

Meninos de 12 anos trabalham cortando bois no matadouro municipal

Meninos de 12 anos trabalham cortando bois no matadouro municipal. Fotos: Daniel Santini

Sangue, carne e fezes espalhados colocam em risco saúde de crianças e adultos

Sangue, carne e fezes espalhados colocam em risco saúde de crianças e adultos

“Temos de tentar o máximo de soluções para acabar com isso. A gente orienta, mas o povo é difícil. A dificuldade que nós temos como gestores de municípios pequenos, de forma geral, são os pais. Eles proíbem os filhos de frequentar os programas que executamos”, afirma.

Problema regional
O emprego de crianças e adolescentes em matadouros está longe de ser exclusividade de Lagoa de Pedras. A auditora fiscal Marinalva Cardoso Dantas, que comandou a ação na cidade, já fiscalizou e registrou trabalho infantil em matadouros dos municípios de Acari, Bom Jesus, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Itaú, Jardim do Seridó, João Câmara, Lagoa Nova, Nova Cruz, São Paulo do Potengi, Tangará, Touros e Vera Cruz, entre outros. A estratégia de cobrar prefeitos, e, em alguns casos, em parceria com o Ministério Público Estadual, até responsabilizá-los judicialmente com abertura de processos, tem dado resultados.

Além de visitar Lagoa de Pedra, a reportagem esteve também no abatedouro de Brejinho (RN), onde ouviu relatos sobre o emprego de crianças e adolescentes na atividade, e no município de João Câmara (RN), um dos flagrados com trabalho infantil em matadouros em 2008.

Apesar do aviso de que é proibida a presença de crianças, feirantes relataram que os meninos costumam ficar no terreno ao lado do abatedouro de Brejinho (RN), esperando para trabalhar nos restos dos bois

Apesar do aviso de que é proibida a presença de crianças, feirantes relataram que os meninos costumam ficar no terreno ao lado do abatedouro de Brejinho (RN), esperando para trabalhar nos restos dos bois

O "fateiro" Reginaldo Raimundo da Silva ao lado dos escombros onde antes funcionava o antigo abatedouro municipal de João Câmara (RN), desativado após denúncia. Foto: Daniel Santini

O “fateiro” Reginaldo Raimundo da Silva ao lado dos escombros onde antes funcionava o antigo abatedouro municipal de João Câmara (RN), desativado após denúncia. Foto: Daniel Santini

Neste último, após a denúncia, o abatedouro público irregular foi desativado e destruído. No matadouro atual de João Câmara (RN), construído longe do centro urbano, são os adultos que trabalham como “fateiros”. “As condições mudaram muito, usamos equipamentos e é tudo muito mais limpo”, conta Reginaldo Raimundo da Silva, 36 anos, ao lado dos escombros em que funcionava o antigo matadouro. Ele conta que trabalha limpando tripas de bois na cidade desde os 10 anos de idade. “Agora estou recebendo um salário e comecei a cursar o ensino médio. Quero ser professor”, sonha.

Leia também: Violência crua, um flagrante de trabalho infantil em matadouro

* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Um perfil do trabalho infantil

Velho problema, novos desafios: Redução da pobreza inaugura segunda fase do combate ao trabalho infantil

 

O Brasil cresce e tira famílias da pobreza, mas o trabalho de crianças e adolescentes persiste como marca da nossa sociedade. Agora, ele avança para as classes médias e atividades urbanas

 

Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil

 

Em dez anos, o Brasil tirou quase 530 mil crianças e adolescentes de situações de trabalho e os devolveu às suas atividades de direito: estudar, brincar e se desenvolver. Outros 3,4 milhões de crianças e adolescentes de 10 a 17 anos ainda trabalham no país, segundo a última análise do IBGE, baseada no Censo de 2010.

Em estimativa mais abrangente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, no ano de 2011, são 3,6 milhões de crianças de 5 a 17 anos trabalhando – ou 8,6% da população nessa faixa de idade.*

Principal região de aplicação das políticas de combate à pobreza, o Nordeste apresentou os melhores índices de redução do trabalho infantil entre 2000 e 2012. Foto: Leonardo Sakamoto

A modesta redução de 13,4% no número de crianças e adolescentes trabalhando apontada pelo Censo entre 2000 e 2010 poderia ser um alento, não fossem alguns poréns. Justamente na faixa mais vulnerável dessa população – as crianças de 10 a 13 anos, para quem qualquer tipo de trabalho é proibido –, a ocorrência do problema chegou a aumentar 1,5% (são 710 mil crianças nessa idade, quase 11 mil a mais que em 2000).

No levantamento da PNAD, em todo o Brasil havia 89 mil crianças de 5 a 9 anos e 615 mil de 10 a 13 anos trabalhando na semana da pesquisa – mais de 700 mil crianças no total, o que equivale a pouco menos que a população da cidade de João Pessoa.

A mão de obra de quase 2,7 milhões de jovens entre 14 e 17 anos, apesar de menos freqüente que há dez anos (os adolescentes que trabalhavam eram então 3,2 milhões), é empregada de maneira irregular e em atividades perigosas. Segundo a legislação brasileira, jovens de 14 e 15 anos só podem trabalhar na condição de aprendizes; os de 16 e 17 anos, em atividades que não sejam perigosas ou degradantes, protegidos por uma série de condições.

Novo perfil do trabalho infantil

Se comparada a condição atual à do início dos anos 90, quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT) começou a monitorar a questão no Brasil, o trabalho infantil hoje é mais urbano e menos rural e atinge, na média, crianças mais velhas que há 20 anos. Essas crianças enfrentam, em sua maioria, uma dupla jornada de escola e trabalho com a própria família, que nem sempre está em situação de pobreza.

“Se anteriormente a pobreza era um dos determinantes do trabalho infantil, hoje esta relação está menos clara”, analisa Renato Mendes, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da OIT no Brasil. “Quase 40% das crianças e jovens que trabalham não estão em famílias que vivem abaixo da linha de pobreza.”

O trabalho infantil e juvenil migrou para áreas urbanas, especialmente na informalidade, em atividades degradantes. Foto: Leonardo Sakamoto

Isso denota, na opinião de Renato, uma mudança de motivação, principalmente por parte dos adolescentes. “Antes o jovem trabalhava para complementar a renda básica da família, hoje trabalha para ter acesso aos bens resultantes do desenvolvimento, como um celular ou uma roupa de marcar. Muitas vezes o trabalho infantil e juvenil está mais ligado à necessidade de inclusão social e menos à sobrevivência”, afirma.

A posse de bens de consumo e o trabalho precoce vistos como forma de inclusão social evidenciam que falta oferta de atividades socioculturais para crianças e jovens. Parte desse vazio poderia ser preenchido com acesso a escola de qualidade e à convivência com outras crianças em espaços de cultura, lazer e esporte – modelo que se convencionou chamar de “educação em tempo integral”.

“Existe uma visão equivocada de que crianças e adolescentes têm que trabalhar. Uma frase que ouvimos muito é: ‘Melhor a criança trabalhar do que roubar’, como se não houvesse uma terceira opção”, diz o promotor Carlos Martheo Guanaes, membro auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), organizador do último seminário no Judiciário para debater o tema, em agosto deste ano. A abordagem da educação em tempo integral nas futuras políticas públicas para as famílias seriam a principal aposta para processar essa mudança cultural.

“Houve no Brasil, nos últimos cinco ou seis anos, uma perda de foco no combate ao trabalho infantil. Até pouco tempo se acreditava que o problema todo era reduzir a pobreza, que a transferência de renda bastaria”, avalia Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fundo Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). Hoje se sabe, segundo ela, que o problema é mais complexo que a pobreza material.

Embora reconheçam que a melhoria da renda dos brasileiros, em grande parte como consequência da ampliação do programa Bolsa Família, tenha impactado positivamente na redução do trabalho infantil, a estratégia dada hoje como mais efetiva envolve o tripé transferência de renda, escola de qualidade e oferta de políticas educacionais, culturais e esportivas para crianças e adolescentes.

“É preciso empoderar as famílias para que elas cumpram suas obrigações com as crianças. Os programas de transferência de renda são um marco positivo da última década, expressivo num primeiro momento. Mas é preciso também oferecer a educação integral, para convencer os pais de que as crianças estarão em segurança, em atividades adequadas para sua idade, enquanto eles trabalham”, resume Isa Maria.

Realidades regionais

Estudo dos microdados dos censos do IBGE de 2000 e de 2010 feito pela OIT permitiu identificar em quais regiões do país a atual política de redução do trabalho infantil surtiu mais efeito.

A única região onde todos os Estados registraram redução do número de crianças de 10 a 13 anos trabalhando foi o Nordeste – queda de 14,96% nessa faixa de idade, e de 23,28% entre crianças e adolescentes de 10 a 17 anos.

“O desempenho do Nordeste mostrou a eficácia da política pública de transferência de renda, já que é a região onde ela foi melhor implementada. Isso explica também porque, hoje, não há crianças trabalhando na maioria das famílias pobres do Brasil”, afirma Renato, da OIT. Ainda assim, a região concentra cerca de 30% das crianças e adolescentes que trabalham no Brasil, grande parte deles na agricultura familiar ou em serviços domésticos. “O Nordeste era a região onde o problema era mais crítico, daí também a relevância dos resultados positivos”, completa Isa Maria.
Em todas as outras regiões do Brasil, o número de crianças entre 10 e 13 anos trabalhando aumentou. Nos Estados do Norte e do Centro-Oeste, esse aumento é de mais de 25%.

Com exceção de Rondônia, todos os Estados da região Norte viram o número de crianças e adolescentes que trabalham aumentar entre 2000 e 2010. “O Norte é uma região em que ainda há dificuldade de acesso dos instrumentos da política pública federal, com municípios longínquos, escolas mais distantes dos domicílios, períodos de chuva, transporte difícil. Nessa região, a política pública precisa de uma contextualização melhor”, analisa Renato. Predominam nesta região, segundo ele, o trabalho de crianças no extrativismo, agricultura e no trabalho doméstico.

Nas regiões Centro-Oeste e Sul, onde a agroindústria se desenvolve,o que preocupa é principalmente o emprego de adolescentes nas fazendas em atividades perigosas, listadas entre as piores formas de trabalho infantil reconhecidas pelo Brasil em 2008 – como a operação de máquinas e veículos agrícolas, manuseio de defensivos químicos ou a extração e colheita de culturas que desprendem resíduos nocivos à saúde.

“A taxa de ocupação de adolescentes no Centro-Oeste e no Sul é altíssima, e caiu pouco em comparação com outras regiões do país”, avalia Renato. Isa Maria concorda: o trabalho infantil na agricultura familiar, típico da cultura dos imigrantes, persiste e migrou para o agronegócio. “O trabalho desprotegido desses jovens cria um desenvolvimento irresponsável na região”, diz ela.

Na região Sudeste, de maior concentração urbana, e nas regiões metropolitanas do país, crianças e adolescentes trabalham principalmente no setor de comércio e serviços informais – como ambulantes, no trabalho doméstico, no setor de transportes, confecção, manutenção e outras atividades terceirizadas. Daí a importância, alertam os especialistas, de as empresas conhecerem sua cadeia produtiva e não pactuarem com a violação dos direitos expressos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

“Na década de 90, as regiões Sul e Sudeste foram as que registraram melhor desempenho no combate ao trabalho infantil, mas na década seguinte foram as que menos municipalizaram os instrumentos da política pública federal. Por isso, o índice voltou a crescer em algumas faixas de idade ou não diminuiu tanto quanto o esperado”, diz Renato. De acordo com ele, o retrocesso da questão no Sudeste – onde aumentou mais de 15%, entre 2000 e 2010, o número de crianças de 10 a 13 anos que trabalham – deve-se à omissão dos governos locais em implementar os programas federais direcionados, como o Bolsa Família e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), ou em elaborar uma política regional para substituí-los.

Na avaliação de Renato, Isa Maria e do promotor Carlos Martheo, o Brasil se encontra num momento decisivo para repensar as políticas de combate ao trabalho infantil e atacar o problema em toda a sua complexidade.

Campanha lançada pela OIT Brasil e pelo FNPETI no último dia 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, busca convencer famílias e empresários de que explorar ou conviver com o trabalho infantil é uma violação dos direitos humanos. “Não é possível que, em plena fase de desenvolvimento, com o Brasil entre as oito maiores economias do mundo, o problema persista. É uma situação epidêmica, que demanda ação imediata”, conclui Renato.

 

* Enquanto a PNAD é uma pesquisa feita anualmente por amostragem (em domicílios de 1.100 municípios brasileiros, no ano de 2011), o Censo tenta se aproximar do universo total de famílias entrevistando um número consideravelmente maior de pessoas, em todas as cidades brasileiras.

Apesar de o Censo não considerar o trabalho de crianças menores de 10 anos,de  fora da População Economicamente Ativa (PEA), é um instrumento importante de análise das políticas sociais por retratar o quadro do mercado de trabalho brasileiro com mais precisão.

Sempre que não for mencionada a PNAD no texto, os dados se referem ao Censo.