Categoria:Estatuto da Criança e do Adolescente
No primeiro trimestre, fiscalização flagrou exploração de 123 crianças e adolescentes em Goiás, algumas submetidas a trabalhos degradantes, perigosos e insalubres
Por Daniel Santini, da Repórter Brasil
Crianças servindo cerveja e outras bebidas em bares durante a madrugada. Adolescentes operando máquinas e produtos químicos sem nenhuma proteção. Meninos de até 10 anos cumprindo longas jornadas para ganhar menos do que um salário mínimo, sem tempo para estudar ou descansar. Essas são algumas das histórias por trás do crescimento do número de flagrantes de exploração de crianças e adolescentes, identificado no primeiro trimestre de 2013 em Goiás.
Levantamento divulgado nesta semana pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE/GO) indica que o trabalho infantil aumentou significativamente no estado este ano. De 1º de janeiro até 10 de abril, foram identificadas 123 vítimas, sendo 79 delas com idades entre 10 e 15 anos. Se a proporção se mantiver ao longo do ano, o número de flagrantes deve superar ainda no primeiro semestre o total de 2012, quando foram encontradas 219 crianças e adolescentes exploradas, e chegar a uma quantidade tão significativa quanto a de 2011, quando foram identificados 571 casos. Para comparação, em 2009 foram 93 e, em 2010, 203.
De acordo com Arquivaldo Bites, superintendente regional do Ministério do Trabalho e Emprego em Goiás, não aconteceram operações especiais ou ações específicas que justifiquem aumento tão significativo. Neste vídeo, produzido a partir de imagens da SRTE/GO, é possível ter uma ideia das condições em que os flagrantes aconteceram:
Imagens: SRTE/GO – Edição: Anali Dupré
“Nas cidades pequenas, tendo em vista a dificuldade de fazer fiscalizações constantes, muitos empresários pensam que não precisam observar a lei e temos constatado irregularidades constantes”, explica, ressaltando que o número é um indicativo da gravidade da situação. As fiscalizações em questão aconteceram em áreas urbanas em atividades tão diferentes quanto restaurantes, mecânicas, bares, confecção de tapeçarias e lavanderias. “São crianças trabalhando em condições insalubres, em serviços noturnos, de periculosidade, carregando peso”, afirma.
Perfil das vítimas
No Brasil, não é permitido nenhuma forma de trabalho infantil para crianças com idade até 14 anos. Adolescentes com mais de 14 anos podem trabalhar na condição de aprendiz. “É comum a ideia de que se o jovem não trabalha vai virar vagabundo. Nós não concordamos com essa assertiva, é uma ideia ultrapassada”, afirma o superintendente. “A criança que trabalha em muitos casos acaba tendo o crescimento emocional, educacional e pessoal comprometido. Lugar de criança é na escola ou no prazer”, completa.
“Estamos falando de exploração para fins comerciais. Antigamente, crianças trabalhavam em serviços familiares, acompanhando os pais na zona rural, sem fins lucrativos em atividades de subsistência. Nenhum dos flagrantes foi assim, todos tinham um fundo empresarial. Lugar de criança não é no trabalho, ainda mais na situação de explorado. Nenhum dos garotos tinha carteira profissional, registro de aprendiz, direito de estudar ou descansar. Todos estavam com carga horária excessiva, muitos em locais insalubres e perigosos”, ressalta.
Diante desse problema, as autoridades do estado estão articulando o Fórum Goiano para Erradicação do Trabalho Infantil, frente que deve reunir representantes de diferentes pastas do governo estadual, prefeituras e Ministério Público, além de empresários e integrantes da sociedade civil.
Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
Por que parcela significativa da sociedade brasileira ainda defende trabalho infantil e minimiza a gravidade desta forma de exploração?
Por Fernanda Sucupira, da Repórter Brasil
Ainda que a luta pela erradicação do trabalho infantil e a consciência sobre esse problema social venham crescendo nas últimas décadas, quem atua na área costuma se deparar com argumentos de pessoas de diferentes setores da sociedade a favor das atividades laborais de crianças e adolescentes.Uma das principais justificativas é o de que é melhor que meninos e meninas estejam trabalhando do que na rua, sem fazer nada, vulneráveis ao uso de drogas e à criminalidade.
Segundo Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional para a Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (FNPeti), essa ideia é uma falácia. “Várias formas de trabalho infantil favorecem que crianças e adolescentes sejam empurrados para o crime organizado, para o tráfico de drogas, para o tráfico de pessoas, para a exploração sexual. Muitas vezes nesse contexto são submetidos a xingamentos, espancamentos, violência, abuso sexual”, exemplifica.
Além disso, essa ideia não se confirma quando são feitas pesquisas com adultos que estão encarcerados ou com adolescentes em medidas socioeducativas. “A imensa maioria dos presidiários trabalhou na infância, e esses adolescentes quando cometeram o delito já haviam trabalhado ou estavam trabalhando. De que forma o trabalho infantil preveniu a marginalidade deles?”, pergunta Marinalva Cardoso Dantas, auditora fiscal do trabalho em Natal (RN). Para ela, é justamente trabalhando que eles acabam caindo na criminalidade, é o trabalho que os coloca na rua.
Outra concepção bastante presente e complementar à anterior é a de que o trabalho dignifica o ser humano, molda o caráter, forma valores, portanto, é benéfico a crianças e adolescentes. É um valor cultural que, pelo menos no que se refere à população infanto-juvenil, também não condiz com a realidade. “Nosso contra-argumento é de que para crianças e adolescentes, em idade de plena escolarização, cumprir a jornada escolar, ser pontual, realizar atividades, fazer as tarefas e estudar, tudo isso são condições que favorecem a formação do caráter”, defende a secretária executiva do FNPeti.
Ela afirma que há pouca valorização da educação integral, das práticas esportivas, culturais, de lazer, do exercício da criatividade e do lúdico, atividades que contribuem muito mais para o desenvolvimento físico e emocional da criança do que o trabalho infantil, que impõe uma rotina de adulto e subtrai a condição de infância. No entanto, segundo Oliveira, é educativo e recomendável que crianças e adolescentes participem com suas famílias de uma divisão solidária de tarefas, o que os prepara para a vida, fortalece o sentimento de solidariedade, de responsabilidade para com o ambiente em que se vive.
Muitos utilizam sua própria história, ou a história de pessoas proeminentes, para exemplificar os efeitos positivos ou, no mínimo, nulos do trabalho infantil em uma trajetória de sucesso. É comum inclusive entre os políticos utilizar esse recurso, apontando pessoas como o ex-presidente Lula para mostrar que essas atividades não acarretam prejuízos para o futuro das crianças. “Essa é uma irresponsabilidade grande dos brasileiros porque essas pessoas querem nos convencer de que são bem sucedidas porque trabalharam na infância, caso contrário seriam fracassadas”, afirma a auditora fiscal de Natal. Dantas conta que ela própria já foi confrontada inúmeras vezes, inclusive em entrevistas jornalísticas, por pessoas que diziam que trabalhavam desde pequenas e que não havia nenhum problema nisso.
Se em alguns casos o trabalho infantil não surte efeitos nocivos, essa não é a regra para a maioria dos que são obrigados a trabalhar precocemente. “Crianças que trabalham ficam com mil problemas psicológicos, autoestima baixa e não vão para a escola. Depois têm que aceitar tudo o que ninguém quer, o que não presta, trabalhos perigosos, desagradáveis, porque não se prepararam”, diz Dantas. Para a secretária executiva do FNPeti, não se pode deixar que algumas exceções sejam vistas como regra. “Quem mais da família do Lula que passou pelo trabalho infantil teve a projeção que ele tem?”, questiona. “Foi a militância sindical e não o trabalho infantil o que formou o Lula. Foi apesar do trabalho infantil e não por causa dele”, avalia.
Preconceito de classe
Para Rafael Dias Marques, da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (MPT), na visão de quem defende essa prática, o trabalho é um mal menor. “Essas pessoas não têm a concepção de que é altamente nocivo, de que pode trazer os mesmos prejuízos que as drogas e o crime”, afirma. Ele acredita que elas não sabem das dificuldades de aprendizado causadas pelo trabalho infantil; do grande risco que crianças e adolescentes têm de se acidentar nessas atividades. Não levam em conta que são retirados do convívio familiar, afastados do lazer, da brincadeira, do ócio. “A sociedade entende o trabalho como solução para a criança pobre, no lugar da educação, de garantir a proteção integral por parte do Estado”, completa o procurador do trabalho.
Isso revela que nesse discurso de defesa do trabalho infantil está presente também um preconceito de classe, uma discriminação em relação à população mais pobre. Num momento em que filhos e filhas das classes altas estão adiando cada vez mais a entrada no mercado de trabalho, preferindo antes concluir cursos de graduação, pós-graduação, e temporadas de estudos no exterior, para conseguir postos mais bem pagos, muitos defendem que os filhos e filhas das classes baixas ingressem nele cada vez mais cedo.
“Quando se trata do filho alheio, é uma verdade, mas só para o pobre, para grupos marginalizados. Para meu filho, educação integral: de manhã na sala de aula e à tarde aulas de inglês, balé, judô, natação. É uma demagogia daqueles que sentem na criança do outro uma ameaça à sua própria estabilidade. O outro, por ser pobre, a priori é um delinquente em potencial, só tem duas alternativas na vida, trabalhar ou ser delinquente. Mas a criança tem direito a outra via”, defende Renato Mendes, coordenador do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Reações contra o enfrentamento ao trabalho infantil
Não são raros os casos de ameaças aos auditores fiscais do trabalho em todo o Brasil durante as fiscalizações de casos de trabalho infantil, pelos familiares, pelos empregadores e até pelas próprias crianças e adolescentes, que entendem que estão sendo prejudicados pela atuação do Estado para eliminar essa prática. “Sempre somos ameaçados pelas mães quando fiscalizamos, elas são agressivas. E pelos empregadores também, que têm medo de perder a mão de obra barata, não têm nenhum interesse na criança”, relata Dantas.
Como parte dessa reação, são frequentes as propostas de emenda constitucional (PEC) que vão na contramão da erradicação do trabalho infantil, propondo a redução da idade mínima para entrar no mercado de trabalho. Uma PEC com esse conteúdo (268/2008), apresentada pelo deputado federal Celso Russomanno (PRB-SP), foi barrada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), em 2009, por ser considerada inconstitucional. Afirmava que “o impedimento ao trabalho faz com que os jovens busquem a saída de seus problemas na droga, no furto, no trabalho informal, no subemprego, na mendicância e na prostituição”.
Atualmente, duas PECs que propõem a redução da idade mínima para 14 anos se encontram na CCJ, uma do deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR) e outra do deputado federal Onofre Santo Agostini (DEM-SC), respectivamente PEC 18 e PEC 35, ambas de 2011. Eles defendem que o trabalho infantil não prejudica os estudos e, havendo acompanhamento, “só trará benefícios, tendo em vista que além de gerar rendimentos para a família será um fator positivo para a sua formação moral e educacional”.
O procurador do trabalho Marques acredita que elas também serão consideradas inconstitucionais por dois motivos. Primeiro porque tratados internacionais adotados pelo Brasil proíbem a redução da idade mínima, como a Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2001. Em segundo lugar, os direitos fundamentais são cláusulas pétreas da Constituição Brasileira, por isso não podem ser alterados por PECs, somente através da formação de uma nova assembleia constituinte.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente