Exploração sexual de adolescentes indígenas

Rede de exploração sexual de São Gabriel da Cachoeira (AM) passa a ser investigada em âmbito federal. Vulnerabilidade de meninas indígenas preocupa

    Por Daniel Santini, da Repórter Brasil

O caso de exploração de crianças e adolescentes indígenas em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, passou à esfera federal. Além da investigação aberta há cerca de um mês a pedido do Ministério Público Federal, agora a Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República e os deputados federais da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Tráfico de Pessoas  passaram a acompanhar o caso. Na semana passada, a ministra Maria do Rosário visitou o centro de acolhida Kunhantãi Uka suri (Casa da Menina Feliz), onde vítimas de abusos receberam apoio de freiras salesianas. Os deputados, por sua vez, não só aprovaram requerimento para uma diligência na cidade, como também a realização de uma audiência pública para debater o problema.

As primeiras denúncias da exploração foram feitas em 2008, mas nem o Ministério Público Estadual, nem Polícia Civil, conseguiram desmantelar a rede de pedofilia local. As violências cometidas ganharam repercussão nacional neste mês, após notícias de que a virgindade de uma menina havia sido vendida por R$ 20.

Meninas ameaçadas temem represálias. Imagens: Repórter Brasil

As autoridades ouviram depoimentos de 12 garotas e listaram nove suspeitos. Quem acompanha a questão na região alerta, no entanto, que a rede é bem maior. “Tem muito mais do que os 12 casos. Há muitas meninas amedrontadas por essas pessoas, meninas que se calam diante de ameaças”, diz o bispo Edson Taschetto Damian, que afirma que freiras da congregação que recebeu as vítimas vêm sofrendo ameaças e perseguição.

“Elas estão em contato com essas meninas mais pobres e exploradas. Acabam ouvindo e descobrindo os casos, que não são poucos. Os órgãos judiciários locais estão pouco presentes. Embora tenha Tribunal de Justiça e Procuradoria do Estado [em São Gabriel da Cachoeira], os responsáveis vivem em Manaus e permanecem poucos dias na cidade”, completa. De acordo com o religioso, a participação do procurador Júlio José Araújo Junior, do Ministério Público Federal, foi fundamental para que a investigação passasse ao âmbito federal.

Objeto sexual
“Por que existe essa exploração? Porque para alguns brancos o índio é objeto, não conta, não tem dignidade ou valor. Eles fazem o que bem entendem”, diz o bispo Edson. O crescimento populacional acelerado no município é apontado como um dos fatores que agravaram a vulnerabilidade das meninas indígenas. O número de moradores do município encravado na floresta, na fronteira do Brasil com Venezuela e Colômbia, quase dobrou em duas décadas. De 23.140 pessoas em 1991, passou para 37.896 em 2010, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mais de 90% dos moradores são indígenas.

Em 2008, a eleição do prefeito Pedro Garcia (PT) e seu vice André Baniwa (PV), primeiros índios a assumirem o poder municipal, acelerou a urbanização. Muitas famílias trocaram aldeias pela cidade, esperançosas em relação a acesso a mais políticas e serviços públicos. A desigualdade social, no entanto, não mudou. Segundo os dados mais recentes do IBGE, enquanto a renda média mensal dos indígenas é de R$ 601, a da população de cor branca é de R$ 2.387.

A relação entre urbanização acelerada em municípios indígenas e exploração sexual infantil não é exclusividade do município no norte do Amazonas. Em julho do ano passado, em encontro do Grupo de Estudos sobre Infância Indígena e Trabalho Infantil da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), integrantes manifestaram a preocupação em relação a este tema. Dernival dos Santos, representante dos índios Kiriris, afirmou na ocasião que a saída de jovens das aldeias para as cidades trazia riscos de exploração pela prostituição e alcoolismo.

Diante da exposição das crianças indígenas ao risco de exploração sexual, os integrantes apontaram a necessidade de estratégias prioritárias para lidar com o problema.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

Trabalho infantil e vulnerabilidade

Crianças vítimas de trabalho infantil estão mais sujeitas a ter problemas com aproveitamento escolar, saúde e socialização

Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil

“Trabalho para me preparar para a vida”. Essa frase, dita por um menino de 14 anos, impressionou a coordenadora de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) do Brasil, que conduzia encontros para um estudo sobre exclusão escolar no país. “Aquilo acabou comigo. Não deveria ser a escola, a infância a preparar para a vida?”, pergunta Maria de Salete Silva.

Para as abordagens mais modernas de políticas públicas para a infância, o acesso à educação e a erradicação do trabalho infantil são um desafio conjunto. “Sabemos hoje que não basta haver escola, é preciso garantir a universalização da matrícula e a aprendizagem adequada, na idade certa. Com uma realidade de trabalho infantil, não há como fazer isso”, diz Maria de Salete.

O desempenho e o abandono escolares são indicadores importantes da vulnerabilidade na infância, que, em muitos casos, no Brasil, está ligada ao trabalho precoce. Por afastar a criança da escola, a vulnerabilidade infantil também se converte facilmente em vulnerabilidade de adultos. Um estudo da OIT apontou, por exemplo, que mais de 90% dos trabalhadores brasileiros resgatados de situação análoga à de escravidão foram também explorados durante a infância.

Para proteger a infância e a adolescência, a legislação brasileira proíbe qualquer trabalho para crianças com menos de 14 anos e reconhece o direito do adolescente à profissionalização, desde que com “respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”, segundo o artigo 69 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

De acordo com Renato Mendes, coordenador de erradicação do trabalho infantil da OIT e um dos principais estudiosos do tema no Brasil, são três os aspectos do desenvolvimento individual afetados pelo trabalho infantil: o aproveitamento escolar, a saúde e a socialização.

Fotos: João Roberto Ripper / Imagens Humanas

Educação

No estudo da Unicef, conduzido simultaneamente em mais de 20 países, concluiu-se que o trabalho infantil contribui duplamente para a exclusão escolar: de forma direta, no caso das crianças que deixam a escola para trabalhar; e de forma indireta, porque o trabalho prejudica o desempenho escolar, e o aluno com defasagem de aprendizado deixa a escola mais facilmente. “O traballho infantil e o atraso escolar são os fatores universais da exclusão escolar, em todos os países”, concluiu Salete.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) permite medir o impacto do trabalho na defasagem escolar das crianças brasileiras. O doutorado da pedagoga Amélia Artes analisou dados da PNAD de 2006 relativos a crianças de 10 a 14 anos e constatou que o trabalho tem impacto uniforme sobre os alunos dessa faixa etária, meninos e meninas.  “Prejudica o desempenho tanto no caso dos meninos, que trabalham mais fora de casa, quanto no caso de meninas, que fazem mais trabalho doméstico”, explica Amélia. A tese dela investigou se o trabalho fora de casa, estatisticamente mais frequente entre meninos, poderia ser um fator que contribuiu para o pior desempenho deles.

A pesquisa encontrou defasagem idade-série com maior frequência entre as crianças que trabalham: em 2006, 68,4% dos meninos e 49,4% das meninas que trabalhavam estavam atrasados na escola, enquanto esse percentual cai para 50,5% e 41,3%, respectivamente, entre meninos e meninas que não trabalham.

No Brasil, segundo relatório da Unicef, publicado em agosto deste ano, são 3,6 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola. Para eles, frequentar a escola seria obrigatório, de acordo com a legislação brasileira. “Não se pode chamar isso de acesso universal à educação, temos insistido em derrubar esse mito no Brasil. Mesmo na faixa do Ensino Fundamental (dos 6 aos 14 anos), em que 98% estão matriculados, a parcela dos 2% fora da escola representa mais de 600 mil crianças”, diz Maria Salete.

Como os dois grandes fatores determinantes da exclusão, figuram o trabalho infantil e o atraso escolar. Por isso, universalizar a matrícula sem investir na qualidade da escola e no acompanhamento adequado da criança é “enxugar gelo”, nas palavras da representante do Unicef. “As escolas poderiam se envolver muito mais no combate ao trabalho infantil e à vulnerabilidade. Elas precisam sentir que também são parte da rede de atenção e do sistema de garantias à criança”, afirma.

Saúde

Um exemplo da combinação de esforços vindos de várias áreas para a erradicação do trabalho infantil é um termo de cooperação assinado entre o Ministério da Saúde e o Ministério Público do Trabalho (MPT) no final de 2010. Desde 2004, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem procedimentos para identificar se trabalham os menores de 18 anos atendidos na rede pública de saúde. O acordo com o MPT permitiu mais eficiência no encaminhamento dessas crianças e jovens à rede de proteção local.

Carmen Silveira, coordenadora de vigilância da saúde do trabalho no Ministério da Saúde, integra ainda grupos de trabalho interministerais que estudam maneiras de melhorar essa articulação. Segundo ela, os postos de atendimento emergencial têm condições de identificar se crianças e jovens se acidentaram ou desenvolveram alguma doença em função do trabalho.

Entre 2007 e 2011, levantamento preliminar do SUS identificou mais de 7,5 mil casos no país, muitos envolvendo acidentes de trabalho doméstico ou no campo. Segundo Renato Mendes, da OIT, acidentes de trabalho atingem duas vezes mais crianças que adultos, já que elas não atingiram a maturidade do de desenvolvimento físico e motor. “A visão periférica, por exemplo, só chega ao fim de seu desenvolvimento entre os 18 e 21 anos. Descobriu-se que, por esse motivo, é altíssimo o índice de acidentes entre crianças e adolescentes que trabalham na colheita do babaçu, uma árvore espinhenta. Algumas são feridas nos olhos e perdem à visão”, diz.

Na lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, que o Brasil promete erradicar até 2015, constam atividades consideradas inadequadas por oferecerem claros riscos à saúde e ao desenvolvimento físico de adolescentes. “Há incidência de câncer de pele, por exemplo, entre crianças que trabalham nas praias, no campo ou nas feiras, expondo-se ao sol por longos períodos e sem proteção”, conta Carmen.

Clique no mapa para ver infográfico interativo com a distribuição do trabalho infantil no Brasil

Socialização

Ainda do ponto de vista da saúde, a convivência de crianças entre si é importante para seu pleno desenvolvimento. “O contato com o lúdico é importante”, diz Carmen. O “lúdico”, essencial ao desenvolvimento infantil, envolve contato com outras crianças e tempo de brincadeira, que são roubados por uma jornada de trabalho.

Crianças e adolescentes em condições de descobrir e exercitar seus potenciais tornam-se adultos mais preparados para a vida, concordam especialistas de várias áreas, especialmente em sociedades e mercados de trabalho cada vez mais exigentes. O economista Márcio Pochmann, especialista em estudos do trabalho, defende, por exemplo, que o ingresso no mercado de trabalho moderno deveria acontecer depois de um ciclo de educação intensiva e formação de personalidade que, em geral, só vai se concluir depois dos 20 anos.

Pela experiência de Salete, do Unicef, é uma questão delicada convencer a sociedade de que trabalho não só não ajuda, como também atrapalha o desenvolvimento da criança. “Não é que os pais não valorizem a formação do filho. Muitos querem que os filhos estudem, tenham oportunidades que eles próprios não tiveram, mas não conseguem entender que trabalho desprotegido não é formação”, afirma. “É comum achar que o menino que trabalha no campo está aprendendo o ofício do pai, e que a menina que olha os irmãos treina para um dia cuidar dos próprios filhos”.

A defasagem escolar, como consequência do trabalho infantil, também é um problema impedindo a socialização adequada das crianças e adolescentes com colegas da mesma idade. “Nos últimos anos do Ensino Fundamental, isso fica muito evidente. Metade dos alunos de 15 a 17 anos, que deveriam estar no ensino Médio, estão no Ensino Fundamental”, diz Salete, do Unicef.

O trabalho desprotegido na faixa etária dos 15 aos 17 anos tem preocupado, e equacionar o problema da educação de qualidade é fundamental para manter o interesse dos jovens na escola. “Acontece muito: o adolescente, desanimado, para de estudar para fazer algum trabalho que lhe parece mais atraente.  Aí ele volta no ano seguinte para a Educação de Jovens e Adultos. Como esperar que o adolescente sinta que a escola é lugar para ele, se ora ele é tratado como uma criança grande, ora como um adulto pequeno?”, pergunta Salete.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

A naturalização do trabalho infantil

Por que parcela significativa da sociedade brasileira ainda defende trabalho infantil e minimiza a gravidade desta forma de exploração?

Por Fernanda Sucupira, da Repórter Brasil

Ainda que a luta pela erradicação do trabalho infantil e a consciência sobre esse problema social venham crescendo nas últimas décadas, quem atua na área costuma se deparar com argumentos de pessoas de diferentes setores da sociedade a favor das atividades laborais de crianças e adolescentes.Uma das principais justificativas é o de que é melhor que meninos e meninas estejam trabalhando do que na rua, sem fazer nada, vulneráveis ao uso de drogas e à criminalidade.

Segundo Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional para a Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (FNPeti), essa ideia é uma falácia. “Várias formas de trabalho infantil favorecem que crianças e adolescentes sejam empurrados para o crime organizado, para o tráfico de drogas, para o tráfico de pessoas, para a exploração sexual. Muitas vezes nesse contexto são submetidos a xingamentos, espancamentos, violência, abuso sexual”, exemplifica.

Além disso, essa ideia não se confirma quando são feitas pesquisas com adultos que estão encarcerados ou com adolescentes em medidas socioeducativas. “A imensa maioria dos presidiários trabalhou na infância, e esses adolescentes quando cometeram o delito já haviam trabalhado ou estavam trabalhando. De que forma o trabalho infantil preveniu a marginalidade deles?”, pergunta Marinalva Cardoso Dantas, auditora fiscal do trabalho em Natal (RN). Para ela, é justamente trabalhando que eles acabam caindo na criminalidade, é o trabalho que os coloca na rua.

Outra concepção bastante presente e complementar à anterior é a de que o trabalho dignifica o ser humano, molda o caráter, forma valores, portanto, é benéfico a crianças e adolescentes. É um valor cultural que, pelo menos no que se refere à população infanto-juvenil, também não condiz com a realidade. “Nosso contra-argumento é de que para crianças e adolescentes, em idade de plena escolarização, cumprir a jornada escolar, ser pontual, realizar atividades, fazer as tarefas e estudar, tudo isso são condições que favorecem a formação do caráter”, defende a secretária executiva do FNPeti.

Fotos: João Roberto Ripper / Imagens Humanas

Ela afirma que há pouca valorização da educação integral, das práticas esportivas, culturais, de lazer, do exercício da criatividade e do lúdico, atividades que contribuem muito mais para o desenvolvimento físico e emocional da criança do que o trabalho infantil, que impõe uma rotina de adulto e subtrai a condição de infância. No entanto, segundo Oliveira, é educativo e recomendável que crianças e adolescentes participem com suas famílias de uma divisão solidária de tarefas, o que os prepara para a vida, fortalece o sentimento de solidariedade, de responsabilidade para com o ambiente em que se vive.

Muitos utilizam sua própria história, ou a história de pessoas proeminentes, para exemplificar os efeitos positivos ou, no mínimo, nulos do trabalho infantil em uma trajetória de sucesso. É comum inclusive entre os políticos utilizar esse recurso, apontando pessoas como o ex-presidente Lula para mostrar que essas atividades não acarretam prejuízos para o futuro das crianças. “Essa é uma irresponsabilidade grande dos brasileiros porque essas pessoas querem nos convencer de que são bem sucedidas porque trabalharam na infância, caso contrário seriam fracassadas”, afirma a auditora fiscal de Natal. Dantas conta que ela própria já foi confrontada inúmeras vezes, inclusive em entrevistas jornalísticas, por pessoas que diziam que trabalhavam desde pequenas e que não havia nenhum problema nisso.

Se em alguns casos o trabalho infantil não surte efeitos nocivos, essa não é a regra para a maioria dos que são obrigados a trabalhar precocemente.  “Crianças que trabalham ficam com mil problemas psicológicos, autoestima baixa e não vão para a escola. Depois têm que aceitar tudo o que ninguém quer, o que não presta, trabalhos perigosos, desagradáveis, porque não se prepararam”,  diz Dantas. Para a secretária executiva do FNPeti, não se pode deixar que algumas exceções sejam vistas como regra. “Quem mais da família do Lula que passou pelo trabalho infantil teve a projeção que ele tem?”, questiona.  “Foi a militância sindical e não o trabalho infantil o que formou o Lula. Foi apesar do trabalho infantil e não por causa dele”, avalia.

Preconceito de classe

Para Rafael Dias Marques, da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (MPT), na visão de quem defende essa prática, o trabalho é um mal menor. “Essas pessoas não têm a concepção de que é altamente nocivo, de que pode trazer os mesmos prejuízos que as drogas e o crime”, afirma. Ele acredita que elas não sabem das dificuldades de aprendizado causadas pelo trabalho infantil; do grande risco que crianças e adolescentes têm de se acidentar nessas atividades. Não levam em conta que são retirados do convívio familiar, afastados do lazer, da brincadeira, do ócio. “A sociedade entende o trabalho como solução para a criança pobre, no lugar da educação, de garantir a proteção integral por parte do Estado”, completa o procurador do trabalho.

Clique no mapa para ver infográfico interativo com a distribuição do trabalho infantil no Brasil

Isso revela que nesse discurso de defesa do trabalho infantil está presente também um preconceito de classe, uma discriminação em relação à população mais pobre. Num momento em que filhos e filhas das classes altas estão adiando cada vez mais a entrada no mercado de trabalho, preferindo antes concluir cursos de graduação, pós-graduação, e temporadas de estudos no exterior, para conseguir postos mais bem pagos, muitos defendem que os filhos e filhas das classes baixas ingressem nele cada vez mais cedo.

“Quando se trata do filho alheio, é uma verdade, mas só para o pobre, para grupos marginalizados. Para meu filho, educação integral: de manhã na sala de aula e à tarde aulas de inglês, balé, judô, natação. É uma demagogia daqueles que sentem na criança do outro uma ameaça à sua própria estabilidade. O outro, por ser pobre, a priori é um delinquente em potencial, só tem duas alternativas na vida, trabalhar ou ser delinquente. Mas a criança tem direito a outra via”, defende Renato Mendes, coordenador do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Reações contra o enfrentamento ao trabalho infantil

Não são raros os casos de ameaças aos auditores fiscais do trabalho em todo o Brasil durante as fiscalizações de casos de trabalho infantil, pelos familiares, pelos empregadores e até pelas próprias crianças e adolescentes, que entendem que estão sendo prejudicados pela atuação do Estado para eliminar essa prática. “Sempre somos ameaçados pelas mães quando fiscalizamos, elas são agressivas. E pelos empregadores também, que têm medo de perder a mão de obra barata, não têm nenhum interesse na criança”, relata Dantas.

Como parte dessa reação, são frequentes as propostas de emenda constitucional (PEC) que vão na contramão da erradicação do trabalho infantil, propondo a redução da idade mínima para entrar no mercado de trabalho. Uma PEC com esse conteúdo (268/2008), apresentada pelo deputado federal Celso Russomanno (PRB-SP), foi barrada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), em 2009, por ser considerada inconstitucional. Afirmava que “o impedimento ao trabalho faz com que os jovens busquem a saída de seus problemas na droga, no furto, no trabalho informal, no subemprego, na mendicância e na prostituição”.

Atualmente, duas PECs que propõem a redução da idade mínima para 14 anos se encontram na CCJ, uma do deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR) e outra do deputado federal Onofre Santo Agostini  (DEM-SC), respectivamente PEC 18 e PEC 35, ambas de 2011. Eles defendem que o trabalho infantil não prejudica os estudos e, havendo acompanhamento, “só trará benefícios, tendo em vista que além de gerar rendimentos para a família será um fator positivo para a sua formação moral e educacional”.

O procurador do trabalho Marques acredita que elas também serão consideradas inconstitucionais por dois motivos. Primeiro porque tratados internacionais adotados pelo Brasil proíbem a redução da idade mínima, como a Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2001. Em segundo lugar, os direitos fundamentais são cláusulas pétreas da Constituição Brasileira, por isso não podem ser alterados por PECs, somente através da formação de uma nova assembleia constituinte.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente

 

Crianças produziam carvão com restos em lixão



Meninos e adolescentes vítimas de trabalho infantil foram encontrados catando e queimando pedaços de madeira em área com metano, que é inflamável

Por Daniel Santini, da Repórter Brasil

Em uma ação conjunta realizada no final de outubro, representantes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) flagraram crianças e adolescentes recolhendo madeiras para produzir carvão dentro de um lixão em Santarém, no Pará. Calçando apenas chinelos, os meninos reuniam tocos e ripas com farpas e pregos enferrujados e os agrupavam para incineração bem no meio do terreno. A queima acontecia em uma área com alta concentração de metano, gás inflamável resultante da decomposição do lixo.

“Foram encontradas crianças de menos de dez anos de idade produzindo carvão de maneira primitiva. Não estamos falando daquelas casinhas tipo iglu, mas de carvão fabricado no chão mesmo. Este carvão era produzido dentro de um lixão onde há decomposição de resíduos orgânicos, o que é um agravante. Há risco altíssimo de explosão”, explica o procurador Allan Bruno, do MPT de Santarém.


O lixão de Santo André funciona há décadas como ponto de descarte não somente de lixo, mas também de entulho de construções e de resíduos de serrarias e madeireiras. O despejo de materiais teve início com um buraco aberto no passado, preenchido com toneladas de dejetos. A preocupação das autoridades em relação a explosões tem fundamento. Em outubro de 2010, incêndio relacionado à produção irregular de carvão assustou moradores do bairro.

Madeira era queimada no chão do aterro
Foto: Divulgação/MPT

Famílias vulneráveis
As crianças vítimas de trabalho infantil são de treze famílias que sobrevivem do aproveitamento de materiais descartados no lixão. De acordo com as autoridades, o carvão artesanal era vendido diretamente para os consumidores, sem intermediários. Para Mary Garcia Castro, professora do programa de pós-graduação Família na Sociedade Contemporânea e de mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica de Salvador, é preciso considerar que a questão é complexa ao se atribuir responsabilidades pela situação degradante a que os meninos e adolescentes estavam submetidos.

“É muito fácil culpar as famílias, falar que elas não pensavam nas crianças e dizer que o certo seria tirar a guarda, mas é preciso considerar quais alternativas elas tinham. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera que não só a família, mas também a sociedade e o estado são responsáveis. A família, neste caso, parece o elo mais vulnerável. Quando se está numa lógica de sobrevivência, a família pensa na sobrevivência imediata”, afirma a professora, que já fez parte do Conselho Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de Direitos da Mulher. “A ausência maior é de políticas públicas e principalmente de ação municipal. Se essas crianças estivessem em boas escolas em tempo integral não estariam no lixão. Vivemos no Brasil um momento em que estamos eufóricos com os índices econômicos, mas é preciso refletir se esses índices vão se sustentar com esse tipo de condições a que crianças e adolescentes são submetidos”, defende.

Banheiro utilizado pelas famílias
Foto: Divulgação/MPT

Responsabilidade
Quem acompanhou a fiscalização pelo MPT foi a procuradora Márcia Bacher Medeiros, participante do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, que esteve na região para apurar denúncias de escravidão contemporânea. O caso das crianças no lixão foi encaminhado à procuradoria regional, que ficou de cobrar providências do poder público. “A responsabilidade pela situação é do Município que deveria ter cercado a área. A Prefeitura assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em fevereiro de 2002 assumindo este compromisso”, sustenta o procurador Allan Bruno. “Além disso, a Constituição coloca como prioridade a proteção da criança e do adolescente. A erradicação do trabalho infantil deve ser meta dos municípios. E neste aterro, foi encontrado trabalho infantil e degradante ainda por cima, crianças em condições subumanas”, completa.

Procurado pela reportagem, o secretário municipal de Planejamento Everaldo Martins Filho afirmou que a Prefeitura já tomou providências anteriormente para tentar resolver o problema. Ele afirma que 30 famílias que viviam no local foram realocadas e que o município fez um pedido de verbas para o Ministério das Cidades para reurbanizar a área do lixão. “Não temos como cumprir o TAC e cercar tudo porque é uma área em que a população circula. Este compromisso foi assumido por outra administração e não é algo que possa ser concretizado. Além disso, não dá para manter vigilância todo o tempo”, afirmou.

Quanto às crianças e às treze famílias encontradas em situação degradante vivendo dentro do lixão, o secretário prometeu providências e disse que, antes da transição para o próximo governo, a Secretaria de Assistência Social irá garantir condições dignas para todos. Na semana passada, o procurador-geral de Santarém Isaac Lisboa fez uma audiência com representantes da prefeitura para cobrar providências.


Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente