Meninos do mangue

Crianças e adolescentes trabalham na cata de caranguejos na capital da Paraíba, prática que, numa consequência extrema, levou ao afogamento de um menino de 11 anos

Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil
de João Pessoa (PB)

Distante alguns quilômetros das movimentadas praias de Tambaú e do Cabo Branco, o bonito centro histórico de João Pessoa, capital da Paraíba, abriga centenas de edificações de diferentes arquiteturas e épocas. Igrejas, sobrados e casas, além de ruas e praças, compõem o cenário. Barroco, rococó, colonial, maneirismo, art noveau… há estilos para todos os gostos. Caminhando rumo à chamada Cidade Baixa o visitante se depara com um conjunto compacto de casarios coloniais. Chama a atenção a igreja e o antigo Hotel Globo, que hoje funciona como centro cultural. Mal sabe o turista, no entanto, que logo atrás desses prédios “esconde-se” uma dura realidade: o Porto do Capim, comunidade de baixa renda localizada às margens do rio Sanhauá.

Muitos moradores do Porto do Capim vivem em barracos à beira do mangue (Fotos: Igor Ojeda)

Muitos moradores da comunidade vivem em barracos à beira do mangue (Fotos: Igor Ojeda)

São cerca de 350 famílias pobres vivendo sob condições muito difíceis, morando em casas simples de alvenaria ou barracos de madeira à beira do mangue. Seus moradores, em geral, trabalham em oficinas mecânicas e madeireiras próximas, ou como descarregadores de caminhão, entre outras ocupações. Muitos recebem o Bolsa Família, que não é suficiente, porém, para o sustento da famílias. Na comunidade não há posto de saúde, quadra poliesportiva ou equipamentos culturais. E a única escola pública atende apenas alunos da primeira à quarta série do ensino fundamental.

A total ausência de opções de lazer e cultura e a necessidade de complementar a renda se traduzem numa triste realidade que acompanha o Porto do Capim há anos. Crianças e adolescentes passam horas coletando caranguejos-uçás e guaiamuns – outro tipo de caranguejo – nos mangues locais para depois os venderem para a população da cidade. “Durante o ano inteiro, eles armam a ratoeira pela beira do mangue para pegarem o guaiamum e depois saem vendendo. Já durante a andada do caranguejo-uçá, é muita criança dentro do rio. É mais perigoso, porque precisa atravessar o rio, pode cair dentro da água”, explica Sebastião Camelo, presidente da Associação dos Moradores do Porto do Capim. A andada é o período em que há o acasalamento e a desova dos caranguejos-uçás, o que os leva a ficarem mais tempo fora da toca, tornando-os presas fáceis. A cata desses crustáceos é proibida durante essa época.

Para vender e para comer
“Os meninos pegam os caranguejos tanto para comer quanto para vender. A criança às vezes quer uma roupa, mas o pai não pode dar. E muitas vezes precisa levar alguma comida para casa”, conta Sebastião. “Aqui, a menor casa tem cinco filhos.” Segundo ele, há na comunidade cerca de 400 crianças de um a dez anos de idade. O Bolsa Família, explica, não alcança para pagar todas as contas. “Tem família que às vezes bate em casa porque não tem um prato de comida para comer”, diz.

Sebastião mostra o local onde o menino morreu afogado quando catava caranguejo

Sebastião mostra o local exato onde o menino morreu afogado quando catava caranguejo, em janeiro deste ano

A atividade em mangues é considerada uma das piores formas de trabalho infantil, de acordo com o decreto presidencial 6.481, de 2008. Segundo tal documento, nesse tipo de trabalho crianças e adolescentes são expostos à umidade e excrementos, cortes e perfurações e picadas de serpentes. Além disso, podem contrair doenças como rinite, resfriado, bronquite, dermatite, leptospirose e hepatite viral. “Aqui as crianças se machucam muito, pois no mangue tem muito galho, tocos, além de entulho jogado, como vidro, ferros, até pedaços de vasos sanitários. É muito arriscado. Tem um caso de um morador que quando era criança chegou a rasgar o pé num ferro, de um lado ao outro. Levou 36 pontos. Além disso, o próprio caranguejo pode cortar o dedo dos meninos”, explica o presidente da Associação dos Moradores do Porto do Capim.

Tragédia
Uma consequência extrema do trabalho infantil no mangue da comunidade aconteceu em janeiro deste ano, quando uma criança de 11 anos morreu afogada enquanto catava caranguejo. “A maré estava seca. Quando o caranguejo correu, o menino escorregou e o barro o puxou para baixo. Ele ficou em pé, atolado, encoberto pela lama. Não tinha adulto perto na hora. Quando chegamos para tentar salvá-lo, não o encontrávamos, pois pensamos que a maré o tinha levado. Mas ele estava exatamente onde tinha afundado. Demoramos 40 minutos para achá-lo”, lembra Sebastião. Os bombeiros e paramédicos tentaram reanimar a criança, mas ela já chegou morta ao hospital. “Ele era muito brincalhão, todo mundo gostava dele.”

À Repórter Brasil, o pai do menino nega que o filho, que ainda estava aprendendo a nadar, catava caranguejo para vender. “Eu dizia a ele que não havia precisão, pois eu sou bem empregado, trabalho na madeireira. Trabalho muito para que meus filhos não precisem trabalhar. Tanto que ele não vendia, o que ele pegava doava para a comunidade. Eu não deixava, não queria que ele catasse caranguejo nem por esporte. Sei que o rio é fundo. Mas ele se juntou com outros meninos… infelizmente aconteceu”, diz o homem, que tem outros cinco filhos. Segundo ele, no mesmo dia do acidente um vizinho o avisou que o menino tinha lhe dado dez caranguejos. “Quis pagar, mas meu filho não aceitou. Ele era minha vida, mas era teimoso. Foi estripulia de pirralho.”

Gabriel*, de oito anos, pega caranguejo desde os cinco

Gabriel*, de oito anos, pega caranguejo e guaiamum desde os cinco

Um dia antes da tragédia, um incidente inusitado assustou a comunidade. Um boato de que Gabriel* havia caído do trapiche local causou correria entre os moradores. Mas o garoto de oito anos estava longe dali, acompanhando a mãe em uma missa. Até hoje não se sabe o que gerou o rumor, mas a população do Porto do Capim consideram-no um aviso do que ocorreria 24 horas depois. Para completar, o menino era primo da vítima de afogamento. “Eu não estava junto não. Ele passou de manhã para o mangue, mas minha mãe mandou voltar. De tarde voltou, escondido”, conta Gabriel, que desde os cinco anos de idade também pega caranguejo-uçá e guaiamum. “Hoje eu estava pegando guaiamum na ratoeira. Caranguejo-uçá a gente pega na andada, com a mão, com pau, com a chinela”, explica. O garoto diz que se corta com frequência, em pedaços de vidro e madeira. “Pego mais ou menos uma sacola por dia [cerca de 15 quilos], para comer e para vender. Uma parte eu levo para casa, outra eu dou para minha tia cozinhar e vender no bar dela. O dinheiro eu dou para minha mãe guardar.”

Políticas públicas
O falecimento do menino de 11 anos no Porto do Capim levou o procurador-chefe do Trabalho no estado, Eduardo Varandas, a abrir um procedimento para acompanhar a implementação de políticas públicas de combate ao trabalho infantil na Paraíba. Quem está à frente do caso é a procuradora Edlene Lins Felizardo, titular da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Coordinfância) no estado. Ela está propondo à Prefeitura de João Pessoa a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) contendo uma série de medidas a serem tomadas para melhorias das condições de vida no Porto do Capim, como sua revitalização. “Nesse TAC, incluí não apenas a questão dessa comunidade, mas também diversos outros assuntos relacionados ao trabalho infantil na cidade. Temos problemas também nos mercados, feiras livres e praias, por exemplo, onde crianças costumam vender amendoins”, diz a procuradora, que também acionou o Conselho Tutelar por meio de uma notificação recomendatória. Nesta, pede-se que o órgão fiscalize a incidência de trabalho infantil nos mangues e comunique a situação ao Ministério Público do Trabalho e à Secretaria de Assistência Social do município, para que as crianças sejam encaminhadas, por exemplo, ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras), ambos do governo federal.

A procuradora Edlene Lins Felizardo conversa com Sebastião

A procuradora Edlene Lins Felizardo conversa com Sebastião, da associação de moradores

Edlene espera que a Prefeitura formule uma solução que contemple as necessidades da comunidade do Porto do Capim. “Há o problema de ser uma ocupação em uma área da União. Mas você não pode simplesmente pegar as famílias e expulsá-las. É um problema político que a Prefeitura tem de resolver”, opina. Segundo Sebastião, da associação de moradores, o ideal seria revitalizar o local, reformando as casas, e construir um píer para ser usado como ponto turístico.

A reportagem falou com a assessoria de imprensa da Prefeitura de João Pessoa, que a pôs em contato com a secretária de Desenvolvimento Social Marta Geruza Gomes. Esta, por sua vez, não se posicionou sobre o assunto até o fechamento desta matéria.

* nome alterado para preservar a identidade do entrevistado

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

rodapé

“Lavadinha na campa, senhor?”, o trabalho infantil em cemitérios

Por todo o Brasil, crianças e adolescentes vão aos cemitérios nos dias mais movimentados e oferecem aos visitantes o serviço de limpeza das lápides de seus entes queridos

Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil

Boné bordado com o rosto sorridente do Coringa (o inimigo do Batman), camiseta vermelha estampada, bermuda escura de surfista, fitinha do Senhor do Bonfim no tornozelo… pés descalços. O garoto tímido, de seus 12 anos, sobe na lápide suja e começa a varrer as folhas secas que a cobrem. “Vou pegar água”, diz. Desce, pega o balde laranja e some por alguns minutos pelo “labirinto” do cemitério da Quarta Parada, no bairro da Água Rasa, Zona Leste de São Paulo (SP). Com esforço, volta segurando o recipiente quase transbordando e começa a despejar seu conteúdo sobre a lápide.

Em seguida, espalha dois tipos de detergentes sobre o local, pega a vassoura e esfrega. Nada escapa, nem mesmo a imagem de Nossa Senhora que adorna o túmulo. Joga um pouco mais de água e começa a tirar o excesso com a ajuda de um rodo. Mais água, mais rodo. Enrola neste um pano de chão com aspecto de recém-comprado e o esfrega na superfície úmida. “Acho que pode jogar mais um pouco de água, não?”, pergunta a senhora que “contratou” o serviço. O menino desce, pega o balde e some novamente.

Fotos: Igor Ojeda

Garotos dormem na rua para poder estar no cemitério cedo em Finados e Dia das Mães. Fotos: Igor Ojeda

Assim como ele, outras dezenas de crianças e adolescentes faziam o mesmo trabalho, no mesmo cemitério e no exato momento, um domingo, 12 de maio, Dias das Mães. Na manhã desse dia, a Repórter Brasil visitou três cemitérios na capital paulista. No da Quarta Parada presenciou grande incidência de trabalho infantil. Nos outros dois – o da Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte, e o da Consolação, na região central –, testemunhou apenas adultos trabalhando.

A reportagem procurou os responsáveis pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo (SFMSP), que, em nota, afirmaram que a administração “não permite, em nenhuma hipótese, a atuação de menores prestando qualquer serviço dentro das necrópoles municipais”. O texto diz ainda que em datas especiais a Prefeitura solicita “intensificação das rondas realizadas pela Guarda Civil Metropolitana e pela Polícia Militar nos 22 cemitérios municipais”. Por fim, o Serviço Funerário pedem que população que acione “o Conselho Tutelar como forma de ajudar no combate ao trabalho infantil”, e destacam que “é fundamental que haja a conscientização dos pais e responsáveis para os malefícios da prática, e que estes cobrem a permanência dos meninos e meninas na escola como forma de evitar o trabalho precoce.”

“A OIT [Organização Internacional do Trabalho] classifica a atividade de crianças em cemitérios como umas das piores formas de trabalho infantil. A pessoa com menos de 18 anos não pode exercê-la”, lembra a procuradora Regina Duarte da Silva, coordenadora da Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes) na Procuradoria Regional do Trabalho, 15ª Região (Ribeirão Preto), órgão vinculado ao Ministério Público do Trabalho (MPT). Tal atividade para menores de idade é proibida pelo decreto presidencial 6.481 de 2008, que lista as piores formas de trabalho infantil (Lista TIP). Por todo o Brasil, há notícias de que esse tipo de violação ocorre, especialmente nos dias de Finados, das Mães e dos Pais, quando o movimento costuma ser maior. Poucas, no entanto, são as ações de prevenção e repressão à prática.

Dormir na rua
O garoto tímido não estava sozinho no cemitério da Quarta Parada. Fazia parte de um grupo grande, de dez meninos com idades entre 11 e 14 anos, todos moradores do bairro de Pirituba, Zona Norte. Haviam chegado na sexta-feira à noite, para poderem trabalhar desde cedo no sábado, quando a demanda por lápides limpas de entes queridos começa a crescer. Nas duas noites, dormiram na rua. “Passamos frio, para falar a verdade. A gente forra as cobertas no chão e dorme. Trazemos só cobertas e roupas. Durante o dia as guardamos num canto”, conta Felipe*, de 12 anos.

“Lavadinha na campa, senhor?”, repete João* a cada pessoa que entra no cemitério. Para cada túmulo limpo, cobra R$ 10. O menino de 13 anos encosta num carro estacionado enquanto segura balde, vassoura, pano, rodo e produtos de limpeza. É o terceiro ano que ele faz esse tipo de serviço. Ele conta que no Dia das Mães é cansativo, mas o maior movimento é em Finados. “É quando tem mais trabalho.” Num dia como esse, os meninos trabalham das seis da manhã às seis da tarde. Almoçam correndo uma refeição de R$ 8 num bar próximo, que pagam com o dinheiro que ganham com a limpeza das lápides. “A gente trabalha igual a um condenado”, admite. Num fim de semana como o do último domingo, os garotos ganham de R$ 50 a R$ 100. No feriado de Finados, esse valor pode subir a R$ 200. “No último Finados eu ganhei R$ 200”, conta Felipe. “Tem gente que faz R$ 700. A gente cansa mais, tem de carregar muitos baldes com água.”

Garotos dormem na rua para poder estar no cemitério cedo em datas como Finados e Dia das Mães

Descalços, sem botas ou proteção adequada, com os pés sobre o detergente usado para deixar tudo brilhando

João diz que os pais sabem onde estão durante o fim de semana e não impõem restrições. “Nós que tivemos a ideia de trabalhar com isso. Queremos ganhar dinheiro para comprar roupa. Não queremos ficar dependendo de nossos pais”, explica. Especialistas alertam que o Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, apontou que no âmbito urbano muito do trabalho infantil está ligado à questão do consumismo em crianças e adolescentes, que buscam bens que não recebem em casa. Nos demais dias do ano, muitas vezes Felipe e João arrumam bicos em lava-rápidos de Pirituba, outra atividade presente na lista de piores formas de trabalho infantil. “Gostamos também de comprar coisas para levar para dentro de casa, como alimento”, explica Felipe, enquanto dois de seus amigos brincam de espada com os cabos das vassouras. Perguntado se vale a pena, o menino faz cara de enfadado: “Vale a pena não. Você é louco, ficar passando a noite na rua? Né, não? A gente veio porque não tinha nada para fazer. Estamos duros também… ganhamos mais dinheiro aqui do que no lava-rápido, onde dá R$ 20, R$ 30 por dia, trabalhando das oito da manhã às seis da tarde”.

Por todo o Brasil
O problema não se restringe à cidade de São Paulo. Nos últimos anos, inúmeras denúncias têm surgido na imprensa de trabalho infantil em cemitérios de todo o país. Passe o cursor sobre os ícones abaixo e movimente o mapa para ler mais sobre outros casos e também iniciativas de prevenção:

A triste situação em João Pessoa, na Paraíba, motivou a realização de um estudo em 2003 conduzido por Nerise R. Andrade Veloso, secretária do Conselho Tutelar da cidade, e Sarita Brazão Vieira, doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora e pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Em artigo para o livro “Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada” (clique aqui para baixar versão digital em PDF), elas relatam os resultados das entrevistas feitas com quatro meninos e uma menina, com idades entre 11 a 17 anos, que trabalhavam nos cemitérios locais. Os garotos exerciam diversas atividades, como limpar túmulos, cavar covas e, inclusive, ajudar em pequenas construções. Um eles relatou até ter participado da exumação de um cadáver.

“Todas essas atividades são realizadas praticamente sem nenhuma orientação, sem proteção, sem equipamentos de segurança, simplesmente fazem da maneira que querem, na posição que acharem mais cômoda. Quanto à jornada de trabalho, eles normalmente trabalham de 4 a 12 horas por dia e recebem de R$ 10 a R$ 15”, escrevem. Segundo as autoras, o trabalho infantil em cemitérios, além de tudo, obriga as crianças e adolescentes a conviverem de perto com a morte, o choro e a tristeza.

“Todo esse ambiente mórbido, sem eles perceberem, os transforma em pessoas insensíveis quando se fala em morte. Para esses meninos e essas meninas não existe tristeza, não existe medo, mas ao mesmo tempo não querem morrer, querem viver, mesmo vivendo uma realidade não entendida nem aceita”

Trecho do estudo “Crianças e adolescentes que trabalham:
cenas de uma realidade negada”

A procuradora Regina Duarte da Silva concorda: “Pode causar abalos psicológicos, pois o cemitério é um local de sofrimento de dor, não é lugar propício à permanência de crianças”, diz. Felipe, um dos meninos que limpam lápides no Quarta Parada, em São Paulo, admite. “É um peso nas costas, né não? Ficar vendo os outros enterrados…”.

Avanço em Campinas
Entre os dias 10 e 19, Regina participou de uma força-tarefa de prevenção ao trabalho infantil na limpeza de lápide em Campinas, no interior de São Paulo. Formado por MPT, prefeitura, Guarda Municipal, Polícia Militar estadual e representantes dos cemitérios do município, o grupo buscou dar orientação a todos os envolvidos na prática: crianças e adolescentes, pais e as pessoas que “contratam” o serviço. A denúncia da existência dessa situação foi feita pela ONG Movimento Vida Melhor (MVM), especializada em assistência social a vítimas de trabalho infantil.

Faixa da campanha em Campinas. Divulgação: Movimento Vida Melhor

Faixa da campanha em Campinas. Divulgação: Movimento Vida Melhor

De acordo com a entidade, na cidade as crianças recebem de R$ 5 a R$ 10 por lápide limpa e utilizam para tal uma solução ácida composta de vinagre e limão, que pode causar queimaduras. No último Dia de Finados, em novembro do ano passado, foram encontrados 21 meninos com idades entre 11 e 15 anos – realizando esse tipo de trabalho. Alguns  acompanhavam os pais, que vendiam flores no lado de fora, enquanto outros eram explorados por traficantes, que obrigam as crianças a repassarem o dinheiro ganho com a limpeza.

No Dia das Mães deste ano, no entanto, a realidade foi completamente diferente. “O resultado da fiscalização foi excepcional”, comemora Mário Seixas, superintendente-geral do MVM. Segundo ele, nenhum menor foi visto trabalhando nos cemitérios de Campinas: 14 crianças que realizariam a atividade foram abordadas, ouvidas, orientadas e encaminhadas para brinquedotecas montadas nos locais. “Acredito que essa ação vai se constituir em um modelo.” Em fevereiro, quando a força-tarefa começou a se formar, os cemitérios iniciaram uma campanha de conscientização para inibir o trabalho infantil, com orientação a funcionárias, afixamentos de faixas e distribuição de camisetas, além da montagem das brinquedotecas.

“A esmagadora maioria das pessoas aderiu, e as próprias crianças não reagiram mal. Foi além da expectativa. Como a causa é nobre, as coisas se justificam por si mesmo”, ressalta Seixas. Ele destaca que os familiares das 14 crianças serão contatados. O objetivo é compreender a realidade dos pais e buscar alternativas para desestimular o trabalho dos filhos.

* Nomes alterados para preservar a identidade dos entrevistados

Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

rodapé

 

“Às vezes, criança: um quase retrato de uma infância”

Auditores fiscais publicam livro com fotos e versos para tornar visível a realidade de meninas e meninos que, forçados a trabalhar, aos poucos perdem a infância

Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil

“Menino que vai pra feira
Vender sua laranja até se acabar
Filho de mãe solteira
Cuja ignorância tem que sustentar
[…]
Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor!”

(“O Menino das Laranjas” – Théo de Barros, música interpretada por Elis Regina)

Elis Regina eternizou o “menino das laranjas”, quando, com sua voz, trouxe à luz a história do garoto que todo dia acorda cedo para vender frutas e ajudar a mãe no sustento do lar. A música, composição de Theo de Barros, narra e repercute, já em 1965, um caso de exploração do trabalho infantil. Passados quase 50 anos, a canção ainda hoje toca nas rádios. Chama a atenção para um problema que, no dia a dia, persiste na cidade e no campo, mesmo despercebido, e sob outras formas: crianças que trabalham, em feiras, inclusive, por todo o Brasil.

Em certos contextos, a arte costuma ser o campo que expressa e reflete as contradições, valores e aspirações de uma sociedade, ao mesmo tempo em que também procura sensibilizar e dar dimensão a certos aspectos da conjuntura social. No caso do trabalho infantil, além de “O Menino das Laranjas”, na voz de Elis, o livro “Às vezes criança: um quase retrato de uma infância roubada”, de autoria dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) Rubervam Du Nascimento e Sérgio Carvalho, respectivamente com 35 anos e 18 anos de atividade profissional, aborda de modo muito parecido a exploração de crianças e adolescentes.

Fotos: Sérgio Carvalho / "Às vezes, criança" / ©

Fotos: Sérgio Carvalho / “Às vezes, criança” / ©

Através de poesias escritas por Rubervam e fotos capturadas por Sérgio, apresentam-se ao longo das páginas retratos da exploração de crianças e adolescentes que se veem compelidos a entrar mais cedo na vida adulta. Para ambos, a obra tenta retirar a invisibilidade e despertar a sensibilidade para o problema. “A ideia é exatamente mostrar que o trabalho infantil é bem visível para toda a sociedade, mas ao mesmo tempo não conseguimos percebê-lo. É uma realidade no dia a dia das pessoas, não só do auditor fiscal. Todo dia você vê crianças trabalhando. Isso virou normal para a sociedade”, afirma à Repórter Brasil o autor das fotografias na publicação.

A ideia é não só ajudar no despertar sobre a questão, mas também colocar o tema de uma forma que não pareça banal, exatamente o contrário de uma terapia de choque sobre a realidade em que não é possível vislumbrar qualquer saída para a situação presente. Abordar o trabalho infantil através da linguagem poética, portanto, é uma forma de reorganizar e transformar a percepção sobre o problema, de acordo com Rubervam. “Não há arma verbal mais poderosa para trabalhar com as subjetividades que nos envolvem no dia a dia do que a poesia”, defende. “É a poesia que, de todas as outras artes, se atreve a mexer com nosso sistema límbico, despertar os nossos sentimentos de dor e revolta adormecidos”.

“Dia a dia do cidadão”
“A grande maioria dessas fotos é feita no dia a dia do cidadão”, lembra Sérgio. Ele explica que as imagens ao longo do livro são na verdade frutos de suas viagens, passeios e andanças pelo país, e não registros da atividade que realiza como auditor fiscal do MTE, ao contrário do que pode parecer em uma primeira leitura. “A gente fez questão de não citar locais para não regionalizar, porque é um problema do país todo”. Essa iniciativa, acredita, vem justamente no sentido de problematizar o trabalho infantil como parte do universo dos brasileiros. “Se você legenda a imagem, parece que é um problema só daquele lugar que foi fotografado”, completa.

asvzscriancascOs retratos da exploração de crianças e adolescentes acompanham, além disso, imagens de meninas e meninos em momentos de brincadeira, como um respiro entre tantas situações de abuso e falta de perspectiva. “No livro, o normal vira a exceção: a quantidade de imagens de crianças trabalhando é muito maior do que a de crianças brincando. Também a ideia é mostrar o que deveria ser sua realidade”, afirma o fotógrafo. Enquanto a maior parte das imagens as mostra em casas de farinha, pedreiras, lixões, estradas e matadouros, uma minoria registra o sorriso delas, sem terem de carregar antecipadamente as preocupações e os riscos da vida adulta.

Para entender a situação que afeta milhões de crianças e adolescentes pelo país – são pelo menos 3,4 milhões de vítimas do trabalho infantil, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Censo de 2010 – de um modo que vai além do possibilitado pelo ofício de fiscal trabalhista, os autores salientam a importância das trocas e conversas que têm com os meninos e meninas. “Procuro sempre fotografar como participante, um tipo de fotografia que chamamos de ‘dialógica’, ao contrário do que chamam de ‘ladrão de imagens’”, conta Sérgio. Das imagens no livro, ele destaca o caso de um menino, na sua cidade natal, que trabalhava em um matadouro (veja box abaixo). “Na verdade, a fotografia é um processo, é uma troca entre o fotógrafo e o fotografado, principalmente para ter esse tipo de imagem”, acrescenta.

“Sempre converso com as crianças e adolescentes que retiro do trabalho irregular. Não é certo acreditar que elas trabalham porque querem. Trabalham porque são obrigadas”, reforça Rubervam. O fiscal do MTE lembra que a exploração de crianças e adolescentes está ligada a outros fatores, como a desigualdade social, o descaso de certos governantes e o silêncio sobre o problema, parte do que classifica como “discurso da miséria cultural secular que nos acompanha”. “O silêncio é uma praga de bico afiado que se enfia com uma força perversa em nosso tecido social. Com o silêncio é que a sociedade tenta embrulhar a realidade que a incomoda”, adverte.

asvzscriancasc2“Bandidos, e não mocinhos” ou preto-e-branco
“As crianças são vítimas do comportamento dos adultos, da incompetência e insensibilidade de gestores públicos que brincam com essa questão”, continua Rubervam, em referência às circunstâncias em que crianças e adolescentes aparecem como culpadas pela violência urbana ou então quando o senso comum insiste que seria melhor ver esses jovens inseridos no mundo do trabalho, quando na verdade deveriam estudar, brincar e seguir somente depois à vida adulta. Ele cobra mais responsabilidade de autoridades e dos próprios cidadãos quanto ao problema. “Nesse filme violento, é bom que assumamos, de uma vez por todas: todos nós somos bandidos, e não mocinhos”.

asvzscriancasc1É dessa realidade dura que o escritor diz buscar a fonte de seu trabalho poético. “A matéria-prima de minha poesia, nos últimos 30 anos de convivência com a escritura, tem a ver com o que consigo apalpar cheirar, devorar, no dia a dia, na tentativa de transformá-lo em objeto de expressão artística”, conta. Questionado por esta reportagem por que preferiu, no livro, fazer o registro em versos, e não em prosa, ele é enfático em defender seu tipo de linguagem. “Meus referenciais são poetas que ousam invadir universos que a maioria julga completos, mas que estão precisando, o tempo todo, ser decifrados, imaginados, provocados, corrigidos.”

Imagem: Reprodução / "Às Vezes

Clique para ampliar. (Imagem: Reprodução / “Às vezes, criança” / ©)

Da mesma forma, Sérgio explica a preferência que tem pelas imagens em preto-e-branco. Segundo entende, a ausência de cores permite mais plasticidade e dramaticidade para os retratos na publicação. Em vez de utilizar a fotografia como forma pura e simples de representação da realidade, deixa “sugerido” ao leitor a percepção daquilo que está acontecendo, procura usar as imagens “como um meio de transformação social”. “O preto-e-branco sugere mais. Quando foge da imagem-realidade, o preto e branco não só mostra como também sugere mais”, diz. No fundo, as imagens também aparecem como um tipo de poesia.

“E a poesia”, explica Rubervam, “é testemunha ímpar de conquistas universais, das histórias de amor e morte dos indivíduos”. Testemunha que, como a música de Elis Regina, permanece por gerações, para que o que passa agora não caia no esquecimento jamais.

asvzscriancasc3Sérgio Carvalho nasceu em Simplício Mendes, no Piauí. Na ocasião de uma das visitas que fez a sua cidade-natal, deparou-se com a situação retratada acima. Ele conta que lá, devido à falta de oportunidades de estudo e inserção social às crianças, o trabalho de carrasco nos matadouros da região aparece como perspectiva a muitas meninas e meninos, inclusive com a conivência do poder público. “Foi na cidade onde eu nasci. Era um ambiente de trabalho muito penoso, em um matadouro público, gerenciado pela própria prefeitura, crianças trabalhando com animais”, descreve. Na imagem, o garoto puxa as correntes onde ficam pendurados os cadáveres de animais mortos.


Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

rodapé