Crianças trabalham como ambulantes nos arredores da Arena Fonte Nova, em Salvador

Enquanto o luxo predomina no lado de dentro de um dos estádios da Copa do Mundo, no lado de fora o trabalho infantil é comum na venda de cerveja, nas barraquinhas de churrasco e na coleta de latas de alumínio, entre outras atividades

Por André Uzêda, para a Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Salvador (BA) – Em uma sintomática contradição biológica, a Arena Fonte Nova, estádio baiano erguido para a Copa do Mundo de 2014, tem exposto suas vísceras do lado externo da arquitetura que emoldura sua construção. Divididas entre brasas incandescentes, bandejas mal equilibradas e servindo latinhas de cerveja, um batalhão de crianças executa atividades profissionais sob olhares pouco desconfiados dos que ali transitam.

É um domingo, 27 de outubro, e os torcedores se aglomeram nos arredores do estádio para acompanhar o embate entre Bahia x Atlético-PR, em Salvador, pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2013.

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Demolida e reconstruída para a Copa do Mundo, Fonte Nova apresenta interior luxuoso. Foto: Secom-BA

As crianças e jovens que compõem esse cenário da exploração aparentam idade entre 8 e 17 anos e se agrupelham entre as mais diversas atividades informais ofertadas no espaço. Tal qual uma ciranda desencontrada, algumas vendem cervejas acompanhadas dos pais, enquanto outras recolhem latas de alumínio abandonadas no chão. Há ainda as que, próximas ao braseiro, onde são assadas carnes para serem comercializadas, ignoram os perigos da inalação da fumaça ou riscos de queimaduras com a imprudência própria da idade. A brutalidade envolve a atmosfera do lugar, sob olhares embrutecidos de quem enxerga aquilo como cenário habitué.

O barulho ambiente, exagerado a ponto de extrapolar as cercanias do lugar, parece sufocar a presença da pequena Vanessa**, de apenas 9 anos. A garota, apenas mais uma entre tantas outras crianças submetidas ao trabalho infantil naquele espaço, mantém o olhar em um ponto fixo, evasivo.

A menina carrega um curativo acima do olho direito, fruto de uma traquinagem infantil, enquanto apostava corrida durante o recreio escolar. Quando perguntada pela reportagem por que, mesmo tão nova, precisa ir trabalhar, sorri timidamente: “Fala com minha mãe, moço”.

“Melhor do que ficar na rua”
Há 20 anos, a senhora de 52 anos estabeleceu seu ponto de venda de cerveja em jogos do Bahia. A bebida é armazenada em um isopor largo, equilibrado em um carrinho de mão. Ela é mãe da pequena desconfiada, embora também acumule a função de chefia nessa relação familiar. “Tem pouco tempo que comecei a levá-la para me acompanhar. Vanessa fica mais aqui para cuidar das coisas enquanto eu vou ao banheiro ou preciso trocar um dinheiro. Não posso deixar o lugar vazio”, pontua a matriarca.

Em média, estima a ambulante, em um dia de jogo é possível arrecadar até R$ 400 com a venda de bebidas alcoólicas (proibidas no interior do estádio por resolução da CBF). Com o marido encostado pelo INSS, após cirurgia delicada, ela virou responsável por sustentar a casa ao mesmo tempo que cuida da sua prole. “Essa é outra razão pela qual levo Vanessa comigo. É melhor do que ela ficar na rua, sem ter o que fazer, desocupada…”, argumenta.

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Vanessa bebe água enquanto ajuda sua mãe a vender cerveja do lado de fora do estádio. Foto: André Uzêda

Explicação comum
De acordo com a socióloga baiana Inaiá Carvalho, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), dois elementos na fala dessa vendedora resumem a condição do trabalho infantil em território brasileiro. “Esse problema [trabalho infantil] ainda é visto pelos pais como um fator educacional. Na falta de uma escola em tempo integral, eles acham que, muitas vezes, é melhor ter o filho por perto, mantendo-o longe da rua, do crime e de tantos outros problemas”, diz a pesquisadora, que emenda: “A outra condição é estritamente social. O trabalho na infância está ligado à criança pobre, estritamente. Não se fala dessa questão entre jovens e crianças de classe média, por exemplo”, afirma. Especialistas na questão costumam defender que em vez de se criminalizar os pais, é necessário realizar um trabalho de conscientização e de fornecimento de garantias sociais.

A socióloga, porém, diz enxergar avanços consistentes nos últimos anos em relação ao combate ao trabalho infantil no Brasil. “Desde a década de 1990, os governos vêm sistematicamente trabalhando contra essa chaga social. A própria sociedade despertou de uma postura de passiva naturalidade para uma de horror escandalizado diante do trabalho infantil, sobretudo aquele mais pesado, na extração do sisal, carvoarias e plantação de cana-de-açúcar. Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, sancionada em 1990), os números de casos estão diminuindo”, afirma.

Sem escola em tempo integral
Apesar da redução de 13,44% na última década, entre jovens que trabalham dos 10 aos 17 anos, segundos dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), os números apontam estagnação da exploração infantil como mão de obra na zona rural e no setor informal da economia, como é o caso das crianças que trabalham ao redor da Fonte Nova. “São duas vertentes que tiveram baixas importantes, mas estagnaram. Chegamos a um ponto em que a única forma de resolver essa questão é com a redução drástica da pobreza e com escolas com acompanhamento integral para os jovens”, afirma a professora Inaiá Carvalho.

A ausência de uma instituição de ensino que prolongue suas atividades em mais de um período é a principal causa, por exemplo, para Gilvan**, de 14 anos, acompanhar uma senhora de 60 anos na sua rotina de trabalho. O garoto, que recolhe dinheiro enquanto ela assa espetos de carne, não possui qualquer relação de parentesco com a vendedora.

A reportagem encontrou o adolescente trabalhando nos arredores da Arena Fonte Nova em uma quinta-feira à noite, dia 24 de outubro, momentos antes da partida Bahia x Nacional de Medellín (Colômbia), pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana. “Ele é meu vizinho, lá do subúrbio ferroviário. A mãe dele sai para trabalhar e passa o dia todo na rua, só volta de noite. Ela que me pede para levá-lo para o trabalho, porque ele pode juntar um dinheiro e também fica mais seguro”, diz a churrasqueira.

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No total, nova arena custou R$ 688,7 milhões, a serem pagos em 15 anos. “Nunca entrei lá não”, revela Vanessa. Foto: Carol Garcia/Secom-BA

Copa do Mundo
O olhar de Vanessa, perdido no horizonte, em algum momento talvez se depare com a suntuosidade da Arena Fonte Nova. A praça esportiva seria levantada ao custo inicial de R$ 591,7 milhões, celebrados por um contrato de PPP (Parceria Público Privada) entre governo do estado e as construtoras OAS e Odebrecht. Entretanto, um aditivo contratual de R$ 97,7 milhões elevou o valor final do empreendimento para R$ 688,7 milhões, no total. A serem pagos nos próximos 15 anos.

Tal grandeza numérica, traduzida em conforto, rótulos de sustentabilidade e embalagem de segurança para o mundial brasileiro, ainda que fisicamente próximos parecem léguas de distância da realidade da pequena Ana Carolina. “Nunca entrei lá não”, confidencia a garota, em referência ao luxuosíssimo estádio.

Enquanto embala sonhos do lado de dentro, fora o estádio expõe suas vísceras.

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

** Os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes.

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Ex-presidente Lula diz que falta vergonha para acabar com trabalho infantil

Conferência Global realizada em Brasília aponta necessidade de acelerar esforços para erradicar o trabalho infantil até 2016 

Por Antonio Biondi, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Brasília (DF) – “Falta vergonha e vontade política para acabar com o trabalho infantil. Recursos existem, certamente.” O ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, resumiu em poucas e agudas palavras um sentimento que permeava toda a programação da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, realizada durante esta semana em Brasília (8 a 10). Em seu documento final, a “Declaração de Brasília”, a Conferência afirmou “a necessidade de acelerar os esforços em todos os níveis para erradicar o trabalho infantil, em particular suas piores formas até 2016”.

O evento destacou a centralidade do Brasil e da América Latina na agenda de combate ao trabalho infantil, definindo que a IV Conferência Global será realizada na Argentina, em 2017. O encontro também afirmou a relevância da cooperação entre países para a erradicação do problema, além do envolvimento e da articulação entre os vários atores no plano nacional e internacional.

Em sua participação, na manhã do último dia 10 – que se afirmou como um dos pontos mais fortes e emblemáticos da Conferência –, o ex-presidente Lula destacou que, desde 2008, mais de 10 trilhões de dólares foram gastos no socorro e proteção aos bancos, indústrias, seguradoras e outros segmentos ligados ao setor privado. E lembrou que a Guerra no Iraque já consumiu entre 1,7 trilhão e 3 trilhões de dólares.

Lula resgatou memórias de suas viagens pelo mundo e pelo Brasil, destacando a degradação causada pela fome e pela pobreza. Contou, por exemplo, de uma ocasião em que se deparou com crianças mastigando bolachas de argila no Haiti, por não terem recursos para comprar comida. E disse ter visto o mesmo desespero em pessoas na África, na Ásia e na América Latina. No Brasil, registrou a situação em que encontrou crianças mastigando a palma forrageira para enganar a fome e a sede no Nordeste. E contou que ele só foi comer pão pela primeira vez em sua vida aos 7 anos.

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Lula destacou ter perdido o dedo de sua mão esquerda trabalhando das 22hs às 6hs como operário, aos 17 anos, quando era proibido trabalhar nesse horário. Falando especificamente das crianças e adolescentes que hoje trabalham em atividades que oferecem perigos adicionais a elas, Lula lembrou que “quando a pessoa precisa levar alguma comida para casa, alguma renda, ela faz aquilo mesmo sabendo que é errado ou dos riscos envolvidos”.

O ex-presidente registrou concordar que existam vários fatores que contribuem para a existência do trabalho infantil, mas que certamente a miséria e a fome são determinantes. “Os mapas que registram esses problemas coincidem rigorosamente”, concluiu, passando em seguida a elencar uma série de conquistas obtidas pelo Brasil nessas áreas nos últimos anos – bem como agendas a serem priorizadas pelo país e por outras nações no combate ao trabalho infantil nos próximos anos.

Brasil central
Durante a coletiva de imprensa realizada ao final do evento, perguntou-se ao presidente da OIT, Guy Ryder, se o fato de a diminuição do trabalho infantil ter atingido 36% da meta planejada para o período entre 2010 e o final de 2016 não seria uma indicação de que a OIT e a comunidade internacional deveriam rever as metas e estipular algo mais realista.

O presidente da OIT discordou, defendendo que o roteiro estipulado em Haia em 2010, na conferência anterior, deveria ser mantido, com a intensificação dos esforços para chegar à Argentina em 2017 com o objetivo cumprido – ou o mais próximo possível a isso. Para tanto, será necessário se retirar do trabalho infantil as mais de 168 milhões de crianças e adolescentes ainda envolvidas no problema em 2012 – 85 milhões das quais nas piores formas de trabalho. Em 2000, o número global era de 246 milhões de crianças e adolescentes.

Para Ryder, “o intercâmbio de experiências será essencial nesse próximo período, e o Brasil possui um papel central nisso. O Brasil está implementando políticas que estão, sim, dando certo”, afirmou, pedindo licença à ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, para fazer tal avaliação sobre as medidas aplicadas pelo governo brasileiro.

Na própria coletiva, perguntou-se à ministra, cuja pasta incumbiu-se da organização da Conferência, quantas crianças e adolescentes atualmente trabalham no Brasil, e quais as metas do país para os próximos anos. Campello destacou que hoje há 2 milhões de jovens acima de 16 anos trabalhando no Brasil, além de 1,5 milhão com menos de 16 anos e que trabalham.

A ministra afirmou que o governo Dilma não adota atualmente uma diferenciação entre o trabalho infantil no seu todo e em relação às piores formas de trabalho pelo fato de ter conseguido bons resultados atacando o problema na sua totalidade. Ao passo que a diminuição mundial ficou em cerca de 36% entre 2000 e 2012, no Brasil a diminuição atingiu 67%. “Pretendemos então seguir trabalhando na mesma linha, e com metas bem ambiciosas nesse sentido.”

Ministros do Trabalho, Manoel Dias; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo; e o diretor-geral da OIT, Guy Ryder. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ministros do Trabalho, Manoel Dias; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo; e o diretor-geral da OIT, Guy Ryder. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Campello afirmou que o governo pretende enfrentar um primeiro desafio emergencial, relativo ao trabalho de crianças em lixões, que deve ser atacado ainda em 2014, no contexto da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Além disso, a análise do governo federal é que o trabalho infantil não está mais concentrado em alguns grandes setores, devido à queda já verificada nos principais segmentos que se utilizavam da mão de obra infantil. A ministra afirmou que agora será necessário enfrentar um novo núcleo duro do trabalho infantil, dentro das casas, das propriedades rurais, que diz respeito ao trabalho doméstico e familiar, por exemplo. Para ela, essas novas ações precisarão de outras iniciativas, ao lado da fiscalização, para que logrem sucesso. “Será necessário priorizar a educação, a orientação, o convencimento, buscar transformações culturais”, defendeu.

América Latina em foco
Em diálogo com o intercâmbio defendido pelo presidente da OIT e pelas novas agendas apontadas pela ministra brasileira, a política de enfrentamento ao trabalho infantil doméstico possui exemplos interessantes a serem conhecidos. No Uruguai, por exemplo, o governo do presidente José ‘Pepe’ Mujica já aplica hoje uma metodologia para enfrentar a questão.

Com mais de 1.300 pessoas presentes, vindas de 154 países, com representantes de 135 governos – um marco, especialmente por se tratar de um evento não organizado diretamente pela ONU –, a III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil registrou um razoável protagonismo dos países da América Latina.

Menino carrega carrinho de mão em feira livre no interior do Rio Grande do Norte. Foto: Marinalva Dantas

Menino carrega carrinho de mão em feira livre no interior do Rio Grande do Norte. Foto: Marinalva Dantas/SRTE-RN

Além de a Argentina ter obtido sucesso em sua proposta pela realização no país da Conferência Global sobre a Erradicação Sustentada do Trabalho Infantil em 2017, em diversos momentos do encontro em Brasília iniciativas verificadas na região foram apresentadas e destacadas – e certamente poderão ter aplicabilidade e efeitos semelhantes em países dos outros continentes.

O governo do Equador, por exemplo, realizou uma apresentação bastante ampla de seu programa de combate ao trabalho infantil, no qual saltam à vista: o papel destacado conferido aos municípios (com leis e políticas próprias destinadas ao problema), a atuação do governo central não só como responsável pelas normas e sua fiscalização, mas também como orientador e facilitador, e ainda a presença muito forte das políticas de educação e geração de renda.

Eleonora Slavin, da Argentina, ao participar da sessão semiplenária a respeito do papel do sistema judicial no combate ao trabalho infantil, explicou que houve mudanças importantes nos últimos anos nas leis do país. Eleonora destacou que, primeiramente, foi aprovada uma lei proibindo o trabalho aos menores de 16 anos, e que, em março de 2014, houve uma alteração no Código Penal argentino, que passou a prever a pena de um a quatro anos de prisão para quem se valer do expediente do trabalho infantil.

Para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além das conquistas verificadas no Brasil, “o combate ao trabalho infantil também avançou em muitos outros países, sobretudo na América Latina, onde muitos países adotaram modelos de desenvolvimento com inclusão social”.

Desafio de todos
Em sua participação na Conferência, Lula defendeu que a erradicação do trabalho infantil “é uma responsabilidade de todos nós, não só da presidenta, do ex-presidente, mas de toda a sociedade”. O ex-presidente brasileiro destacou ainda o papel fundamental a ser desempenhado nesse sentido pelo Ministério Público, pelo Ministério do Trabalho e Emprego e Poder Judiciário.

Rafael Marques, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), em sua exposição na sessão a respeito do papel do sistema judicial no combate ao trabalho infantil, apresentou o projeto “Políticas Públicas”, implementado por uma coordenação do MPT, tendo à frente os procuradores Alexandre Ragagnin e Sueli Bessa.

Encerramento da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Brasília: 154 países presentes, reunindo mais de 1.300 pessoas. Foto: Divulgação/OIT

Encerramento da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Brasília: 154 países presentes, reunindo mais de 1.300 pessoas. Foto: Divulgação/OIT

Marques explicou que o projeto inicialmente identificou os 20 piores municípios em termos de trabalho infantil em cada Estado. Além de trabalhar no sentido de compreender a situação da criança e da família, o projeto vai em busca de entender as causas, com vistas a atacar as consequências e evitar o retorno da criança à situação de risco em que se encontrava.

Para que o projeto alcançasse resultados melhores, o MPT teve como premissa o estabelecimento de parcerias, seja com ministérios do governo federal (Saúde, Trabalho, Desenvolvimento Social), seja com as Câmaras Municipais, famílias, aparato policial e instituições da sociedade.

Nos municípios em que se identifica uma maior omissão do poder público em relação a seus deveres constitucionais, o MPT instaura um inquérito civil, que por sua vez pode gerar ou Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) por parte dos municípios junto ao MPT, ou mesmo ações na Justiça voltadas à inibição do ilícito e a pedidos de indenização voltados às crianças e famílias envolvidas – bem como a toda a coletividade.

De acordo com o procurador, o projeto instaurou investigações em 53 municípios em 2012, levando à assinatura de 30 TACs, e a medidas por parte das prefeituras, empresas e outras instituições locais que beneficiaram cerca de 42 mil crianças entre 10 a 17 anos.

A necessidade de uma ação coordenada envolvendo todas as nações foi destacada também pela presidenta Dilma Rousseff, na abertura da Conferência. Dilma destacou a importância da articulação entre os países, e também entre os vários setores envolvidos com a questão.

As palavras da presidenta foram reforçadas pela Declaração dos Adolescentes participantes da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil apresentada na Conferência, na qual os jovens destacam seu interesse em participar mais dos processos de decisão política. Ao apresentar suas propostas, os jovens ressaltaram possuir outra visão de mundo, diferente da dos adultos, que precisa ser cada vez mais considerada – a fim de evitar a repetição de erros cometidos pela atual geração de políticos e construir novas soluções.

Garotos trabalham na cata do sururu no Recife. Foto: Igor Ojeda

Garotos trabalham na cata do sururu no Recife. Foto: Igor Ojeda

Além da Declaração de Brasília e da elaborada pelas crianças e adolescentes, a Conferência foi palco da apresentação de outros documentos e iniciativas, nos quais a articulação e as parcerias também obtiveram destaque. Foi o caso, por exemplo, da criação do Grupo Interagencial sobre Trabalho Infantil das Nações Unidas (Giti). O grupo, que buscará levantar 20 milhões de dólares para um fundo próprio voltado ao desenvolvimento de suas ações, conta com a presença da OIT e de outras agências da ONU que desenvolvem ações de enfrentamento ao trabalho infantil: Organização Panamericana de Saúde/OMS; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), ONU Mulheres; Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO); Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); e o Fundo das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

No encerramento da III Conferência, o presidente da OIT avaliou que o encontro, além de apresentar um impressionante número de participantes e países, e de representantes de governos, sociedade civil, empregadores e trabalhadores, também colheu um impressionante número de resultados. “E nos permitiu compreender muito melhor os problemas.”

O indiano Kailash Satyarthi, um dos responsáveis pela criação da Marcha Global contra o Trabalho Infantil, também compartilhou da avaliação positiva do evento, considerado “único” por ele. “Agora, precisamos fazer mais daquilo que já sabemos fazer e fazemos. Precisamos agir para tornar a Declaração final da Conferência realidade”.

Declaração de Brasília  

O documento final da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, a Declaração de Brasília, ressalta que “o combate ao trabalho infantil e a Agenda de Trabalho Decente devem receber a devida consideração na agenda de desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas”.

Entre seus 24 pontos, a Declaração defende o aprofundamento da cooperação internacional, inclusive a cooperação “triangular” e entre países do Sul (Sul-Sul), além de afirmar que os participantes da Conferência buscarão “engajar a mídia nacional e internacional, as redes sociais, a academia e os órgãos de pesquisa, como parceiros na sensibilização para a erradicação sustentada do trabalho infantil”.

O documento registra a importância da continuidade da promoção do “engajamento de todos os setores da sociedade” na questão, bem como de “Ministérios e outros órgãos do Estado, de Parlamentos, dos sistemas judiciais, de organizações de empregadores e trabalhadores, de organizações regionais e internacionais e de atores da sociedade civil”.

A Declaração aponta, por outro lado, que “os governos têm o papel principal e a responsabilidade primária”, além de destacar a importância do “uso efetivo, coerente e integrado de políticas e serviços públicos nas áreas do trabalho, da educação, da agricultura, da saúde, do treinamento vocacional e da proteção social”.

Para os presentes à III Conferência, a formalização da economia e as ações de monitoramento, avaliação e as inspeções de trabalho são outras iniciativas a serem fortalecidas, bem como possíveis incrementos do arcabouço legal e institucional de cada Estado.

Em seu preâmbulo, a Declaração de Brasília sobre Trabalho Infantil reconhece “os esforços e os progressos realizados e ainda em andamento, a despeito da crise econômica e financeira global”, mas reconhece “a necessidade de acelerar os esforços em todos os níveis para erradicar o trabalho infantil, em particular suas piores formas até 2016”.

O documento cita, ainda, o “progresso feito pelos Estados na ratificação das Convenções 138, sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego, e 182, sobre a Proibição e Ação Imediata para a Eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil, da OIT, e reiterando a importância de promover sua ratificação universal e sua efetiva implementação”. Ainda nesse ponto, a Declaração convida “os países a considerar a ratificação de outros instrumentos relevantes, como a Convenção 189, sobre Trabalho Decente para Trabalhadores Domésticos, bem como a Convenção 129, sobre Inspeção do Trabalho na Agricultura, e a Convenção 184, sobre Segurança e Saúde na Agricultura”.

Embora já tenha ratificado as Convenções 138 e 182 da OIT, o Brasil ainda não ratificou a 129 e a 184, adotadas respectivamente em 1969 e 2001 pela Organização Internacional do Trabalho, nem a 189, de 2011.

Leia outras reportagens sobre a Conferência Global no site Promenino:
Desafios do Brasil para erradicação do trabalho infantil
Entrevista exclusiva com ministra Tereza Campello
Pouco debatido, trabalho infantil nos países desenvolvidos gera preocupação 
Plenária discute crianças e adolescentes em conflitos armados e o aumento da rede de exploração sexual 
Vulnerabilidade da agricultura na cadeia produtiva aumenta chances para o trabalho infantil

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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Operação flagra trabalho infantil em plantações no interior de São Paulo

Fiscalização encontrou 21 meninos e meninas trabalhando na colheita de vegetais em seis municípios paulistas. A maior dificuldade, no entanto, é superar aceitação cultural do problema

Por Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*

Uma fiscalização conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) localizou 21 crianças e adolescentes vítimas de trabalho infantil em pequenas propriedades de seis municípios do interior de São Paulo. Seis tinham entre seis e doze anos. Elas colhiam beterrabas de chinelos ou descalços, sem qualquer proteção. Alguns exibiam ferimentos nas mãos.

Entre as vítimas, seis crianças com menos de 12 anos trabalhavam na colheita de beterraba (Fotos: MPT-15)

Entre as vítimas, seis crianças com menos de 12 anos trabalhavam na colheita de beterraba (Fotos: MPT-15)

Os municípios de Itobi, Casa Branca, São José do Rio Pardo, Santa Cruz das Palmeiras, Vargem Grande do Sul e Mococa ficam a cerca de 250 quilômetros da capital paulista. A região tem 223 mil habitantes e aproximadamente 10 mil trabalhadores no meio rural, divididos entre 1,2 mil produtores. Eles se distribuem principalmente nas colheitas de batata, cebola, beterraba e laranja.

A diligência, que aconteceu entre 9 e 14 de setembro, faz parte de uma operação maior dos dois órgãos, que visa reduzir a incidência de trabalho infantil e irregularidades trabalhistas na região. Em agosto, uma audiência reuniu cem produtores rurais na Câmara Municipal de Itobi com o objetivo de conscientizá-los sobre a proibição do trabalho de crianças e adolescentes em plantações, que ainda é comum na região.

Trabalhador com os pés descalços: falta de proteção é recorrente

Trabalhador com os pés descalços: falta de equipamento de proteção é recorrente

Entre os desafios para o combate ao emprego de meninos e meninas nas lavouras está a aceitação cultural; a prática atravessa gerações. Por envolver condições insalubres e manuseio de ferramentas perigosas, o trabalho rural infantil nas condições encontradas neste caso pode ser enquadrado, segundo o MPT, entre as piores formas de trabalho infantil, definidas em decreto de 2008, que regulamentou a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Quem tem menos de 18 anos não pode trabalhar nestas atividades nem como aprendiz.

Além das crianças e adolescentes, a fiscalização encontrou cerca de mil pessoas atuando em 25 fazendas sem registro em carteira ou equipamento de proteção individual. Elas não tinham acesso a banheiro e os alojamentos de 19 dos trabalhadores, que não eram da região, estavam em condições ruins.

O número teria sido ainda maior, se não fossem as dificuldades para a fiscalização: “Quando viram que estávamos chegando a uma das fazendas, colocaram um carro para barrar nossa entrada. Então, nós tivemos que pular a cerca e sair correndo atrás dos três ônibus onde estavam alguns trabalhadores. Eu mesmo tive que correr por 300 metros para pegar um deles”, contou o auditor fiscal do trabalho Antônio Valério Morillas Júnior, que acompanhou a operação. Outro problema apontado por Antônio é a falta de funcionários do MTE, que deixa o órgão em uma “situação extremamente precária”. Para fiscalizar as 25 fazendas, eles puderam contar com apenas sete auditores fiscais.

Entidades organizaram audiência com produtores da região para conscientização

Entidades organizaram audiência com produtores da região para conscientização

Para erradicar o trabalho infantil e sanar as questões trabalhistas as entidades têm orientado os produtores a criar cooperativas rurais para, por exemplo, baratear os custos com a compra de equipamentos de proteção individual: “Como as colheitas são de cultura rápida, mas devem ser feitas em momentos diferentes, os produtores podem compartilhar os equipamentos quando estes estiverem ociosos”, explica o auditor. Apesar do trabalho educacional, as fiscalizações devem continuar e a equipe já disse que vai voltar às fazendas no início do próximo ano, quando novas colheitas serão feitas.

 

* Matéria produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil

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