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Resgate de garoto de 15 anos em condições de escravidão contemporânea numa pedreira no Rio Grande do Sul evidencia outras consequências do trabalho infantil, além da social: os riscos e danos à saúde de crianças e adolescentes
Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*
Para João Júlio**, havia mais do que uma pedra no meio do caminho. Eram centenas, no mínimo. Aos 15 anos de idade, o garoto não ia à escola para, assim como o pai, quebrar pedaços de basalto com uma marreta. Juntamente a um grupo de dez homens, ele foi resgatado do regime de trabalho análogo ao de escravo por uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), ocorrida no último dia 30 de julho, em uma pedreira situada na zona rural do município de Antônio Prado, a cerca de 180 km ao norte de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul (RS). João Júlio era o único com menos de 18 anos.
Segundo os fiscais do MTE, as rochas retiradas do local, de propriedade da empresa Mineração Zulian, seriam utilizadas como paralelepípedos para a pavimentação de ruas e calçadas. O menino era responsável por extrair pedaços do mineral, um tipo atividade que, pelo ambiente insalubre e esforço excessivo, poderia lhe causar graves problemas de saúde.
“Quando a gente fala em saúde, costuma assustar muito mais do que quando falamos somente das consequências sociais do trabalho infantil. Por isso é sempre importante deixarmos claro quais são os riscos”, salienta a coordenadora do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) em Caxias do Sul (RS), a enfermeira Ana Maria Mezzomo. Para ela, jovens com menos de 18 anos que ingressam no mundo do trabalho estão em situação muito mais vulnerável do que os adultos. Conforme explica a agente do Cerest, João Júlio estaria principalmente sujeito a desenvolver problemas em seu sistema ósseo, porque se encontra em fase de crescimento.
“Os esforços requeridos por um adolescente não podem ultrapassar a marca de 2,7 kg. No caso do trabalho em uma pedreira, além de ser perigoso e cansativo, com certeza há o risco de desenvolver doenças osteomusculares”, explica a especialista de saúde. De acordo com a enfermeira, a intensidade do serviço desempenhado pelo menino poderia lhe causar deformações na extremidade superior do osso do fêmur, localizado no interior da coxa, ao ponto de até provocar um defeito ortopédico que na medicina é conhecido como “coxa vara”.
A iminência de acidentes no ambiente de trabalho no caso de crianças e adolescentes é maior, conforme explica a coordenadora do Cerest. As atividades na pedreira, além disso, poderiam oferecer riscos aos sistemas respiratório e cardíaco do garoto. “O coração do menino poderia não aguentar o esforço, já que ainda está em fase de desenvolvimento”, afirma. A ausência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), situação a que todas as vítimas resgatadas na pedreira estavam submetidas, seria um agravante para problemas de respiração, devido à poeira provocada e aos resíduos tóxicos depreendidos da extração mineral.
Danos ao sistema psíquico do menino também seriam possíveis, por causa de traumas, estresse ou outras situações pelas quais o garoto poderia passar enquanto estivesse precocemente em um ambiente da vida adulta. “A exposição excessiva, e em horário inapropriado, ao sol também pode causar problemas de pele a crianças e adolescentes expostos a atividades em ambientes abertos”, acrescenta Ana Maria Mezzomo.
O serviço de extração de pedras está incluído na lista de piores formas de trabalho infantil (Lista TIP), reconhecida em 2008 pelo Governo Federal. Entre alguns dos problemas de saúdes decorrentes desse tipo de atividade, a Lista TIP indica “queimaduras na pele”, “doenças respiratórias”, “lesões e deformidades osteomusculares” e “comprometimento do desenvolvimento psicomotor”.
Fiscalização
De acordo com o auditor fiscal do MTE, Vanius João Corte, o pai de João Júlio chegou a trabalhar, em um momento anterior, na mesma pedreira em que o menino foi resgatado. No momento do recebimento das verbas rescisórias, ele compareceu com o garoto, que, segundo a fiscalização, não aparentava problemas de saúde. O agente trabalhista diz que, neste ano, foram flagrados outros dois casos de trabalho infantil nos entornos de Caxias do Sul, maior município próximo a Antônio Prado. “É comum o emprego de crianças e adolescentes na região. E a atividade mineral é forte devido ao solo rico em basalto”, comenta.
Na pedreira, o adolescente e os outros nove resgatados de condições análogas às de escravo desempenhavam as atividades sem registro em carteira de trabalho. O empregador no local também não fornecia ao grupo de trabalhadores escravizados as ferramentas para o serviço nem alojamento adequado, instalações sanitárias ou ambiente para preparar e consumir refeições. Por não apresentarem condições mínimas de segurança, as instalações foram interditadas. Ao fim do processo de fiscalização, todos os trabalhadores retornaram a suas casas, custeados pelo empresa responsável pelo caso, a Mineração Zulian.
A reportagem não conseguiu contato com o jovem, algum parente dele ou seu empregador para comentar o caso.
** nome fictício para preservar a identidade da vítima
* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
Justiça condena empregadora por abusos durante quase três anos. Vítima sofreu violência física, trabalhou sem receber e foi impedida de estudar ou ver a mãe
Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
A 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) condenou, em 18 de julho, Maria Aparecida da Rocha a 6 anos e 8 meses de prisão em regime inicial semiaberto, por torturar e reduzir à condição de escravo uma adolescente dos 15 aos 18 anos. A decisão foi publicada na última segunda-feira (22). Segundo a denúncia do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) que culminou na condenação, a menina foi vítima de abusos físicos e mentais enquanto prestou serviços domésticos à condenada no período entre 2004 e 2007, na região administrativa de Riacho Fundo II, ao sudoeste de Brasília (DF).
A jovem, com então 15 anos de idade, teria deixado sua cidade natal, Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, para ir trabalhar na casa da Maria Aparecida da Rocha, em agosto de 2004. Até fevereiro de 2007, a adolescente sofria ameaças verbais e violência física, sendo vítima de lesões provocadas por facas e alicates. Depois de três tentativas, ela conseguiu deixar o local após contatar seu tio, que imediatamente acionou a polícia. Junto dele, ela foi para Teresina, no Piauí.
Percurso entre a cidade da vítima e a casa em que foi escravizada. Exibir mapa ampliado
De acordo com o MPDFT, durante esse período de quase três anos a empregadora teria impedido que a jovem deixasse a residência em que trabalhava e pudesse ver a própria mãe. Ainda segundo a denúncia, os serviços nunca eram remunerados, e o acesso à escola, proibido. Há relatos de que a acusada usaria da menina também para oferecer serviços a outras residências.
Em declaração à Justiça, a vítima relata sucessivos abusos e agressões pelas quais passava. “A acusada, diariamente, por qualquer pequeno motivo ou pretexto, passou a surrá-la”, descreve o depoimento. Fios, facas e martelos teriam sido utilizados para provocar golpes desde o pescoço até as costas da adolescente. A menina começava a trabalhar todo dia por volta das duas da manhã, quando era acorda por agressões. Por não conseguir descansar tempo suficiente, ela conta que ficava o dia inteiro sonolenta, e isso seria motivo de ainda mais violência.
Trabalho doméstico infantilO trabalho doméstico está previsto na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), criada pelo decreto 6.481 assinado em junho de 2008 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com base na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro de 2011 haviam pouco mais de 250 mil crianças e adolescentes exercendo atividades do tipo por todo o Brasil: 67 mil na faixa de 10 a 14 anos, e 190 mil na faixa de 15 a 17 anos. Desse total, pelo menos 90% seriam do sexo feminino.
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Defesa
Contra os argumentos da promotoria, a ré alegou insuficiência de provas para a condenação, mas a Justiça não aceitou a apelação. Os magistrados mantiveram, na íntegra, a decisão condenatória proferida em primeira instância, e não acataram o recurso interposto pela defesa de Maria Aparecida da Rocha.
Para o desembargador Roberval Belinati, relator da condenação, os laudos de corpo de delito e as fotos anexadas nos autos da denúncia não deixam dúvida dos abusos cometidos contra a jovem. “As provas comprovam que a vítima foi submetida a ilegal e intenso sofrimento físico e mental, durante vários anos, como forma de castigo pessoal, em condições degradantes de alimentação, acomodação e trabalho, sem receber qualquer remuneração”, assinalou.
O magistrado observa, além disso, que a acusada manteve a menina presa e sem acesso a comunicação. “Além do trabalho excessivo, a acusada ainda a impedia de se comunicar com a família, restringindo sua liberdade de locomoção”, acrescenta.
Tortura e trabalho escravoRestrições à liberdade de ir e vir e trabalho forçado são duas definições previstas para as formas de escravidão contemporânea, tipificadas no artigo 149 do Código Penal brasileiro. A pena prevista pela lei prevê reclusão de dois a oito anos, bem como multa. Em casos em que a exploração de mão de obra análoga à de escravo envolve vítimas com menos de 18 anos, a punição é aumentada da metade. Na última atualização do cadastro de empregadores flagrados com o uso de trabalho escravo, a “lista suja” do trabalho escravo, mantida pelo governo federal, há pelo menos oito casos em que o crime de reduzir pessoas à escravatura aparece junto da exploração de crianças e adolescentes. O crime de tortura, por sua vez, está prescrito na lei 9.455/1997, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A prática é inafiançável e não anistiável, além de ser considerada crime hediondo e contra a humanidade. Para casos em que as vítimas são crianças, adolescentes, gestantes, idosos ou pessoas com deficiência a pena é aumentada em um sexto a um terço do total determinado pela Justiça. |
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Atualização de cadastro federal com empregadores que utilizaram mão de obra escrava tem pelo menos oito nomes de empregadores que também se beneficiaram da exploração de crianças e adolescentes, em atividades consideradas entre as piores formas de trabalho infantil
Por Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
Serviços forçados, submissão a condições degradantes de vida, jornadas exaustivas, restrições à liberdade de ir e vir e todas as demais situações características da escravidão contemporânea não são formas de violência que têm por alvo exclusivo homens e mulheres adultos. Fiscalizações com o objetivo de investigar o emprego de mão de obra análoga à escrava também encontram com frequência crianças e adolescentes sujeitas a tais violências.
De acordo com levantamento da Repórter Brasil, a atualização ocorrida em 28 de junho do cadastro de empregadores flagrados explorando pessoas em condição análoga à de escravatura, a chamada “lista suja” do trabalho escravo, contém, num total um de 142 novos nomes incluídos, a participação de pelo menos oito deles em casos de exploração laboral infantil. Mantida em conjunto pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), a relação é considerada uma das mais importantes ferramentas na luta pela erradicação da escravidão contemporânea no Brasil.
No total, a “lista suja” do trabalho escravo conta com 503 nomes (clique aqui para ver a tabela completa). A relação vem sendo atualizada semestralmente, desde o final de 2003, e reúne empregadores flagrados pelo poder público na exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão. O cadastro tem sido um dos principais instrumentos no combate à prática, através da pressão da opinião pública e da repressão econômica. Após a inclusão do infrator, instituições federais, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES suspendem a contratação de financiamentos e o acesso a crédito. Bancos privados também estão proibidos de conceder crédito rural aos relacionados na lista por determinação do Conselho Monetário Nacional.
A inclusão de oito empregadores flagrados com o uso da mão de obra de crianças e adolescentes entre os 142 novos nomes reforça o elo entre as formas contemporâneas de escravidão e o trabalho infantil. Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), publicado em 2011, cerca de 90% do montante de adultos sujeitos à escravatura em território brasileiro até aquele momento haviam começado a trabalhar antes dos 16 anos de idade.
Lista TIP e trabalho escravo
Em alguns dos casos em que a exploração infantil ocorre concomitante às formas de escravidão contemporânea, os serviços desempenhados por jovens, não raro, coincidem, por um lado, com aquelas descritas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). Com as bases lançadas em 1999 pela Convenção 182 da OIT, a Lista TIP passou a valer no país em 2008, a partir do decreto número 6.481, assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na relação, constam 89 atividades, com suas descrições e consequências para a saúde de crianças e adolescentes que as desempenham.
A legislação brasileira define o emprego de escravos como crime, previsto no artigo 149 do Código Penal. E, quando a prática incide sobre crianças e adolescentes, a pena aos infratores é mais severa. Para aqueles que utilizarem de mão de obra escrava, espécie de violação dos direitos humanos no interior das relações trabalhistas, a punição prevista é a de prisão por um período de até oito anos, além de multa, conforme a gravidade da violência praticada.
Nas recentes inclusões no cadastro federal de empregadores com trabalho escravo há a ocorrência, por mais de uma vez, de alguma das piores formas de exploração infantil previstas na Lista TIP.
Suja, e nas piores formas
Adelson Souza de Oliveira está na “lista suja” do trabalho escravo devido ao flagrante de quatro trabalhadores em situação análoga à de escravo, ocorrido em 2007, na Fazenda Verena II, no município de Novo Repartimento, no Pará. À época, o empregador era o então prefeito da cidade de Iaçu, na Bahia, pelo PMDB. Um pai e seus três filhos, um deles com menos de 17 anos, eram responsáveis pela limpeza do pasto do rebanho bovino criado na propriedade. Segundo a Lista TIP, a atividade desempenhada pelo adolescente, na ocasião, poderia lhe provocar cortes, perfurações e lhe expunha ao risco de doenças ou outros acidentes, pelo contato próximo a animais.
No desempenho de serviços semelhantes, e sujeito aos mesmos riscos, um grupo de sete pessoas, entre as quais crianças, foi resgatado da escravidão, em 2012, em uma área pertencente à empresa Líder Agropecuária – incluída na “lista suja” e que tem como um dos sócios o deputado estadual Camilo Figueiredo (PSD/MA). A água que o contingente libertado utilizava, para banho e consumo, era a mesma da qual os animais da Fazenda Bonfim, na zona rural de Codó, no Maranhão, bebiam.
O parlamentar maranhense, no entanto, não é o único político nessa situação. O deputado federal Urzeni de Rocha Freitas Filho (PSDB/RR) consta na “lista suja”, acrescido também ao fato de ter se beneficiado de trabalho infantil, segundo o Ministério Público Federal em Roraima (MPF/RR).
Entre um grupo de 16 resgatados sob responsabilidade de Sérgio Luiz Xavier, havia um adolescente com 16 anos de idade responsável pela aplicação de agrotóxicos. Conforme a Lista TIP, esse tipo de serviço, em contato com venenos, pode provocar desde problemas respiratórios até, em casos mais graves, doenças cardíacas. Então proprietário da Fazenda Terra Roxa, localizada em Cumaru do Norte, no Pará, o empregador entra para a “lista suja” por conta desse flagrante de trabalho escravo ocorrido durante o ano de 2006.
Outro episódio em que os empregos de trabalhos infantil e escravo aconteceram conjuntamente foi tema de reportagem publicada este ano. Juntamente a um grupo de 34 resgatados, todos imigrantes vindos do Paraguai, sete adolescentes trabalhavam na colheita de mandioca, na Fazenda Dois Meninos, de propriedade de Cleber Geremias, em Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Na ocasião, depois de libertados da condição de escravo, a Polícia Federal (PF) notificou os estrangeiros a deixar o país. A ação da PF foi alvo de polêmica e contrariou medidas de acolhimento a migrantes vítimas da escravidão, ratificadas pelo Estado brasileiro.
Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
Tipo de marisco muito apreciado na culinária do Recife, o sururu é frequentemente pescado por crianças e adolescentes de comunidades ribeirinhas urbanas da cidade
Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil
do Recife (PE)
Normalmente é assim. Os ribeirinhos da bacia do Pina, no Recife, saem para pescar o sururu ainda na barriga da mãe. Quem brinca é Ronaldo, morador da comunidade Ilha de Deus, enquanto está na superfície despejando o molusco numa galeia – em seguida, submerge novamente. A brincadeira, no entanto, tem o seu fundo de verdade, como diz o ditado. Hoje com 20 anos, o rapaz começou no ofício aos cinco. Espécie de marisco pequeno, a iguaria é muito comum em mercados, feiras, bares e restaurantes da capital pernambucana. Em geral, é preparada com leite de coco – quando ganha um sabor adocicado – e servida com farinha de mandioca e limão. Seu caldinho, apreciado tanto em restaurantes “finos” quanto em quiosques de praia, é considerado afrodisíaco. “Desde que nasci trabalho com o sururu. Com cinco anos já estava na maré. Chegava a faltar na aula para ir pescar”, conta Ronaldo, que parou de estudar no sexto ano do ensino fundamental.
Quando este mergulha para pegar mais sururu, quem fala é Gustavo*, parceiro de pescaria. Sentado na beira da canoa já repleta de bacias com o molusco, ele mexe freneticamente as pernas, de forma alternada, dentro da galeia – espécie de caixote – mergulhada na água lodosa. “Estou lavando o sururu”, explica o garoto, de 15 anos. O movimento repetitivo não é o único desconforto. O contato com a casca fina do marisco causa inúmeras feridas na sola de seu pé. “Não tem jeito, paciência, tem de fazer isso. As feridas a gente lava na maré, que a maré faz sarar.”
Estamos nas proximidades das pontes Governador Paulo Guerra e Engenheiro Antônio de Góes – que ligam a Zona Sul ao Centro e à Zona Norte do Recife –, no meio da bacia do Pina, ecossistema situado em plena área urbana, na parte interna do porto da capital pernambucana, formado pela confluência dos rios Capibaribe, Tejipió, Jordão e Pina. Da Ilha de Deus, Gustavo e Ronaldo remaram bons minutos até um banco de lodo onde era possível pescar o sururu. Em uma das margens, pode-se avistar as casas de alvenaria da comunidade Brasília Teimosa, antiga favela de palafitas que se tornou famosa nacionalmente depois da visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apenas uma semana após sua posse, em janeiro de 2003. No lado oposto, destacam-se edifícios de alto padrão.
Trabalho infantil
A pesca do sururu é uma das principais atividades econômicas das comunidades ribeirinhas dessa área, todas formadas há décadas. E, há décadas, os moradores desses locais começam desde criança a exercer esse tipo de trabalho, normalmente acompanhando os pais, que, por sua vez, não têm condições financeiras de sustentar a família sozinhos. Como acontece em muitos outros casos, na coleta desse molusco o trabalho infantil é naturalizado.
É a maré que determina que horas Gustavo e Ronaldo começam a trabalhar. Tem dias que eles saem às quatro da manhã. Outros, às sete. Os ribeirinhos gostam de aproveitar as marés baixas, pois desse modo o sururu fica mais próximo da superfície. Há vezes, porém, em que é preciso descer a cinco metros de profundidade, sob o risco de faltar fôlego e sentir câimbras. “Já salvei tanto criança quanto gente grande de se afogar”, conta Gustavo. Em geral, dependendo do rendimento, os dois amigos ficam de duas a quatro horas pescando o molusco. Assim que voltam para casa, eles o cozinham e pagam alguém da própria comunidade para catá-lo. “Catar” o sururu significa, na verdade, abri-lo um a um e retirar sua carne. O trabalho, igualmente muitas vezes realizado por crianças, é extremamente desgastante e pode causar feridas nas mãos por conta da casca afiada do pequeno marisco.
Gustavo e Ronaldo costumam vender o produto “final” no Mercado São José, o mercado municipal da cidade. “Vendemos a seis, cinco reais o quilo. Agora está mais barato. Tem que trabalhar mais”, diz o adolescente de 15 anos, que usa parte do que recebe para comprar roupas e deixa o resto em casa, onde vive com a mãe e duas irmãs, de 12 e sete anos. “Com o que ganhamos, dá pelo menos para sobreviver.” Para seguir trabalhando, Gustavo abandonou a escola ainda mais cedo que Ronaldo, na quinta série. Mas não é o que quer fazer a vida toda. “Ainda sou adolescente. Quando crescer quero arrumar um serviço melhor. Quero ser jogador de futebol do Sport”, revela o torcedor fanático do time pernambucano.
O decreto presidencial 6.481, de 2008, inclui tanto a coleta de mariscos quanto as atividades em mangues e lamaçais ou que envolvam mergulhos na lista de piores formas de trabalho infantil. De acordo com o documento, além das intempéries climáticas, as crianças e adolescentes que pescam sururu estão expostas a “posturas inadequadas e movimentos repetitivos; acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes; horário flutuante, como as marés; águas profundas”. Como resultado, podem sofrer queimaduras na pele, envelhecimento precoce, câncer de pele, desitratação, doenças respiratórias, fadiga, dores musculares nos membros e na coluna, ferimentos, distúrbios do sono e afogamento.
Já meninos e meninas obrigadas a mergulhar em suas atividades laborais, como é o caso da coleta de mariscos, correm o risco de se afogar, terem a membrana do tímpano perfurada e sofrerem de uma série de enfermidades, como embolia gasosa, otite, sinusite e labirintite. O trabalho em mangues e lamaçais, por sua vez, expõe crianças e adolescentes com menos de 18 anos à umidade, cortes e perfurações e contatos com excrementos, situações que podem resultar em rinites, bronquites, dermatites e leptospiroses, entre outras doenças.
Contraste
Quem “guia” a reportagem é Daiane. Moradora da Ilha de Deus, ela também costumava pescar sururu, “ofício” que igualmente começou a exercer desde pequena. Hoje, aos 20 anos, faz trabalhos de manicure e de diarista e pretende fazer faculdade de engenharia num futuro próximo. “Normalmente, quem vai para a maré é o homem, enquanto a mulher fica na cata, muitas vezes com a ajuda dos filhos. Mas, quando não tem homem, vai a mulher mesmo”, explica. Há alguns anos, quando ainda era adolescente, a jovem participou de uma ação do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec) contra o trabalho infantil na sua comunidade. O resultado, segundo ela, foi muito bom. “Diminuiu a incidência de trabalho infantil na pesca do sururu na Ilha de Deus.” Nos últimos dois anos, além disso, a região foi urbanizada pela Prefeitura do Recife, política que fez melhorar as condições de moradia da população local.
Melhorias que ainda não chegaram para a população ribeirinha do Pina. Na “entrada” da comunidade, no entanto, a realidade é um tanto distinta. Inaugurado em outubro do ano passado, o RioMar Shopping destoa na paisagem. Terceiro maior centro de compras do Brasil, atrás do Shopping Leste Aricanduva, de São Paulo, e do Salvador Shopping, o estabelecimento é destinado em parte ao consumo de alto luxo, com lojas como Hugo Boss, Chanel Fragrance & Beauté, Daslu, e Diesel. Partindo do ponto de encontro no RioMar, conforme Daiane e a reportagem caminham em direção aos manguezais, as casas simples de alvenaria vão dando lugar a apertadas construções de madeiras, e ruas asfaltadas tornam-se ruelas e becos de terra. Espalhadas pelo chão, bacias cheias de sururu. Sob um telhado de zinco, uma mulher descasca o molusco.
Numa dessas moradias precárias, vive, com a família, Mariana*. “Pego sururu desde os dez anos, para ajudar minha mãe”, diz a garota, hoje com 14 anos. Ela costuma ir com o marido de uma das irmãs e um vizinho, ambos adultos. A tarefa é alternada: às vezes fica incumbida de lavar o marisco pescado na galeia, o que causa feridas nos pés. Outras vezes, ela própria mergulha para buscá-lo. “A água bate no peito”, conta. Por causa do trabalho, a menina parou de estudar na quarta-série. Não chegou a aprender a ler e escrever.
Palafitas
Acompanhada de Daiane e da reportagem, Mariana sobe em uma das canoas ancoradas na beira do mangue e começa a remá-la em direção ao mar, distante alguns quilômetros – no meio do caminho, alguns minutos depois, encontraríamos Gustavo e Ronaldo. Do barco, a visão é ainda mais impressionante. Inúmeras palafitas avançam sobre o rio. Sacos de lixo e entulhos de todo o tipo, e ratos correndo na borda ou até dentro da água compõem a paisagem. Após alguns minutos, o RioMar Shopping surge imponente ao fundo. Mariana liga o motor. “Quando eu pescava, era só no remo. Agora alguns barcos têm motor. O pessoal pagar uns R$ 500 para um morador construir a canoa. O motor custa uns R$ 150”, explica Daiane.
A primeira parada é na Ilha de Deus, onde várias mulheres e algumas meninas estão sentadas catando o sururu. Uma delas é Edlene Maria Alves da Silva, de 45 anos. “Cheguei novinha aqui. E desde que cheguei, trabalho com o sururu. Antes só pescava, depois comecei mais a catar. Mas ainda pesco.” Segundo ela, está cada vez mais difícil sobreviver com a venda do molusco. “Está chovendo muito. O braço de mar aqui é fraco. Quando chove dois, três dias, o sururu morre, porque a água fica salobra, e ele vive mais na água salgada”, lamenta.
A auditora-fiscal Paula Neves, coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Infantil da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), lembra que no Recife as crianças e adolescentes não ficam restritas à pesca e à cata do sururu. Muitas o vendem nas praias da cidade. A comercialização de alimentos e outros produtos na orla da capital pernambucana é uma das atividades com maior incidência de trabalho infantil. “Os meninos que trabalham na praia normalmente param de estudar na oitava série. Muitos deles dizem que trabalhando por três ou quatro dias por semana ganham mais do que o pai”, diz Paula.
*nomes alterados para preservar a identidade dos entrevistados
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Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, relatórios destacam gravidade do problema. Segundo OIT, essa forma de exploração atinge 15,5 milhões de crianças e adolescentes
Por Stefano Wrobleski, da Repórter Brasil
No Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, celebrado nesta quarta-feira, 12 de junho, organizações da sociedade civil e autoridades se mobilizam para chamar a atenção para o trabalho infantil doméstico. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que publicou relatório destacando a gravidade da exploração de crianças e adolescentes em residências, o problema afeta aproximadamente 15,5 milhões em todo o mundo. São meninos e meninas sujeitos a violência, abusos sexuais e doenças físicas e mentais, e que têm dificuldades e/ou não conseguem acompanhar a escola. O trabalho infantil doméstico também foi tema de relatório publicado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), e de um dos capítulos do relatório “Brasil livre de trabalho infantil”, lançado recentemente pela Repórter Brasil.
Baixe os relatórios:
OIT – Erradicar o trabalho infantil no trabalho doméstico (em inglês, espanhol e francês)
FNPETI – O trabalho infantil doméstico no Brasil
Repórter Brasil – Brasil livre de trabalho infantil
Das 15,5 milhões de vítimas de trabalho infantil no planeta, 5 milhões de crianças e adolescentes são exploradas em países que não proíbem a prática e que, portanto, não ratificaram a Convenção 182 da OIT, que a proíbe de ser desempenhada por menores de 18 anos. Conforme a convenção, a atividade é considerada uma das piores formas de trabalho infantil. O relatório também lembra a Convenção 138, que define a idade mínima para admissão em 15 anos, independentemente da profissão. Apesar de ter sido ratificada por 161 países, quase metade (7,4 milhões) dos 15,5 milhões de trabalhadores domésticos com menos de 18 anos têm entre 5 e 14 anos.
A questão não pode ser entendida “puramente em termos de direitos da criança ou como um problema trabalhista”, lembra o relatório, citando que, de todos os 776 milhões de analfabetos no mundo, dois terços são mulheres. O dado reforça o argumento de que existe uma grande diferença entre as oportunidades de trabalho para mulheres e homens jovens. “A posição de subordinação e marginalização das garotas em muitas sociedades compõe os problemas que elas enfrentam no mercado de trabalho”, diz o estudo. Entre os que têm menos de 18 anos ocupados no trabalho doméstico, 73% são mulheres.
Debates e lançamento de campanha no BrasilUma série de debates, atos e ações foram marcados para a semana de 12 de junho, o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. A Fundação Telefônica Vivo, parceira da Repórter Brasil no especial Meia Infância, deu início a uma nova etapa da campanha “É da Nossa Conta!”, com eventos focados nas regiões Norte e Nordeste, regiões com os maiores índices de trabalho infantil. Leia na Rede Promenino. A OIT e o FNTEPI, em conjunto com outras entidades, iniciaram a campanha “Tem criança que nunca pode ser criança”, que pode ser conferida clicando aqui. Já o MPT lançou a campanha “Trabalho infantil não é legal”, com inserções nos meios de comunicação (veja vídeo abaixo). O órgão também preparou atividades no Amazonas, Maranhão, Paraná, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Ceará (clique para saber mais sobre os eventos e confira o vídeo abaixo). |
No Brasil
Apesar de ter ratificado as convenções 182 e 138 da OIT em 2000 e 2001, respectivamente, o país ainda tem 258 mil crianças e adolescentes ocupados em trabalho doméstico. Os dados são do IBGE e foram organizados no relatório do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).
De acordo com Rafael Dias Marques, coordenador nacional do programa de combate ao trabalho infantil do Ministério Público do Trabalho (MPT), a pobreza já não é mais a causa essencial no Brasil para a existência de trabalho infantil. Segundo ele, aproximadamente 40% das famílias que exploram esse tipo de mão de obra não está na faixa de extrema pobreza atualmente. “A pobreza está hoje aliada ao desejo de acesso das crianças e adolescentes ao bens de consumo, o que conduz também a uma entrada precoce ao mercado de trabalho”, diz. Ele também defende que o país faça fortes investimentos para atender às crianças e às famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. O coordenador ainda ressalta a importância de campanhas de conscientização como forma de romper com a aceitação social existente em relação ao trabalho infantil.
Os dados do relatório produzido pelo FNPETI mostram que a região que concentra o maior número de crianças e adolescentes em trabalhos domésticos é o Nordeste, com 39,8% do total. Quase todos os jovens são mulheres (93,7%), a grande maioria é de negros (67%) e está em meio urbano (79,3%). Veja mais no infográfico abaixo.
Trabalho perigoso
Quase metade das crianças vítimas de trabalho doméstico estão submetidas a condições que podem afetar sua saúde, segurança ou integridade moral, além de jornadas de trabalho de mais de 43 horas por semana. Outros perigos incluem trabalho noturno e exposição a abusos físicos ou sexuais, mas não existem dados confiáveis sobre isso, segundo o relatório, que também cita um estudo feito no Brasil revelando que as crianças envolvidas em trabalho doméstico têm muito mais chances de sofrer com dores osteomusculares do que as empregadas em outros setores.
A OIT conclui que “a pobreza está invariavelmente por trás da vulnerabilidade de uma criança ao trabalho doméstico” e o “trabalho infantil doméstico não é simplesmente uma preocupação das crianças, suas famílias e comunidades”. Por isso, deve ser combatido com políticas amplas de desenvolvimento e decisões sobre a alocação de recursos orçamentários. Além disso, a entidade aponta ser importante também a criação de leis que estendam aos trabalhadores domésticos os mesmos direitos de outras categorias porque “a proteção a trabalhadores domésticos jovens e o avanço para a eliminação do trabalho infantil doméstico estão interrelacionados e se reforçam mutuamente”.
Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
Crianças e adolescentes trabalham na cata de caranguejos na capital da Paraíba, prática que, numa consequência extrema, levou ao afogamento de um menino de 11 anos
Por Igor Ojeda, da Repórter Brasil
de João Pessoa (PB)
Distante alguns quilômetros das movimentadas praias de Tambaú e do Cabo Branco, o bonito centro histórico de João Pessoa, capital da Paraíba, abriga centenas de edificações de diferentes arquiteturas e épocas. Igrejas, sobrados e casas, além de ruas e praças, compõem o cenário. Barroco, rococó, colonial, maneirismo, art noveau… há estilos para todos os gostos. Caminhando rumo à chamada Cidade Baixa o visitante se depara com um conjunto compacto de casarios coloniais. Chama a atenção a igreja e o antigo Hotel Globo, que hoje funciona como centro cultural. Mal sabe o turista, no entanto, que logo atrás desses prédios “esconde-se” uma dura realidade: o Porto do Capim, comunidade de baixa renda localizada às margens do rio Sanhauá.
São cerca de 350 famílias pobres vivendo sob condições muito difíceis, morando em casas simples de alvenaria ou barracos de madeira à beira do mangue. Seus moradores, em geral, trabalham em oficinas mecânicas e madeireiras próximas, ou como descarregadores de caminhão, entre outras ocupações. Muitos recebem o Bolsa Família, que não é suficiente, porém, para o sustento da famílias. Na comunidade não há posto de saúde, quadra poliesportiva ou equipamentos culturais. E a única escola pública atende apenas alunos da primeira à quarta série do ensino fundamental.
A total ausência de opções de lazer e cultura e a necessidade de complementar a renda se traduzem numa triste realidade que acompanha o Porto do Capim há anos. Crianças e adolescentes passam horas coletando caranguejos-uçás e guaiamuns – outro tipo de caranguejo – nos mangues locais para depois os venderem para a população da cidade. “Durante o ano inteiro, eles armam a ratoeira pela beira do mangue para pegarem o guaiamum e depois saem vendendo. Já durante a andada do caranguejo-uçá, é muita criança dentro do rio. É mais perigoso, porque precisa atravessar o rio, pode cair dentro da água”, explica Sebastião Camelo, presidente da Associação dos Moradores do Porto do Capim. A andada é o período em que há o acasalamento e a desova dos caranguejos-uçás, o que os leva a ficarem mais tempo fora da toca, tornando-os presas fáceis. A cata desses crustáceos é proibida durante essa época.
Para vender e para comer
“Os meninos pegam os caranguejos tanto para comer quanto para vender. A criança às vezes quer uma roupa, mas o pai não pode dar. E muitas vezes precisa levar alguma comida para casa”, conta Sebastião. “Aqui, a menor casa tem cinco filhos.” Segundo ele, há na comunidade cerca de 400 crianças de um a dez anos de idade. O Bolsa Família, explica, não alcança para pagar todas as contas. “Tem família que às vezes bate em casa porque não tem um prato de comida para comer”, diz.
A atividade em mangues é considerada uma das piores formas de trabalho infantil, de acordo com o decreto presidencial 6.481, de 2008. Segundo tal documento, nesse tipo de trabalho crianças e adolescentes são expostos à umidade e excrementos, cortes e perfurações e picadas de serpentes. Além disso, podem contrair doenças como rinite, resfriado, bronquite, dermatite, leptospirose e hepatite viral. “Aqui as crianças se machucam muito, pois no mangue tem muito galho, tocos, além de entulho jogado, como vidro, ferros, até pedaços de vasos sanitários. É muito arriscado. Tem um caso de um morador que quando era criança chegou a rasgar o pé num ferro, de um lado ao outro. Levou 36 pontos. Além disso, o próprio caranguejo pode cortar o dedo dos meninos”, explica o presidente da Associação dos Moradores do Porto do Capim.
Tragédia
Uma consequência extrema do trabalho infantil no mangue da comunidade aconteceu em janeiro deste ano, quando uma criança de 11 anos morreu afogada enquanto catava caranguejo. “A maré estava seca. Quando o caranguejo correu, o menino escorregou e o barro o puxou para baixo. Ele ficou em pé, atolado, encoberto pela lama. Não tinha adulto perto na hora. Quando chegamos para tentar salvá-lo, não o encontrávamos, pois pensamos que a maré o tinha levado. Mas ele estava exatamente onde tinha afundado. Demoramos 40 minutos para achá-lo”, lembra Sebastião. Os bombeiros e paramédicos tentaram reanimar a criança, mas ela já chegou morta ao hospital. “Ele era muito brincalhão, todo mundo gostava dele.”
À Repórter Brasil, o pai do menino nega que o filho, que ainda estava aprendendo a nadar, catava caranguejo para vender. “Eu dizia a ele que não havia precisão, pois eu sou bem empregado, trabalho na madeireira. Trabalho muito para que meus filhos não precisem trabalhar. Tanto que ele não vendia, o que ele pegava doava para a comunidade. Eu não deixava, não queria que ele catasse caranguejo nem por esporte. Sei que o rio é fundo. Mas ele se juntou com outros meninos… infelizmente aconteceu”, diz o homem, que tem outros cinco filhos. Segundo ele, no mesmo dia do acidente um vizinho o avisou que o menino tinha lhe dado dez caranguejos. “Quis pagar, mas meu filho não aceitou. Ele era minha vida, mas era teimoso. Foi estripulia de pirralho.”
Um dia antes da tragédia, um incidente inusitado assustou a comunidade. Um boato de que Gabriel* havia caído do trapiche local causou correria entre os moradores. Mas o garoto de oito anos estava longe dali, acompanhando a mãe em uma missa. Até hoje não se sabe o que gerou o rumor, mas a população do Porto do Capim consideram-no um aviso do que ocorreria 24 horas depois. Para completar, o menino era primo da vítima de afogamento. “Eu não estava junto não. Ele passou de manhã para o mangue, mas minha mãe mandou voltar. De tarde voltou, escondido”, conta Gabriel, que desde os cinco anos de idade também pega caranguejo-uçá e guaiamum. “Hoje eu estava pegando guaiamum na ratoeira. Caranguejo-uçá a gente pega na andada, com a mão, com pau, com a chinela”, explica. O garoto diz que se corta com frequência, em pedaços de vidro e madeira. “Pego mais ou menos uma sacola por dia [cerca de 15 quilos], para comer e para vender. Uma parte eu levo para casa, outra eu dou para minha tia cozinhar e vender no bar dela. O dinheiro eu dou para minha mãe guardar.”
Políticas públicas
O falecimento do menino de 11 anos no Porto do Capim levou o procurador-chefe do Trabalho no estado, Eduardo Varandas, a abrir um procedimento para acompanhar a implementação de políticas públicas de combate ao trabalho infantil na Paraíba. Quem está à frente do caso é a procuradora Edlene Lins Felizardo, titular da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Coordinfância) no estado. Ela está propondo à Prefeitura de João Pessoa a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) contendo uma série de medidas a serem tomadas para melhorias das condições de vida no Porto do Capim, como sua revitalização. “Nesse TAC, incluí não apenas a questão dessa comunidade, mas também diversos outros assuntos relacionados ao trabalho infantil na cidade. Temos problemas também nos mercados, feiras livres e praias, por exemplo, onde crianças costumam vender amendoins”, diz a procuradora, que também acionou o Conselho Tutelar por meio de uma notificação recomendatória. Nesta, pede-se que o órgão fiscalize a incidência de trabalho infantil nos mangues e comunique a situação ao Ministério Público do Trabalho e à Secretaria de Assistência Social do município, para que as crianças sejam encaminhadas, por exemplo, ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras), ambos do governo federal.
Edlene espera que a Prefeitura formule uma solução que contemple as necessidades da comunidade do Porto do Capim. “Há o problema de ser uma ocupação em uma área da União. Mas você não pode simplesmente pegar as famílias e expulsá-las. É um problema político que a Prefeitura tem de resolver”, opina. Segundo Sebastião, da associação de moradores, o ideal seria revitalizar o local, reformando as casas, e construir um píer para ser usado como ponto turístico.
A reportagem falou com a assessoria de imprensa da Prefeitura de João Pessoa, que a pôs em contato com a secretária de Desenvolvimento Social Marta Geruza Gomes. Esta, por sua vez, não se posicionou sobre o assunto até o fechamento desta matéria.
* nome alterado para preservar a identidade do entrevistado
Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil