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Crianças vítimas de trabalho infantil estão mais sujeitas a ter problemas com aproveitamento escolar, saúde e socialização
Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil
“Trabalho para me preparar para a vida”. Essa frase, dita por um menino de 14 anos, impressionou a coordenadora de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) do Brasil, que conduzia encontros para um estudo sobre exclusão escolar no país. “Aquilo acabou comigo. Não deveria ser a escola, a infância a preparar para a vida?”, pergunta Maria de Salete Silva.
Para as abordagens mais modernas de políticas públicas para a infância, o acesso à educação e a erradicação do trabalho infantil são um desafio conjunto. “Sabemos hoje que não basta haver escola, é preciso garantir a universalização da matrícula e a aprendizagem adequada, na idade certa. Com uma realidade de trabalho infantil, não há como fazer isso”, diz Maria de Salete.
O desempenho e o abandono escolares são indicadores importantes da vulnerabilidade na infância, que, em muitos casos, no Brasil, está ligada ao trabalho precoce. Por afastar a criança da escola, a vulnerabilidade infantil também se converte facilmente em vulnerabilidade de adultos. Um estudo da OIT apontou, por exemplo, que mais de 90% dos trabalhadores brasileiros resgatados de situação análoga à de escravidão foram também explorados durante a infância.
Para proteger a infância e a adolescência, a legislação brasileira proíbe qualquer trabalho para crianças com menos de 14 anos e reconhece o direito do adolescente à profissionalização, desde que com “respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”, segundo o artigo 69 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
De acordo com Renato Mendes, coordenador de erradicação do trabalho infantil da OIT e um dos principais estudiosos do tema no Brasil, são três os aspectos do desenvolvimento individual afetados pelo trabalho infantil: o aproveitamento escolar, a saúde e a socialização.
Educação
No estudo da Unicef, conduzido simultaneamente em mais de 20 países, concluiu-se que o trabalho infantil contribui duplamente para a exclusão escolar: de forma direta, no caso das crianças que deixam a escola para trabalhar; e de forma indireta, porque o trabalho prejudica o desempenho escolar, e o aluno com defasagem de aprendizado deixa a escola mais facilmente. “O traballho infantil e o atraso escolar são os fatores universais da exclusão escolar, em todos os países”, concluiu Salete.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) permite medir o impacto do trabalho na defasagem escolar das crianças brasileiras. O doutorado da pedagoga Amélia Artes analisou dados da PNAD de 2006 relativos a crianças de 10 a 14 anos e constatou que o trabalho tem impacto uniforme sobre os alunos dessa faixa etária, meninos e meninas. “Prejudica o desempenho tanto no caso dos meninos, que trabalham mais fora de casa, quanto no caso de meninas, que fazem mais trabalho doméstico”, explica Amélia. A tese dela investigou se o trabalho fora de casa, estatisticamente mais frequente entre meninos, poderia ser um fator que contribuiu para o pior desempenho deles.
A pesquisa encontrou defasagem idade-série com maior frequência entre as crianças que trabalham: em 2006, 68,4% dos meninos e 49,4% das meninas que trabalhavam estavam atrasados na escola, enquanto esse percentual cai para 50,5% e 41,3%, respectivamente, entre meninos e meninas que não trabalham.
No Brasil, segundo relatório da Unicef, publicado em agosto deste ano, são 3,6 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola. Para eles, frequentar a escola seria obrigatório, de acordo com a legislação brasileira. “Não se pode chamar isso de acesso universal à educação, temos insistido em derrubar esse mito no Brasil. Mesmo na faixa do Ensino Fundamental (dos 6 aos 14 anos), em que 98% estão matriculados, a parcela dos 2% fora da escola representa mais de 600 mil crianças”, diz Maria Salete.
Como os dois grandes fatores determinantes da exclusão, figuram o trabalho infantil e o atraso escolar. Por isso, universalizar a matrícula sem investir na qualidade da escola e no acompanhamento adequado da criança é “enxugar gelo”, nas palavras da representante do Unicef. “As escolas poderiam se envolver muito mais no combate ao trabalho infantil e à vulnerabilidade. Elas precisam sentir que também são parte da rede de atenção e do sistema de garantias à criança”, afirma.
Saúde
Um exemplo da combinação de esforços vindos de várias áreas para a erradicação do trabalho infantil é um termo de cooperação assinado entre o Ministério da Saúde e o Ministério Público do Trabalho (MPT) no final de 2010. Desde 2004, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem procedimentos para identificar se trabalham os menores de 18 anos atendidos na rede pública de saúde. O acordo com o MPT permitiu mais eficiência no encaminhamento dessas crianças e jovens à rede de proteção local.
Carmen Silveira, coordenadora de vigilância da saúde do trabalho no Ministério da Saúde, integra ainda grupos de trabalho interministerais que estudam maneiras de melhorar essa articulação. Segundo ela, os postos de atendimento emergencial têm condições de identificar se crianças e jovens se acidentaram ou desenvolveram alguma doença em função do trabalho.
Entre 2007 e 2011, levantamento preliminar do SUS identificou mais de 7,5 mil casos no país, muitos envolvendo acidentes de trabalho doméstico ou no campo. Segundo Renato Mendes, da OIT, acidentes de trabalho atingem duas vezes mais crianças que adultos, já que elas não atingiram a maturidade do de desenvolvimento físico e motor. “A visão periférica, por exemplo, só chega ao fim de seu desenvolvimento entre os 18 e 21 anos. Descobriu-se que, por esse motivo, é altíssimo o índice de acidentes entre crianças e adolescentes que trabalham na colheita do babaçu, uma árvore espinhenta. Algumas são feridas nos olhos e perdem à visão”, diz.
Na lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, que o Brasil promete erradicar até 2015, constam atividades consideradas inadequadas por oferecerem claros riscos à saúde e ao desenvolvimento físico de adolescentes. “Há incidência de câncer de pele, por exemplo, entre crianças que trabalham nas praias, no campo ou nas feiras, expondo-se ao sol por longos períodos e sem proteção”, conta Carmen.
Socialização
Ainda do ponto de vista da saúde, a convivência de crianças entre si é importante para seu pleno desenvolvimento. “O contato com o lúdico é importante”, diz Carmen. O “lúdico”, essencial ao desenvolvimento infantil, envolve contato com outras crianças e tempo de brincadeira, que são roubados por uma jornada de trabalho.
Crianças e adolescentes em condições de descobrir e exercitar seus potenciais tornam-se adultos mais preparados para a vida, concordam especialistas de várias áreas, especialmente em sociedades e mercados de trabalho cada vez mais exigentes. O economista Márcio Pochmann, especialista em estudos do trabalho, defende, por exemplo, que o ingresso no mercado de trabalho moderno deveria acontecer depois de um ciclo de educação intensiva e formação de personalidade que, em geral, só vai se concluir depois dos 20 anos.
Pela experiência de Salete, do Unicef, é uma questão delicada convencer a sociedade de que trabalho não só não ajuda, como também atrapalha o desenvolvimento da criança. “Não é que os pais não valorizem a formação do filho. Muitos querem que os filhos estudem, tenham oportunidades que eles próprios não tiveram, mas não conseguem entender que trabalho desprotegido não é formação”, afirma. “É comum achar que o menino que trabalha no campo está aprendendo o ofício do pai, e que a menina que olha os irmãos treina para um dia cuidar dos próprios filhos”.
A defasagem escolar, como consequência do trabalho infantil, também é um problema impedindo a socialização adequada das crianças e adolescentes com colegas da mesma idade. “Nos últimos anos do Ensino Fundamental, isso fica muito evidente. Metade dos alunos de 15 a 17 anos, que deveriam estar no ensino Médio, estão no Ensino Fundamental”, diz Salete, do Unicef.
O trabalho desprotegido na faixa etária dos 15 aos 17 anos tem preocupado, e equacionar o problema da educação de qualidade é fundamental para manter o interesse dos jovens na escola. “Acontece muito: o adolescente, desanimado, para de estudar para fazer algum trabalho que lhe parece mais atraente. Aí ele volta no ano seguinte para a Educação de Jovens e Adultos. Como esperar que o adolescente sinta que a escola é lugar para ele, se ora ele é tratado como uma criança grande, ora como um adulto pequeno?”, pergunta Salete.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente
Por que parcela significativa da sociedade brasileira ainda defende trabalho infantil e minimiza a gravidade desta forma de exploração?
Por Fernanda Sucupira, da Repórter Brasil
Ainda que a luta pela erradicação do trabalho infantil e a consciência sobre esse problema social venham crescendo nas últimas décadas, quem atua na área costuma se deparar com argumentos de pessoas de diferentes setores da sociedade a favor das atividades laborais de crianças e adolescentes.Uma das principais justificativas é o de que é melhor que meninos e meninas estejam trabalhando do que na rua, sem fazer nada, vulneráveis ao uso de drogas e à criminalidade.
Segundo Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional para a Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (FNPeti), essa ideia é uma falácia. “Várias formas de trabalho infantil favorecem que crianças e adolescentes sejam empurrados para o crime organizado, para o tráfico de drogas, para o tráfico de pessoas, para a exploração sexual. Muitas vezes nesse contexto são submetidos a xingamentos, espancamentos, violência, abuso sexual”, exemplifica.
Além disso, essa ideia não se confirma quando são feitas pesquisas com adultos que estão encarcerados ou com adolescentes em medidas socioeducativas. “A imensa maioria dos presidiários trabalhou na infância, e esses adolescentes quando cometeram o delito já haviam trabalhado ou estavam trabalhando. De que forma o trabalho infantil preveniu a marginalidade deles?”, pergunta Marinalva Cardoso Dantas, auditora fiscal do trabalho em Natal (RN). Para ela, é justamente trabalhando que eles acabam caindo na criminalidade, é o trabalho que os coloca na rua.
Outra concepção bastante presente e complementar à anterior é a de que o trabalho dignifica o ser humano, molda o caráter, forma valores, portanto, é benéfico a crianças e adolescentes. É um valor cultural que, pelo menos no que se refere à população infanto-juvenil, também não condiz com a realidade. “Nosso contra-argumento é de que para crianças e adolescentes, em idade de plena escolarização, cumprir a jornada escolar, ser pontual, realizar atividades, fazer as tarefas e estudar, tudo isso são condições que favorecem a formação do caráter”, defende a secretária executiva do FNPeti.
Ela afirma que há pouca valorização da educação integral, das práticas esportivas, culturais, de lazer, do exercício da criatividade e do lúdico, atividades que contribuem muito mais para o desenvolvimento físico e emocional da criança do que o trabalho infantil, que impõe uma rotina de adulto e subtrai a condição de infância. No entanto, segundo Oliveira, é educativo e recomendável que crianças e adolescentes participem com suas famílias de uma divisão solidária de tarefas, o que os prepara para a vida, fortalece o sentimento de solidariedade, de responsabilidade para com o ambiente em que se vive.
Muitos utilizam sua própria história, ou a história de pessoas proeminentes, para exemplificar os efeitos positivos ou, no mínimo, nulos do trabalho infantil em uma trajetória de sucesso. É comum inclusive entre os políticos utilizar esse recurso, apontando pessoas como o ex-presidente Lula para mostrar que essas atividades não acarretam prejuízos para o futuro das crianças. “Essa é uma irresponsabilidade grande dos brasileiros porque essas pessoas querem nos convencer de que são bem sucedidas porque trabalharam na infância, caso contrário seriam fracassadas”, afirma a auditora fiscal de Natal. Dantas conta que ela própria já foi confrontada inúmeras vezes, inclusive em entrevistas jornalísticas, por pessoas que diziam que trabalhavam desde pequenas e que não havia nenhum problema nisso.
Se em alguns casos o trabalho infantil não surte efeitos nocivos, essa não é a regra para a maioria dos que são obrigados a trabalhar precocemente. “Crianças que trabalham ficam com mil problemas psicológicos, autoestima baixa e não vão para a escola. Depois têm que aceitar tudo o que ninguém quer, o que não presta, trabalhos perigosos, desagradáveis, porque não se prepararam”, diz Dantas. Para a secretária executiva do FNPeti, não se pode deixar que algumas exceções sejam vistas como regra. “Quem mais da família do Lula que passou pelo trabalho infantil teve a projeção que ele tem?”, questiona. “Foi a militância sindical e não o trabalho infantil o que formou o Lula. Foi apesar do trabalho infantil e não por causa dele”, avalia.
Preconceito de classe
Para Rafael Dias Marques, da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (MPT), na visão de quem defende essa prática, o trabalho é um mal menor. “Essas pessoas não têm a concepção de que é altamente nocivo, de que pode trazer os mesmos prejuízos que as drogas e o crime”, afirma. Ele acredita que elas não sabem das dificuldades de aprendizado causadas pelo trabalho infantil; do grande risco que crianças e adolescentes têm de se acidentar nessas atividades. Não levam em conta que são retirados do convívio familiar, afastados do lazer, da brincadeira, do ócio. “A sociedade entende o trabalho como solução para a criança pobre, no lugar da educação, de garantir a proteção integral por parte do Estado”, completa o procurador do trabalho.
Isso revela que nesse discurso de defesa do trabalho infantil está presente também um preconceito de classe, uma discriminação em relação à população mais pobre. Num momento em que filhos e filhas das classes altas estão adiando cada vez mais a entrada no mercado de trabalho, preferindo antes concluir cursos de graduação, pós-graduação, e temporadas de estudos no exterior, para conseguir postos mais bem pagos, muitos defendem que os filhos e filhas das classes baixas ingressem nele cada vez mais cedo.
“Quando se trata do filho alheio, é uma verdade, mas só para o pobre, para grupos marginalizados. Para meu filho, educação integral: de manhã na sala de aula e à tarde aulas de inglês, balé, judô, natação. É uma demagogia daqueles que sentem na criança do outro uma ameaça à sua própria estabilidade. O outro, por ser pobre, a priori é um delinquente em potencial, só tem duas alternativas na vida, trabalhar ou ser delinquente. Mas a criança tem direito a outra via”, defende Renato Mendes, coordenador do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Reações contra o enfrentamento ao trabalho infantil
Não são raros os casos de ameaças aos auditores fiscais do trabalho em todo o Brasil durante as fiscalizações de casos de trabalho infantil, pelos familiares, pelos empregadores e até pelas próprias crianças e adolescentes, que entendem que estão sendo prejudicados pela atuação do Estado para eliminar essa prática. “Sempre somos ameaçados pelas mães quando fiscalizamos, elas são agressivas. E pelos empregadores também, que têm medo de perder a mão de obra barata, não têm nenhum interesse na criança”, relata Dantas.
Como parte dessa reação, são frequentes as propostas de emenda constitucional (PEC) que vão na contramão da erradicação do trabalho infantil, propondo a redução da idade mínima para entrar no mercado de trabalho. Uma PEC com esse conteúdo (268/2008), apresentada pelo deputado federal Celso Russomanno (PRB-SP), foi barrada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), em 2009, por ser considerada inconstitucional. Afirmava que “o impedimento ao trabalho faz com que os jovens busquem a saída de seus problemas na droga, no furto, no trabalho informal, no subemprego, na mendicância e na prostituição”.
Atualmente, duas PECs que propõem a redução da idade mínima para 14 anos se encontram na CCJ, uma do deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR) e outra do deputado federal Onofre Santo Agostini (DEM-SC), respectivamente PEC 18 e PEC 35, ambas de 2011. Eles defendem que o trabalho infantil não prejudica os estudos e, havendo acompanhamento, “só trará benefícios, tendo em vista que além de gerar rendimentos para a família será um fator positivo para a sua formação moral e educacional”.
O procurador do trabalho Marques acredita que elas também serão consideradas inconstitucionais por dois motivos. Primeiro porque tratados internacionais adotados pelo Brasil proíbem a redução da idade mínima, como a Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2001. Em segundo lugar, os direitos fundamentais são cláusulas pétreas da Constituição Brasileira, por isso não podem ser alterados por PECs, somente através da formação de uma nova assembleia constituinte.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente
Meninos e adolescentes vítimas de trabalho infantil foram encontrados catando e queimando pedaços de madeira em área com metano, que é inflamável
Por Daniel Santini, da Repórter Brasil
Em uma ação conjunta realizada no final de outubro, representantes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) flagraram crianças e adolescentes recolhendo madeiras para produzir carvão dentro de um lixão em Santarém, no Pará. Calçando apenas chinelos, os meninos reuniam tocos e ripas com farpas e pregos enferrujados e os agrupavam para incineração bem no meio do terreno. A queima acontecia em uma área com alta concentração de metano, gás inflamável resultante da decomposição do lixo.
“Foram encontradas crianças de menos de dez anos de idade produzindo carvão de maneira primitiva. Não estamos falando daquelas casinhas tipo iglu, mas de carvão fabricado no chão mesmo. Este carvão era produzido dentro de um lixão onde há decomposição de resíduos orgânicos, o que é um agravante. Há risco altíssimo de explosão”, explica o procurador Allan Bruno, do MPT de Santarém.
O lixão de Santo André funciona há décadas como ponto de descarte não somente de lixo, mas também de entulho de construções e de resíduos de serrarias e madeireiras. O despejo de materiais teve início com um buraco aberto no passado, preenchido com toneladas de dejetos. A preocupação das autoridades em relação a explosões tem fundamento. Em outubro de 2010, incêndio relacionado à produção irregular de carvão assustou moradores do bairro.
Famílias vulneráveis
As crianças vítimas de trabalho infantil são de treze famílias que sobrevivem do aproveitamento de materiais descartados no lixão. De acordo com as autoridades, o carvão artesanal era vendido diretamente para os consumidores, sem intermediários. Para Mary Garcia Castro, professora do programa de pós-graduação Família na Sociedade Contemporânea e de mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica de Salvador, é preciso considerar que a questão é complexa ao se atribuir responsabilidades pela situação degradante a que os meninos e adolescentes estavam submetidos.
“É muito fácil culpar as famílias, falar que elas não pensavam nas crianças e dizer que o certo seria tirar a guarda, mas é preciso considerar quais alternativas elas tinham. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera que não só a família, mas também a sociedade e o estado são responsáveis. A família, neste caso, parece o elo mais vulnerável. Quando se está numa lógica de sobrevivência, a família pensa na sobrevivência imediata”, afirma a professora, que já fez parte do Conselho Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de Direitos da Mulher. “A ausência maior é de políticas públicas e principalmente de ação municipal. Se essas crianças estivessem em boas escolas em tempo integral não estariam no lixão. Vivemos no Brasil um momento em que estamos eufóricos com os índices econômicos, mas é preciso refletir se esses índices vão se sustentar com esse tipo de condições a que crianças e adolescentes são submetidos”, defende.
Responsabilidade
Quem acompanhou a fiscalização pelo MPT foi a procuradora Márcia Bacher Medeiros, participante do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, que esteve na região para apurar denúncias de escravidão contemporânea. O caso das crianças no lixão foi encaminhado à procuradoria regional, que ficou de cobrar providências do poder público. “A responsabilidade pela situação é do Município que deveria ter cercado a área. A Prefeitura assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em fevereiro de 2002 assumindo este compromisso”, sustenta o procurador Allan Bruno. “Além disso, a Constituição coloca como prioridade a proteção da criança e do adolescente. A erradicação do trabalho infantil deve ser meta dos municípios. E neste aterro, foi encontrado trabalho infantil e degradante ainda por cima, crianças em condições subumanas”, completa.
Procurado pela reportagem, o secretário municipal de Planejamento Everaldo Martins Filho afirmou que a Prefeitura já tomou providências anteriormente para tentar resolver o problema. Ele afirma que 30 famílias que viviam no local foram realocadas e que o município fez um pedido de verbas para o Ministério das Cidades para reurbanizar a área do lixão. “Não temos como cumprir o TAC e cercar tudo porque é uma área em que a população circula. Este compromisso foi assumido por outra administração e não é algo que possa ser concretizado. Além disso, não dá para manter vigilância todo o tempo”, afirmou.
Quanto às crianças e às treze famílias encontradas em situação degradante vivendo dentro do lixão, o secretário prometeu providências e disse que, antes da transição para o próximo governo, a Secretaria de Assistência Social irá garantir condições dignas para todos. Na semana passada, o procurador-geral de Santarém Isaac Lisboa fez uma audiência com representantes da prefeitura para cobrar providências.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente
- Lixão
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Debate sobre necessidade de proibição ou regulamentação do trabalho infantil artístico ainda está em aberto
Por Fernanda Sucupira, da Repórter Brasil
Enquanto algumas formas de trabalho infantil, como aquelas que ocorrem nas carvoarias, nos lixões e nas feiras livres, vêm sendo cada vez mais condenadas e combatidas pela sociedade brasileira, outras se realizam abertamente e debaixo de holofotes, mas nem todos se dão conta disso. Em programas de auditório, telenovelas, peças de teatro, espetáculos de dança, desfiles de moda ou propagandas, há crianças trabalhando de verdade. O debate sobre o trabalho infantil artístico ainda está em aberto. O tema gera controvérsias inclusive entre aqueles que atuam no enfrentamento a esse problema, que divergem entre a defesa da proibição total e a necessidade de regulamentação para proteger crianças e adolescentes.
O glamour artístico e a valorização social da fama muitas vezes impedem que sejam percebidos os prejuízos que tais atividades podem causar no desenvolvimento de crianças e adolescentes. E frequentemente resultam na condescendência das famílias, da sociedade e da justiça no Brasil. “Essas crianças passam o dia todo repetindo e esperando. Chegam a ficar de oito a dez horas para gravar uma propaganda de 15 segundos, repetindo muitas vezes cada tomada. Isso gera estresse, ansiedade e pressão sobre aquelas crianças que esquecem o texto ou cometem outros erros”, afirma Sandra Regina Cavalcante, advogada e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP, que estuda o tema desde 2007.
Em grande parte dos casos, o trabalho infantil artístico prejudica bastante o desenvolvimento escolar. Longas jornadas de trabalho, viagens constantes e a necessidade de memorizar muitos textos são alguns dos elementos que não permitem que haja tempo suficiente para estudar. Segundo Cavalcante, deslumbradas por ter estudantes famosos, muitas escolas são excessivamente compreensivas: fazem vista grossa para as faltas e deixam que se substituam as provas por trabalhos feitos em casa. Esse tratamento diferenciado, com uma série de privilégios, em alguns casos, pode levar inclusive a que sofram bullying de outros colegas.
Muitas dessas crianças levam uma vida agitada, com muito trabalho e tempo livre escasso, o que as afasta do convívio com familiares e amigos. “Elas ficam fatigadas, se acidentam, desenvolvem doenças relacionadas ao trabalho. Essa atividade pode acabar comprometendo o direito à saúde, à educação, ao lazer e ao esporte”, afirma o procurador Rafael Dias Marques, da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Não são raras também as situações de constrangimento, humilhação e rebaixamento da autoestima da criança. Num episódio ocorrido em maio deste ano, por exemplo, no Programa Silvio Santos, a pequena Maísa, de apenas 10 anos, humilhada pelo apresentador saiu chorando do palco, bateu a cabeça em uma câmera e foi chamada de “medrosa” pelo público. A mãe, no entanto, a empurrou de volta, para que cumprisse seu contrato. “Isso é uma forma de violência. Uma ocorrência dessas não pode ser tolerada pela justiça”, afirma Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional para a Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (FNPeti). Hoje, Maísa é uma das estrelas mirins da regravação da novela Carrossel.
As crianças também participam de gravações com elencos adultos, em cenas que não são apropriadas para elas, que incluem situações de agressividade e violência. A convivência com o processo dramático, isto é, a vivência das crianças de suas personagens pode levar a sérios danos para o desenvolvimento, já que muitas vezes elas ainda não diferenciam o que é fantasia do que é realidade.
Proibição X regulamentação
Dentro do próprio FNPeti – que reúne representantes do governo federal, de outras instâncias do poder público, dos trabalhadores, dos empregadores, de entidades da sociedade civil e de organizações internacionais – existe um debate em aberto sobre o trabalho infantil artístico.
De um lado, estão aqueles que defendem a total proibição de todas as formas de trabalho infantil, apoiando-se na Constituição Brasileira, que define que é proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos, e qualquer tipo de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos. De outro, quem defende a regulamentação desse tipo de trabalho, por considerar que a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2001, admite o trabalho artístico como uma das exceções.
No entanto, de acordo com Renato Mendes, coordenador do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil no Brasil da OIT, para que essa exceção fosse válida, no momento de ratificar a convenção, o país teria que determinar explicitamente seus casos excepcionais, o que não ocorreu em relação à atividade artística. Ele também ressalta que o que estaria permitido seria a participação em apresentações artísticas, o que é diferente de trabalho infantil artístico.
Mendes considera que mais importante que a questão legal é o aspecto ético que fundamenta a convenção: a ampliação progressiva da proteção de crianças e adolescentes. “Está se pensando no elemento comercial ou na criança? A participação da criança é essencial para o desenvolvimento dela?”, questiona o representante da OIT.
Autorizações judiciais
Entre aqueles que entendem que a atividade deve ser regulamentada, porém, muitos defendem a ideia de excepcionalidade das autorizações judiciais. Isso quer dizer que deve haver uma análise caso a caso antes de elas serem concedidas, averiguando-se as condições de trabalho, para serem pensadas as medidas de proteção que devem ser tomadas.
“O juiz deve avaliar se é imprescindível a participação de uma criança ou de um adolescente para a execução de determinada obra artística, e se ela vai possibilitar o desenvolvimento do talento artístico. Há muito pouca norma sobre o assunto, o que dá margem a autorizações judiciais simplistas, sem parâmetros de proteção, que levam à violação de direitos”, explica Marques.
O MPT desenvolveu uma lista de nove parâmetros de proteção para essas permissões excepcionais, entre eles a exigência de um laudo psicológico; uma jornada compatível com o horário escolar; matrícula, frequência e bom aproveitamento escolar; assistência médica, odontológica e psicológica; e o depósito de um percentual da remuneração da criança em uma poupança para que possa retirar quando completar 18 anos.
No entanto, a maior parte das autorizações judiciais no Brasil atualmente é absolutamente vaga. “O que predomina não é uma excepcionalidade, já que crianças e adolescentes saem de uma telenovela e vão para outra e há crianças trabalhando em programas de auditório ano após ano. Há um equívoco inaceitável de quem dá as autorizações e não leva em consideração os prejuízos e comprometimentos dessa atividade para a criança”, critica a secretária executiva do FNPeti.
Publicidade
Há um consenso entre aqueles que atuam no enfrentamento ao trabalho infantil de que deve ser proibida qualquer participação de crianças e adolescentes em peças publicitárias, por se considerar inaceitável que pessoas nessa faixa etária sejam utilizadas para vender produtos, em uma situação totalmente voltada aos interesses do mercado, sem caráter artístico. Avalia-se também que em nenhum caso é imprescindível a participação infantil na publicidade, já que essas mensagens podem ser transmitidas de outras formas. “Por que para vender produtos telefônicos, bancários, precisa colocar uma criança? Qual é a justificativa ética, de direitos humanos para isso?”, questiona o representante da OIT.
O FNPeti defende que deve ser assegurado a crianças e adolescentes o direito de desenvolverem seus talentos artísticos, mas em um ambiente educacional, como parte do processo educativo. “Deve-se desenvolver o talento aprendendo, para depois entrar no mercado de trabalho na idade certa. A participação artística deve ter caráter lúdico, de formação”, afirma a secretária executiva.
Esta reportagem foi produzida pela Repórter Brasil e faz parte da série de especiais Meia Infância, parte integrante da campanha É da nossa conta! Trabalho infantil e Adolescente
Pais e empresas obtiveram mais de 3 mil autorizações em 2011. Ministro diz que há até casos de autorizações para trabalho infantil em lixões
Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil
Nos últimos dois anos, o debate sobre a competência de juízes e as condições para autorização de trabalho de menores de 16 anos ganhou importância e passou a envolver diferentes agentes do sistema judicial. Hoje, o trabalho infantil institucionalizado preocupa tanto quanto o informal e muitas das autorizações concedidas por varas da Justiça Estadual provocam polêmica no Judiciário. “Já chegaram ao conhecimento público casos de autorização para trabalho em lixões, situação que obviamente, já à primeira vista, se revela nociva a criança e ao jovem”, conta o ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Lélio Bentes Corrêa.
Em 2011, foram registrados no cadastro de emprego formal da iniciativa privada brasileira 3.134 casos de crianças e jovens trabalhando com autorização prévia da Justiça. Na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do ano anterior, 2010, eram mais de sete mil. Segundo Luiz Henrique Ramos Lopes, coordenador da divisão de trabalho infantil do Ministério do Trabalho e emprego (MTE), a expressiva redução deve-se em parte ao trabalho de revisão e orientação no preenchimento do cadastro junto às empresas. “Notamos que havia mesmo muito erro por parte das empresas ao prestar informações, daí o número exagerado de autorizações em 2010”, explica.
A pobreza justifica?
Em entrevista à Agência Brasil, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Nelson Calandra, defendeu a ação de juízes que emitiram autorizações polêmicas. “Ninguém deseja o trabalho infantil, mas juízes e promotores trabalham com a realidade social e a realidade brasileira é que muitas famílias dependem do trabalho do menor”, ele disse então. Acesse a entrevista.
Segundo a legislação brasileira, qualquer forma de trabalho é proibida para crianças de até 14 anos. Jovens de 15 e 16 anos podem exercer atividade remunerada como aprendizes, em atividades com fins claros de profissionalização e sob a supervisão de uma institução de ensino daquele ofício. Para autorizar o trabalho de jovens fora do regime de aprendizagem, o principal argumento dos juízes tem sido as condições da família. “Se eu tivesse que decidir entre uma família perecer de fome [ou autorizar um menor de idade a trabalhar], não teria dúvidas”, disse o desembargador Nelson Calandra à Agência Brasil.
A autorização judicial para o trabalho de crianças e adolescentes está prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – que é de 1943, conforme lembra Lélio Corrêa. “A CLT baseou-se no código de menores de 1927, que tinha uma concepção totalmente diferente da infância. Nele, as crianças em situação de rua eram tratadas como potenciais criminosos e o trabalho era visto como uma solução, não um problema. Já o grande avanço do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi ver a criança e adolescente como sujeitos de direito”, afirma o ministro Lélio.
Foram pouco mais de três mil autorizações judiciais, enquanto no mesmo ano de 2011 foram mais de dez mil as autuações por exploração de trabalho infantil na informalidade em todo o Brasil. Embora sejam menos os casos de trabalho infantil institucionalizado, a questão é considerada importante por explicitar como argumentos que contrariam o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda são acolhidos pela Justiça.
“Se há uma família que depende do salário de uma criança ou um adolescente para se sustentar, há um problema com a sociedade”, defende o ministro do TST. “Isso não pode servir de justificativa para autorização para trabalho – senão, estaríamos condenando essa família a repetir um ciclo de pobreza”. É trabalho do juiz, segundo ele, encaminhar as famílias nessas condições para as políticas de assistência social existentes no país e fazer a cobrança diretamente do gestor público.
Conflito de competências
Para o presidente do TST, embora a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconheça a competência das varas da Infância e da Adolescência para emitir as autorizações judiciais, existe um conflito de competências. “Se no curso do contrato acontece qualquer incidente de ordem trabalhista com o adolescente, a competência é da Justiça do Trabalho. É um mosaico de competências que não ajudam na tutela dos interesses das crianças e jovens”, afirma.
Sob esse argumento, a Justiça do Trabalho tem reivindicado para si a competência pela emissão de eventuais autorizações judiciais para trabalho em situações não previstas pela legislação.
“O ECA ressalva algumas hipóteses de trabalho, mas sempre resguardando a integridade física e moral da criança e seu direito de acesso e aproveitamento da educação – e sempre mediante decisões fundamentadas, estabelecendo inclusive as condições do trabalho a que o jovem estará submetido”, sustenta Lélio. “A Justiça do Trabalho está bem aparelhada para fazer esse tipo de avaliação, pelo conhecimento que tem, por definição, das relações econômicas”, afirma ele.
Em agosto deste ano, um seminário para debater a procedência das autorizações judiciais que têm sido expedidas no país foi organizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público e Conselho Nacional de Justiça – órgão acionado, ainda em 2011, para averiguar as condições de emissão de autorização judicial. O encontro reuniu, além de promotores públicos e fiscais, juízes do Trabalho e da Infância e Juventude. Entre as deliberações, de caráter indicativo, está a apreciação de pedidos de autorização de trabalho de menores por parte da Justiça do Trabalho, que teria melhores condições de avaliar os casos à luz da legislação específica sobre trabalho.
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O combate ao trabalho infantil doméstico no Brasil enfrenta barreiras culturais, desigualdades de gênero e dificuldades de fiscalização
Por Maria Denise Galvani, da Repórter Brasil
Sem perspectivas no sertão da Bahia, aos 15 anos, uma retirante chega a Ilhéus para buscar trabalho em casas de família. Acaba virando cozinheira na casa do árabe Nacib, onde começa propriamente a história de “Gabriela, Cravo e Canela”, romance consagrado de Jorge Amado, encenado várias vezes no cinema e na TV.
A história de Gabriela, muito viva no imaginário popular brasileiro, parte de uma situação tão comum para a sociedade da época que até hoje ainda passa batida para quem se envolve com o livro: o trabalho infantil doméstico.
Num Brasil bem mais moderno e onde o trabalho infantil já era proibido, em 2008, cerca de 320 mil crianças de 10 a 17 anos realizavam trabalhos domésticos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE. Em 2001, estudo da Organização Internacional do Trabalho apontou que mais da metade (64%) das 500 mil crianças trabalhando no serviço doméstico então recebiam menos de um salário mínimo por uma jornada superior a 40 horas semanais e 21% tinham algum problema de saúde decorrente do trabalho.
Barreira cultural
Ainda hoje o trabalho infantil doméstico se confunde com solidariedade e relacionamento familiar em lares brasileiros. Em regiões onde convivem famílias pobres e ricas, é comum a divisão do trabalho na cidade ou na fazenda se estender à figura do “afilhado” ou “filho de criação”, geralmente o filho do empregado ou do parente mais pobre que vai à cidade para “ter mais oportunidades” e cuidar da casa e das crianças da familia.
“O trabalho infantil doméstico é visto mais como caridade do que como exploração. Isso não mudou”, conta Renata Santos, pedagoga do programa de enfrentamento ao trabalho infantil doméstico (PETID) do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-Emaús), em Belém. Segundo ela, famílias de classe média da capital ainda recebem mão-de-obra do interior do Estado; no interior, a zona urbana emprega as crianças da zona rural.
Renata lembra das primeiras reuniões de conscientização no início do programa, há 13 anos: “Era horrível. Fazíamos palestras em igrejas e anúncios no rádio para tentar sensibilizar as patroas, e elas não entendiam”, conta.
Ativo na região metropolitana de Belém e em quatro outras cidades do Pará, o Petid hoje entrou em sua terceira fase. “Agora fazemos uma campanha mais incisiva. Antes era uma questão de sensibilização, de explicar o problema, e agora nós dizemos claramente que quem emprega mão-de-obra infantil está sujeito a penalidades”, explica Renata.
O trabalho doméstico é tão fortemente enraizado nas práticas sociais brasileiras que chegou a ser contemplado no Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído em 1990 – o ECA determinava regularização da guarda do adolescente empregado na prestação de serviços domésticos. Esse artigo (248) é considerado tacitamente revogado desde 2008, quando o Brasil aprovou a lista de piores formas de trabalho infantil, proibidas para adolescentes com menos de 18 anos. Entre elas está o trabalho doméstico.
O ministro Lélio Bentes, presidente da mais alta corte trabalhista do Brasil, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), reforça a necessidade das campanhas – incisivas, como diz Renata – de conscientização na área. “Quando se diz que uma criança é levada ao trabalho infantil para ser protegida, para ter oportunidade de estudo – isso é balela, é um discurso construído para justificar a exploração”, afirma. “O que me parece mais eficaz na questão do trabalho infantil doméstico, sem sombra de dúvida, é a conscientização: as pessoas precisam se indignar com a violação dos direitos das crianças e dos adolescentes”.
Características e riscos do trabalho infantil doméstico
Enquanto, em geral, o trabalho infantil atinge mais meninos do que meninas, quando se trata de trabalho doméstico a situação se inverte e fica mais aguda: 94% das crianças e adolescentes trabalhando em casas de família são meninas, segundo a PNAD de 2008.
Com mais de dez anos de experiência no combate ao problema Renata aponta o que considera o maior problema enfrentado pelas meninas que trabalham cuidando da casa ou dos filhos de alguém. “A criança que faz o trabalho infantil doméstico é privada do convívio com sua família e sua comunidade, não é uma situação natural para ela”, explica.
A OIT cita ainda como os riscos mais comuns presentes na vida dessas crianças a submissão a jornadas longas e muito pesadas de traballho, salários baixos ou inexistentes e uma grande vulnerabilidade ao abuso físico, emocional ou sexual.
Renato Mentes, coordenador nacional do Programa para Erradicação do Trabalho Infantil da Organização Internacional do Trabalho (OIT), concorda: “Muitas trabalhadoras domésticas que vêm de uma situação de trabalho infantil têm um perfil mais submisso e introvertido, características desenvolvidas por uma criança ou adolescente que assumeum papel de adulto dentro de casa”, afirma. De acordo com ele, uma menina que presta serviço doméstico dificilmente encontra ou tira proveito de oportunidades educativas e de desenvolvimento pessoal.
A defasagem escolar de crianças que fazem serviço doméstico também é muito acentuada, o que também compromete as perspectivas de futuro. Estudo de pesquisadores das Universidades Federais da Paraíba e de Pernambuco publicado na revista Psicologia e Sociedade em 2011 mostrou que 80% das crianças que faziam trabalho doméstico já tinham sido reprovadas; metade dessas crianças atribuiram as dificuldades de desempenho a dificuldades de relacionamento ou adaptação, e 26% delas citaram expressamente o trabalho como fator principal.
Hoje, a principal frente de ação do CEDECA-Emaús no Pará é justamente a escola. “Nossa experiência mostrou que na maioria das vezes a escola sabe da situação da criança, mas não faz a denúncia”, afirma Renata.
Por isso, a estratégia da organização mudou: hoje, oito grupos de jovens, muitos deles ex-trabalhadores domésticos, fazem ações diretas de prevenção em escolas cujos alunos enfrentam o problema. Eles dão palestras sobre o tema dos direitos da criança e do adolescente em escolas, abordam a questão do trabaho doméstico e se aproximam da realidade das crianças exploradas.
Dificuldade de fiscalização
Luiz Henrique Ramos Lopes, coordenador da divisão de trabalho infantil do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), admite que o trabalho infantil doméstico é especialmente difícil de se fiscalizar. “Por causa da inviolabilidade domiciliar, não existe uma ação fiscal contra o trabalho doméstico como há em outras áreas. Não se pode entrar na casa de alguém sem um mandado judicial”, explica.
Muitos fiscais, segundo Lélio Bentes, conseguem fazer a fiscalização em espaços públicos onde a criança trabalhadora doméstica circula, como feiras, parques e mercados. São raras as vezes, no entando, em que criança é encaminhada para a rede de proteção, já que a regulamentação específica para a fiscalização do trabalho doméstico também é mais branda; instrução normativa do MTE prevê que os eventuais flagrantes devem ser tratados com medidas de conscientização, e não propriamente com autuação dos fiscais. Essa instrução normativa, segundo apurou a Repórter Brasil, está sob revisão e deve cair.
Por fim, a própria atividade do trabalhor doméstico adulto é alvo de discriminação por parte da legislação brasileira. O registro de empregados domésticos hoje, por exemplo, não contempla o recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Também há dificuldades em se aplicar o controle de jornada e fazer valer o direito a pausas e horas extras, por exemplo. A Convenção 189 da OIT para o Trabalho Doméstico, que exige a equiparação dos direitos desses empregados aos dos demais trabalhadores urbanos, aguarda ratificação do Brasil.
É da nossa conta! Trabalho Infantil e Adolescente. Uma campanha colaborativa da Fundação Telefônica em correalização com OIT e Unicef
Dividida em quatro estratégias – Reconheça, Questione, Descubra e Compartilhe – a campanha É da nossa conta! pretende sensibilizar e potencializar ações junto a diversos públicos, incluindo crianças, adolescentes, jovens e especialistas em trabalho infantil para que se tornem agentes multiplicadores, produzindo e compartilhando informações sobre o tema nas redes sociais. Saiba mais em http://bit.ly/OlDlKY
O que fazer?
Identificou alguma situação de trabalho infantil? Comunique ao Conselho Tutelar de sua cidade, ao Ministério Público ou a um Juiz de Infância. Há a opção também de denunciar pelo telefone ou site do Disque 100 – Disque Denúncia Nacional: www.disque100.gov.br
Como compartilhar?
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